Alguns anos se passaram. Entre alegorias e turbilhões mentais, Saoshyant tornara-se um adolescente sem nenhum tapete de ouro onde
pousar os pés. O bom Helmont estava cada vez mais fraco e pedia para que o garoto comprasse e carregasse aquilo de que necessitava. Jamais saía de casa, com dores nas juntas e o passo mais lento do que nunca.
No entanto, chamou-o para lhe mostrar algo:
– Venha, meu filho! Venha ver! – Sua voz enrouquecera. – Lembra-se da cor que a matéria no balão tinha antes? – Apontou para o recipiente, que continha
uma substância branca, pastosa, que reluzia e se agitava sobre o fogo.
– Claro, era negra. Escura como a noite.
– E agora está clara como o dia. Não é maravilhoso? Do Nigredo ao Albedo. E quando chegar o vermelho, a Grande Obra estará pronta. Espero que o meu corpo suporte até
lá. Ou você será o único a colher os frutos. Que ironia do destino seria! – Até alguns dias antes, a matéria estivera preta e com uma aparência desagradável, feito
um corvo que definhava. Mesmo hermeticamente fechada, o garoto sentia odores fétidos saírem dela e não conseguia se aproximar.
Já agora ia tudo às mil maravilhas. Não ousou falar, porém não deixava de ficar fascinado.
Sonhou, à noite, com um dragão rubro que devorava um pavão branco, do qual apenas a cauda era colorida.
– Veja, filho! Nós conseguimos! – Mais alguns dias se passaram e numa tarde, quando o menino chegou da rua trazendo alimentos, Helmont lhe mostrou: extraídos do recipiente,
cacos de um vidro vermelho ígneo, como um fogo solidificado e brilhante. Não era algo comum: não conseguia tirar os olhos daquilo. – Feche a porta, feche bem a porta! – E uma vez tendo-a trancado,
aproximando-se daquele vidro, o velho alquimista completou: – Chegamos ao lapis, filho! Esta é a Pedra dos Filósofos. Não há dúvidas! Só iremos fazer um último teste! – As forças de seu mentor
pareciam ter voltado redobradas. Movia-se de um lado para o outro, trabalhando sem dores nem cansaço.
Saoshyant tremia de entusiasmo e felicidade. Tanto um quanto o outro, o jovem e o velho, teriam vida eterna e conheceriam as estrelas. Vida não! Juventude eterna: pois ninguém
queria ser como Titônio, o infeliz esposo de Aurora.1
Retomaram as atividades com afinco, irmanados o entusiasmo senil e a emoção juvenil. As fadas e os silfos voavam e dançavam nos ares do laboratório.
Moeram uma certa quantidade da Pedra e fundiram-na em um crisol limpo. Para depois escoá-la em um recipiente e obter uma massa friável, que misturaram ao mercúrio purificado
aquecido até a crepitação. Fundiram-nos em um fogo vivo e assim criaram o esperado pó de projeção.
No forno, trataram de fundir o chumbo e jogaram no metal uma pequena quantidade do pó enrolada em um pedacinho de papiro, lançada ali daquela maneira para que as propriedades
transmutatórias não se dispersassem, como vários livros advertiam.
Tornaram a colocar o material no forno e, ao cabo de menos de uma hora, este foi retirado. Fora transformado em ouro.
– Nós conseguimos, filho! Foi um sucesso! – Pai e filho adotivo se abraçaram. – Agora só nos resta preparar o Elixir!
– Não basta moer, colocar na água e beber uma taça, papai?
– De forma nenhuma, meu querido. Muitos foram os casos de alquimistas que abusaram da medicina universal, tornando-a um veneno. Algumas gotas são o bastante. Houve um caso de
um homem que tomou uma colher e caiu morto, enquanto outro que tinha apenas molhado a língua teve todas as suas doenças curadas e a juventude restabelecida. Devemos prosseguir com ponderação, seguindo
os passos dos sábios que vieram antes de nós.
– Quando tivermos bebido o Elixir, o que faremos?
– Saberemos o que fazer depois de ingeri-lo. Dizem que quem o toma sabe na sequência onde estão todos os outros Adeptos. Iremos ao encalço de algum deles. Você
é um privilegiado, meu caro! Tão jovem e já um Adepto.
– Não sou nada. Foi o senhor quem fez todo o trabalho.
– É o que pensa. Sem você, eu não teria tido forças. Teria morrido há muito tempo. – Helmont bem sabia o quanto isso era verdadeiro.
Saoshyant, humilde, ficou cabisbaixo. O alquimista sorriu e se preparou para a feitura do Elixir. Seguiria as instruções de Irineu Filaleto e Basílio Valentim.
A noite estava clara, cheia de estrelas, como o menino pôde notar ao abrir a janela.
– Filho, feche a janela – advertiu-o o pai.
O garoto ia fechá-la, mas tomou um susto, pois era tarde demais:
– Eu vi o que vocês têm!
O tamanho do erro que cometera tomava forma no mundo como uma mão enorme, inumana, cheia de garras, enegrecida e com veias oleosas. Impedia-o de fechar a janela e invadia a casa.
– Eu vi e eu quero! – A criatura era escamosa, de pele verde-escura, e seu rosto de olhos vermelhos lembrava o de uma serpente. – Uma pena! – A língua bifurcada
sibilava ao deixar a boca, que contava com um par de longos dentes afiados no maxilar superior. – Mas todo o trabalho ficará em boas mãos, ofereço-lhes minha garantia. – Sua cauda era longa
e flexível feito borracha e se esgueirou para dentro da habitação do alquimista e de seu ajudante.
Empurrou e derrubou o garoto, que tateou no chão apavorado, e fechou a janela atrás de si. O menino ofegava.
– Se quiser a Pedra, venha buscá-la. – Helmont, com coragem e altivez, encarou o demônio e o desafiou. – Mas o que me pergunto, seu monstrengo sujo, é
como conseguiu descobrir o que estávamos fazendo.– Sua mão escorregou de lado para pegar um frasco fechado que continha um líquido incolor.
– Sujos são vocês, humanos hipócritas, criaturas imundas que falam de amor, justiça, paz, todo esse palavrório, e se engalfinham em guerras, puxando
os tapetes uns dos outros, falando mal de um irmão ou de uma esposa por trás. Eu, pelo contrário, admito que tenho meus defeitos! E sou membro de uma espécie superior, para a qual a humanidade não
passa de alimento. Minha audição apurada pôde escutar as suas conversas. E via-os indo e vindo, e nas vezes em que o seu garoto abriu a janela observei o que tinham. A minha visão também é
mais apurada do que a de vocês. Sei que aquele ouro foram vocês que fabricaram!
– Se é um espécime superior, para que quer a Pedra? Afinal o senhor já é capaz de muitas coisas.
– Pare de debochar. Não sou nenhum tolo. Tenho conhecimento de que o Elixir ainda precisa ser preparado. Prepare-o para mim, ou terá uma vida ainda mais curta, velho.
– E se eu não o preparar?
– Ao invés do Elixir da Longa Vida, quer o caminho para o buraco da curta vida?
– Você não é bom em fazer ameaças. Se me matar, não terá nada a fazer com a Pedra. Não sabe usá-la. É um ignorante. Ou acha
que pode ler e compreender os livros de Filaleto e Valentim?
– Não me subestime. Pode ser mais cômodo você preparar o Elixir para mim, mas não que eu não possa produzi-lo por conta própria. – O monstro
alcançava o teto da casa e ainda estava curvado; Saoshyant não conseguia se mexer.
– Uma pena não ter estudado a fundo magia, nem sei manejar uma espada. Sou fraco e velho agora para isso.
– Não quero saber dos seus lamentos. Trabalhe! Se eu obtiver a medicina universal, não precisarei nunca mais me submeter aos reis do Inferno! Talvez nem mesmo a Lúcifer.
– Está superestimando o trabalho deste pobre homem. Que, no entanto, não vai jogar fora todos os anos de labor entregando-os de mão beijada para uma aberração.
O trabalho é meu e morrerá comigo. Sinto por você, Saoshyant. – Olhou para seu valioso ajudante e filho adotivo com compaixão. O menino desabou em lágrimas.
– Quer dizer que prefere que tudo tenha sido em vão?
– Não foi em vão. Deus me recompensará pelos meus esforços. Não tive a vida eterna aqui, mas a terei no Paraíso. Antes ter a garganta rasgada
a entregar os tesouros do Céu a um verme.
– Foi você quem pediu! – Contudo, antes de seu pescoço ser aberto por aquelas garras, teve tempo de abrir o vidro que apanhara e de jogar sobre os cacos da matéria
filosofal o líquido contido neste. Ácido nítrico ou, como preferia chamá-lo:
– O sangue do dragão é a única substância que pode destruir a Pedra! – E, de fato, os pedaços
do precioso vidro vermelho foram se desmanchando e derretendo em contato com o ácido.
O demônio, mais descontrolado impossível, dilacerou a garganta do alquimista e desabou no chão junto com o corpo, esmurrando-o e retalhando-o com ódio.
Os vapores vermelhos foram se dissipando. O monstro tentou retê-los e passaram através de seus dedos.
Saoshyant, imbuído de toda a coragem que possuía e das forças que lhe restavam, arrebentou uma cadeira nas costas da criatura.
Esta nada sentiu e se voltou na direção do filho adotivo do alquimista com um sorriso terrível que se alargava em seu rosto:
– Quer brigar, pivete? Você vai ser um ótimo aperitivo para o meu jantar. Faz dias que só olho e olho, morrendo de vontade de comer você, só que me controlando
porque precisava esperar por uma coisa mais importante. Agora que essa coisa não existe mais, posso matar a minha fome!
O menino gritou de pavor e correu. Teria sido alcançado se uma segunda visita não convidada não tivesse entrado na casa, desta vez derrubando a porta: um homem com duas
espadas, que veio como que deslizando pelo chão em altíssima velocidade até chegar ao demônio e cortar sua cabeça em um instante.
O sangue verde e gosmento respingou pelas paredes da casa. O garoto não se mexeu mais, seus lábios trêmulos.
"Encontrá-lo não foi fácil. Esse se escondia bem. Fui informado que também tinha uma audição e uma visão excepcionais,
mas pelo visto se distraiu muito, acho que com esse menino. Devia estar com muita fome e perdeu o controle e a discrição nessa hora. Matá-lo foi mais fácil do que o esperado", Hong embainhou as espadas.
– Você está bem? – perguntou a Saoshyant, que tremia e não respondeu nada. – Ah… – Viu o cadáver de Helmont. – Sinto muito. Era
o seu pai?
– Ele é… – Não o encarava, cabisbaixo.
– Ah, sim… A vida é eterna.
– É. – Na mente do jovem, reluziam os preceitos alquímicos e não só a perspectiva do puro espírito.
– Sinto por ter me atrasado. Deveria ter chegado a esta cidade há dias. Ou melhor, ter localizado esse monstro antes. Sinto pelo seu pai; e por cada vida que me escapa.
– Tudo bem. Não precisa se culpar. – O filho adotivo de Helmont ergueu a cabeça e puderam se olhar nos olhos. Seus lábios agora estavam firmes.
– O meu nome é Hong. E o seu?
– É do Catai?
– Sou sim.
– Eu sou daqui mesmo. Me chamo Saoshyant.
No silêncio da noite, ficaram ainda mais silenciosos por alguns instantes.
O guerreiro queria dizer algo e consolar o menino, mas não sabia por onde começar.
– Você é um cruzado, não é? – O garoto concluiu que chegara a hora de deixar a quietude de lado. – Ajuda as pessoas. Um caçador de demônios.
– É. De certa forma sim.
– Quero ir com você. – Foi explícito.
Algumas horas depois, os dois já haviam ido embora e, em meio aos cacos do que até um passado recente fora um laboratório de alquimista, um indivíduo encapuzado,
de botas negras, parou de pisar sobre os vidros quebrados e os papéis esparramados para contemplar a destruição.
Apesar de seu rosto de pele escura ser humano, havia algo de estranho, como se aquela face não fosse sua, e de fato não devia ser, em alguns momentos como que borbulhando e anunciando
uma metamorfose que acabava não ocorrendo.
Era um sujeito esquisito; se um mago estivesse presente, teria discernido em sua aura um segundo semblante, que um pouco lembrava uma criatura equina.
***
Os anos transcorreram e, já em Roma, Saoshyant se tornara uma demonstração viva para si mesmo de que levara a sério os últimos lamentos de Helmont, que se
condenara por não ter estudado a fundo nenhuma forma de magia.
O persa, como cruzado, podia ter acesso a todos os livros de magia da Igreja com o pretexto de estudar as artes dos inimigos da Fé. Fora este um dos motivos de ter desejado se tornar
um caçador de demônios, além de uma certa dúvida: à alquimia não poderia se dedicar no momento, e de qualquer maneira não
se tratava de uma questão de emergência, visto que o sangue de Cristo o rendera praticamente imortal. Só tinha vontade de algum dia poder estudar de forma assídua as propriedades deste e verificar
o que poderia ter em comum com a Pedra dos Filósofos. Ou se, como às vezes desconfiava, não fosse realmente o sangue de Cristo o que os cruzados ingeriam, e sim o célebre Elixir, produzido por sacerdotes
que, na verdade, seriam alquimistas.
Para tanto, entrementes, precisava antes livrar o mundo dos demônios ou ao menos minimizar sua presença. Somente em uma era mais pacífica seria possível se consagrar
aos estudos. Enquanto isso, teria que zelar pela própria sobrevivência.
Que os padres vermelhos fossem ou não alquimistas, esperava solucionar essa dúvida antes de sua morte.
1 Na mitologia grega, filho de Laomedonte e irmão mais
velho de Príamo, rei de Troia. Aurora apaixonou-se por ele, mas cometeu o equívoco de pedir a Zeus que lhe concedesse a imortalidade sem requisitar também a eterna juventude. Titônio envelheceu tanto
que Aurora o encerrou em um quarto escuro, onde ele simplesmente acabou por se tornar uma cigarra, segundo uma das versões do mito.
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