As botas peludas deixavam na neve pegadas profundas, que poderiam ser confundidas com as de algum animal pesado. Faltavam garras para impor o passo de um ser de postura agressiva, embora o rastro de altivez e firmeza ficasse claro, tal qual pertencessem a um predador de nascença, que porém renunciara às suas presas, abdicando do sabor do sangue e do cru.
O responsável por aquelas marcas era o cruzado Fiódor, que ia à frente de sua comitiva e era o único agasalhado desta, vestindo um casaco espesso que pouco deixava entrever a armadura por baixo.
Gerava reações distintas entre seus camaradas: Gilles, em sua armadura prateada de ombreiras arredondadas, com uma touca metálica a cobrir o alto de seu crânio e sua nuca, deixando os cabelos brancos escaparem para além dela, ria daquele pescoço duro, da cabeça dourada que quase nunca se virava, limitando-se a mover os olhos, apesar de admirar a beleza preciosa contida nestes, digna dos melhores lápis-lazúli; Edgar, em uma armadura cor de chumbo e com um elmo quadrado encimado por uma cruz e com aberturas apenas para os olhos e alguns furos para a respiração, só estranhava seu hábito de andar encapotado, afinal, mesmo frente às temperaturas mais baixas, os cruzados costumavam ser inflexíveis, impossível congelar o sangue de Cristo; quanto a Antenor, de armadura com uma cruz dourada no peito, seu elmo cônico de topo arredondado deixando espaço para o rosto a não ser pela proteção nasal, intrigava-o pelo mistério emanado, respeitando-o pelo modo sólido de atuar e liderar.
O lusitano, que sentia a aura do companheiro russo como um paradoxal frio escaldante, que o levava a transpirar, ainda não se esquecera, embora se achasse no gelo do extremo norte da Noruega, das chamas da Inquisição andaluza, que não experimentara na pele, mas que haviam se entranhado em seu espírito, como dentes ávidos por carne e pertencentes a uma fera vermelha, horrenda e estúpida, porém persistente, que ainda que chutada e empurrada para longe retornava e começava por lhe morder os calcanhares. Subia depois pela panturrilha, até atingir as coxas, onde tinha início o abrasamento sem piedade que investia contra os órgãos sexuais. Aparentava ter o intuito de devorar o pecado com fúria, sem receios de causar dor humana se assim poderia ser evitado o estímulo demoníaco. Porque a vira, ao ter a máscara retirada pelo carrasco: a bela cigana, com o semblante humilhado e marcado, mas ainda assim reconhecível, e as íris de carvão incandescendo até se tornarem cinzas. Naqueles instantes, ela balbuciara algo de muito valor, do qual, no entanto, não se lembrava.
Talvez por dentro fizera questão de esquecer, assim como queria apagar a imagem da mulher pagã, neste caso sem êxito.
Não pareciam pairar mais dúvidas em relação à influência diabólica, em especial quando, a pira acesa, um dos padres erguera a cruz com a mão direita, ela voltara o rosto para o lado oposto e ainda fechara os olhos. Como que para garantir que por nenhuma parte o sinal de Cristo se fizesse acessível à sua visão. E esta fora somente a culminância do processo, já que no caminho da Procissão da Cruz Verde testemunhara os passos arrastados dos condenados humilhados por vaias e golpeados por dejetos, o desespero de alguns claro no esgotamento de quem não via mais nada a fazer. Seus próprios pés de espectador doíam como se tivesse caminhado por horas, descalço, sobre um terreno rochoso. Por essa razão, precisara se aconchegar em um canto da praça para esperar pela manhã. Pouco dormira, mas isso não o prejudicara, pois os cruzados, salvo exceções, necessitavam de apenas uma ou duas horas de sono por dia para repousar e ficavam alertas até durante os sonhos, além de serem capazes de cochilar em qualquer postura.
Reabrira os olhos antes da aurora e ouvira a missa da hora de prima, à qual se seguira, após um breve sermão, a leitura da condenação dos réus, feita em voz alta pelo cardeal Torquemada, as arquibancadas cheias, os espectadores ansiosos para jogarem seus bonecos e estátuas nas fogueiras. Cruzes fincadas no chão, cobertas por panos pretos que só seriam retirados após as execuções, circundavam o altar.
No estrado ao centro, na parte baixa, ficavam os que não seriam mortos; na parte média, os enforcados; na extrema, os condenados à fogueira, o grupo do qual fazia parte a nobre cigana. Nobre não de nascença, mas pelo olhar que tanto cativara o cruzado. "Gostaria de ter falado com ela pelo menos uma vez", contudo, não houvera meio. A seta não fora disparada. E justamente Antenor carregava consigo aljava, arco e flechas.
Agora precisaria atirar e acertar, enquanto Edgar e Gilles tinham suas espadas, a do primeiro inserida em um talabarte de couro, a do segundo já desembainhada.
O inglês também trazia consigo, segurando-o com a mão direita, um escudo em forma de gota invertida com a serpe acima da cruz, pintadas em vermelho. Ao passo que o francês, assim como o luso, preferia não usar nenhum escudo.
Já Fiódor, com seu elmo pontiagudo que deixava o rosto exposto, parecia desarmado e era o único com as mãos cobertas por luvas, os olhos sempre direcionados adiante.
– Foi-me dito que caçaremos um voador, mas que poderíamos encontrar outros por aqui, que esse seria o líder. Sabe de mais algum detalhe, rus? – inquiriu Edgar, a última palavra carregada de desdém.
Nutria um certo preconceito por aquela gente originária de uma terra de hábitos segundo acreditava bárbaros, repletos de resquícios de paganismo. Ouvira falar que por lá os homens trocavam ósculos! Pior do que isso, só o vil costume escocês da noiva, após o casamento, circular entre os convidados e beijar todos os homens na boca, recebendo em troca algum dinheiro. Depois lhe diziam para não alimentar receios de rutenos e escoceses!
– Nada – foi a resposta seca de Fiódor. "Ele sabe o meu nome, então que me chame como deve ser." Se possível, teria aplicado uma concisão ainda maior.
– Que resposta mais concisa! Isso prova de uma vez por todas que não temos líderes, mesmo que alguns queiram sê-lo. – Gilles impôs seu tom atrevido, sentindo que os olhos do russo estavam também na nuca. – Somos todos ignorantes do mesmo modo. Mas não importa! O que interessa é que em breve mais demônios serão mortos, poderei ver o sangue do mal derramado no branco, e depois que venha uma nevasca para restituir a pureza a este ambiente.
Um vapor frio saía pelos lábios do russo. Antenor refletiu: "O único aqui que me inspira alguma simpatia é Fiódor. Edgar pode até ser um cavaleiro honesto, mas parece por demais cheio de si e de preconceitos não cristãos. Gilles me dá um certo medo. Não sei como alguém como ele, que fisicamente lembra até uma mulher, e que é cruel e frio, pode ser um cruzado. Há coisas que não entendo. Não acredito que seja um sodomita, o cardeal Torquemada não permitiria isso jamais! No entanto, vi seu sorriso se intensificar a cada réu colocado na fogueira. Não vi nem Edgar nem Fiódor em Sevilha, apenas ele, e não compareceu à missa. Surgiu não sei de onde e como, na hora das execuções, perto de mim." Acelerou o passo e se aproximou do russo. Os outros dois ficaram um pouco para trás.
– Já enfrentou voadores alguma vez? – falou bem baixo com o companheiro.
– Ora, mas veja só! Um novato que nunca enfrentou um voador na vida! – Tudo para evitar ser ouvido por Gilles, o último da fila, que porém possuía uma audição privilegiada.
– Ele não disse isso. Apenas me perguntou se eu já enfrentei demônios dessa espécie ou não. – A resposta de Fiódor, que tinha uma voz forte e um pouco rouca, partiu num tom ríspido, sempre sem se voltar; seus olhos seguiam em frente, junto com os pés, quase que em rígido paralelismo.
– Ora, mon cher, você não é nem um pouco ingênuo ou tolo. Pelo jeito dele falar, pela modulação da voz, ficou bem evidente que nunca viu um voador na frente até hoje.
– E que mal há nisso? Um dia também foi nossa primeira vez. Ninguém nasce experiente.
– Não tenho a menor vergonha de dizer que nunca enfrentei um voador. – Antenor replicou então de forma enérgica. – Por isso senti a necessidade de me aconselhar com alguém mais experiente. Não foi a postura correta, em vez de ficar calado e com dúvidas?
– Calma, calma, não precisam se exaltar! – Gilles fez um gesto de paciência com a mão desocupada aberta. – Apenas acho que certas vezes Deus se manifesta no silêncio.
– Não iria ficar calado só para me poupar das suas zombarias. Elas não me afetam.
– Se não o afetam, continue a perguntar e tagarelar! Por que parou? Parece-me que foi bem afetado sim, senhorzinho. Um tanto exaltado esse rapaz!
– Já chega, Gilles. – Fiódor tentou impor respeito.
– E você? Não é ninguém! Vamos lá: conte ao fedelhinho como foram seus confrontos contra voadores!
– Não dê importância às provocações dele. – O russo parou de seguir em frente pela primeira vez. Apoiou uma mão no ombro de Antenor para impedir que o luso se voltasse em fúria na direção do albino. Mesmo sem ver, sentira a vontade belicosa do português e detivera-o a tempo.
– Isso! É bem melhor que o seu amiguinho o segure, ou então… – O francês chegou próximo dos dois numa velocidade espantosa: dera a impressão de desaparecer por um instante e ressurgir com a espada já apontada para o pescoço de Antenor.
– Vocês por acaso são idiotas? Por uma futilidade, acabar duelando? Somos soldados de Cristo! – vociferou Edgar, que até o momento, com um olhar severo, apenas observava.
– Foi ele quem começou. – O português temeu fazer algum movimento; até Fiódor parecia apreensivo. Gilles que ainda se divertia e sorria.
– Foi você quem começou, com uma questão idiota. Esse tipo de pergunta exigia uma reação cretina. – O albino não via a hora de derramar sangue. Estava ficando nervoso com a demora na aparição dos demônios. Sua brincadeira, uma maneira sim de brincar, mesmo que para os outros parecesse ofensiva e violenta, servia para diminuir sua ansiedade e a ira interna.
Edgar separou os brigões, empurrando-os para lados opostos.
Gilles se deixara empurrar, por isso não se aborreceu. Fazia parte do seu jogo.
Antenor encarou o inglês, mas um olhar ainda mais sério, vindo de Fiódor, o recolocou em seu lugar. Aquilo fora longe demais, enquanto o voador das montanhas norueguesas talvez nem se encontrasse mais por ali, tendo partido para fazer vítimas em lugares quentes. Só retornaria ao lar após aplacar sua fome, embora um tivesse sido visto recentemente carregando um ser humano em suas garras.
Bastou retomarem as posições anteriores ao desentendimento, e ser restabelecido o silêncio, para que o urro mais profundo fosse ouvido de um despenhadeiro não tão distante.
Aquilo todos puderam escutar. O que só Gilles ouviu foi um som de bater de asas, ainda longínquo, que fez com que abrisse um sorriso de orelha a orelha. Algo audível para os outros somente quando as criaturas despontaram no céu enevoado.
São enormes. Antenor não verbalizou: tinham aparecido três monstros que aparentavam ser feitos de calcedônia negra, variando entre os quatro e cinco metros de altura e os doze e quinze de envergadura.
O luso vinha se acostumando a disparar quatro flechas de uma vez, e foi o que tomou o ímpeto de fazer, ainda que um pouco trêmulo a princípio. Tinha ojeriza a morcegos e receio de aves de rapina. Nunca gostara de coisas voadoras. Muito menos em se tratando de monstros.
Na hora de tensionar a corda, liberou um berro de estímulo a si mesmo, o que afastou a insegurança.
– Acerte-os logo para que venham lutar no chão! – bradou Gilles, que dava mostras de uma estranha espécie de bruxismo em plena vigília. – Ou não será preciso?
Fiódor levantou a cabeça, sem movê-la para os lados. Testemunhou não só pelos olhos que aqueles não eram um arco e flechas comuns, mas a arma de um cruzado, e por isso seria impossível haver erro: as setas, que faziam curvas inacreditáveis, só não atravessaram corações e cérebros dos demônios porque estes se defenderam com as mãos de quatro dedos e garras pontiagudas, que acabaram perfuradas.
Uma das criaturas infernais, de olhos vermelhos e barba densa, fez pouco-caso do buraco na palma da mão, mas passou a gemer pelo fogo que se alastrou, e que incendiou todo o membro.
– Mas vejam só! Nosso caçula até que não é de todo ruim. – Gilles deu um salto inesperado tanto no momento quanto em extensão e altura, que deixou Antenor boquiaberto e escureceu o semblante de Edgar. Quase um voo, que só não pareceu surpreender Fiódor.
No alto, partiu ao meio a cabeça de um dos demônios para depois descer às gargalhadas, planando.
Os outros dois tentaram fugir, porém foram atingidos em cheio por mais flechas de Antenor, que não quis ficar atrás do francês: um no pescoço e no crânio; e o segundo, o de braço incendiado, teve as costas perfuradas.
Ambos despencaram na neve. Edgar e Gilles correram até onde tinham caído. Fiódor que permaneceu impassível, de costas para todos.
O albino ultrapassou o inglês na corrida e alcançou antes o primeiro demônio, que se levantava; decapitou-o em um instante.
Edgar perfurou o peito do outro, que se revirara no chão, com sua bastarda.
– Foi fácil demais! Outros devem estar próximos. – Gilles lambeu os dedos, sujos com o sangue arroxeado dos monstros. – Este aqui tem um gosto amargo! – Edgar bufou e saiu de perto. Recebeu em suas costas o sorriso cínico do francês, que escolhera ignorar. – Não acredito que tenham mandado quatro de nós para derrubar criaturinhas tão insignificantes! Eu sozinho teria dado conta deles. – Contudo, entre o silêncio e o espaço, eriçou as orelhas. Conseguia movê-las um pouco de acordo com sua vontade, e dessa maneira ficaram mais erguidas do que o normal.
Antenor olhou para o alto e, feito meteoritos, duas presenças impressionantes pousaram por ali; abriram crateras ao redor e espalharam gelo em todas as direções.
Os cruzados saltaram para se afastar, menos Fiódor, que permanecera onde estava.
O lusitano ficou preocupado ao pensar que justamente o russo, o único dos quatro que sentia frio, havia ido parar embaixo da neve.
Outros demônios, semelhantes aos primeiros que haviam aparecido, despontaram nos céus e se aproximavam, bem mais lentos e menos assustadores do que a dupla adiante: um par de bestas quadrúpedes prateadas de corpos leoninos, cujas asas pareciam feitas de metal polido; suas cabeças lembravam escaravelhos, as patas de três dedos grossos e com garras pesadas; um media oito metros de altura e o outro cerca de sete.
Fiódor emergiu do branco e, sem nenhuma arma na mão, pulou ao lado de um dos demônios parecidos com os três primeiros, que acabara de descer: a cabeça do monstro se destacou e rolou para o chão.
– Agora sim! Fico com um dos prateados. A presença deles é bem diferente. – Gilles avançou, lambendo o beiço inferior. – Talvez sejam barões.
– A fêmea é minha. – Edgar se antepôs.
– Fêmea? Por acaso olha para os adereços das aberrações? Já conheci todo tipo de luxúria e sodomia, mas essa para mim é nova! – caçoou, ao passo que as gigantescas quimeras de prata vinham devagar, em contraste com a velocidade de sua descida, e, enquanto o russo lutava contra os voadores negros ao que parecia manejando o vento, Antenor voltou a atirar suas flechas, certeiras contra os menores, mas que ricocheteavam nas asas dos dois maiores.
– A presença espiritual é a de uma fêmea. Se você não sabe distinguir, o problema é seu, não lhe devo satisfações. – O inglês se lançou ao ataque após responder a Gilles.
– Como quiser. Fico com o macho-líder! – O francês partiu para enfrentar o do lado oposto.
Percebendo que aqueles dois cuidariam dos prateados, o luso se concentraria em ajudar Fiódor.
Ficou preocupado com ambos, já que a princípio suas setas não tinham surtido efeito naqueles inimigos. Só que ao mesmo tempo não simpatizava nem com Gilles, cruel e prepotente, nem com Edgar, antipático e arrogante; ou ao menos lhe pareciam assim, diferentes do russo, que, apesar de comedido com as palavras e os gestos, aparentava uma postura mais cristã, firme consigo mesmo, sem imposições exteriores em excesso. Intrigante sua maneira de lutar: já ouvira falar da espada invisível de Fiódor e agora chegava à conclusão que era real, pois, ao se prestar atenção, se podia perceber que suas mãos cingiam uma arma, conquanto imperceptível aos olhos. Assim como eram quase imperceptíveis os golpes de Gilles por sua velocidade; e era um ataque insano, pois ria e saltava.
O demônio prateado, ao reagir, voltou a mostrar seu verdadeiro ritmo, aplicando patadas que produziam fendas e crateras no solo. Tornava o território daquela batalha cada vez mais perigoso e delicado, sem que a arma do cruzado conseguisse danificar sua pele. Problema semelhante ao de Edgar, que, mesmo com uma lâmina mais pesada, não causava nenhum dano ao adversário.
– Obrigado, Antenor. – Fiódor, um pouco ofegante, aproximou-se para uma trégua; haviam exterminado uma dezena de voadores negros.
Restavam mais três estropiados de pé, receosos quanto a seguir atacando o russo; porém outra dezena chegava dos céus.
– Não precisa me agradecer antes que a batalha tenha terminado e nós todos saído vivos. Você pode só segurá-los por algum tempo? Minhas flechas acabaram. – O russo moveu o pescoço e o rosto, encarando-o. – Mas não se preocupe. Dentro de alguns instantes terei novas.
– Como irá arranjá-las?
– Desta maneira... – Retirou a placa metálica que protegia o braço direito e estendeu-o com a palma da mão voltada para cima. Com a carne exposta, fez uma careta de dor e sem nenhum som, para o espanto até de Fiódor, uma flecha banhada em sangue saiu de uma veia. Depois mais outra de outra veia e assim sucessivamente, sem que ocorresse hemorragia e com o sangue nas armas desaparecendo a seguir. – São os prodígios do sangue de Cristo. – Ainda não terminara e o russo já lhe dava cobertura, ao encarar sozinho mais voadores.
Já quanto a Edgar, o inimigo partira-lhe o elmo, mas não era o principal responsável pelos danos à sua armadura, pois, para ficar à altura do adversário, seus músculos haviam crescido demais e rompido trechos da proteção, que não era mais capaz de contê-lo. Seu pescoço se deformara, troncudo e ao mesmo tempo flexível, e o demônio se enfurecera, por fim com sangue azulado a jorrar de suas feridas. Entrementes, o cruzado parecia fora de controle.
Gilles, sem o mesmo esforço, agora levava a melhor sobre seu oponente. Com sua espada, que às vezes parecia tomar a forma de uma serra, arrancara uma das asas do prateado. E pôde notar no companheiro, a quem observava de sobrolho – o bastante ao se considerar sua apurada visão –, uma mudança na cor dos olhos, que haviam assumido um vermelho com veias negras, afora a língua bifurcada. Um forte cheiro de esperma vinha do inglês. "Será que vai acontecer?" Questionou-se, sorrindo, quase indiferente em relação a seu inimigo, que, desesperado, correu em sua direção e acabou decapitado pela espada-serrote. Despencou em uma das crateras que ele próprio criara. O albino parou e ficou observando Edgar.
O cruzado inglês teve uma visão enquanto sua hipertrofia muscular exagerada o ajudava a esmagar o monstro à sua frente com espada e escudo: lado a lado, diante de seus olhos, havia uma criança de cabelos ruivos e uma velha encarquilhada de manto e capuz negros; a criança era ele. E a velha? Esta retirou o capote, que encobria parte de seu rosto com uma sombra, e revelou a face cinza e a expressão de escárnio. O pequeno Nascimento e a senhora Morte, que se dobraram em si mesmos, despidos, e as rugas dela desapareceram. Os cabelos caíram e se transformaram em fetos. Cabiam em um mesmo ventre, de uma mulher jovem, que possuía metade do rosto de uma beleza indizível e a outra metade apodrecida.
Lágrimas escorreram pelo rosto arregalado de Edgar após despedaçar o crânio do demônio. Só conseguiu tornar a vê-lo nesse momento. De resto, ficara inconsciente do combate. O corpo continuara a lutar; a mente passava por delírios e o espírito transpirava em agonia. Sua consciência estaria prestes a se dissolver? "Não quero ser possuído… Não posso!" O rosto da mulher se esvaziou.
– Um maldito demônio está possuindo o nosso companheiro! – A superfície das palavras disfarçava uma camada mais sórdida. Por dentro, Gilles queimava de alegria.
Fiódor e Antenor estavam exaustos depois de uma vitória suada contra a legião de inimigos, cujos corpos negros jaziam sem vida sobre a neve.
O lusitano se voltou com temor à procura do inglês e o russo preferia não ver.
– Edgar está mesmo sendo possuído! – Gilles esbugalhou o sorriso.
Antenor sabia sobre a sinistra possibilidade que os cruzados precisavam encarar, ainda que nunca tivesse presenciado uma possessão. Sempre buscara acreditar que consigo ou perto de si jamais ocorreria.
Os padres da Ordem do Graal explicavam aos melhores guerreiros da Igreja que, justamente por terem o sangue do Senhor em suas veias, precisavam, o tempo todo, velar por si mesmos e pelo próximo. Atitudes e pensamentos pecaminosos, como a ira incontinente ao lutar contra demônios, ou a luxúria transbordante ao quebrar o voto de castidade, provocavam o vazamento ou a evaporação do sangue de Cristo (o que provavelmente estava ocorrendo com Edgar, seus músculos banhados em suor); e a seguir o mau cheiro do delito gravíssimo, de ter feito mau uso do mais sagrado dos alimentos, atraía demônios poderosos assentados ainda no Inferno, que emergiam e tomavam o corpo do cruzado. A possessão era considerada quase inevitável. A única chance de salvação residia no guerreiro conseguir reter a maior parte do sangue de Cristo durante o furor do processo, o que era árduo de lograr.
Edgar, em específico, experimentava ao mesmo tempo uma presença aterrorizante ao seu redor, de uma perversidade monstruosa, capaz dos piores crimes contra as mais inocentes criaturas, e uma sensação de orgasmo que invadia todos os seus poros. Como se estivesse prestes a ejacular não só pelo pênis como pelo corpo inteiro. Mas então, se o fizesse, a possessão estaria consumada e sua consciência, já diluída, desapareceria talvez no Limbo. A Igreja não definira de forma categórica para onde iam as almas dos cruzados possuídos.
– Resista! Você tem que resistir à tentação, Edgar! – Antenor tomou coragem e reuniu suas forças para salvar o companheiro.
Mesmo que não fossem amigos, não podia tolerar perder qualquer ser humano para o diabo; e algum dia poderia lhe acontecer o mesmo, agora cogitava essa realidade, e talvez viesse a precisar de alguém para impedir o despencar no oblívio.
– É inútil! Ele já está perdido! Não vê como esse tolo se entregou ao pecado? – Gilles parecia em êxtase. O inglês, agachado, tremia, suava e chorava, com a boca e os olhos escancarados, a espada e o escudo no chão. Irradiava uma aura vermelha, cinza e negra, que embrulhava o estômago do luso ao emitir descargas de energia hostil. – Um demônio logo irá possuí-lo. E quando isso acontecer será bom, pois teremos a oportunidade de exterminar mais uma criatura infernal, talvez uma das mais poderosas, de uma vez por todas, antes que se manifeste em nosso mundo! Não acredito que um demônio em um corpo humano tenha a mesma força de um demônio em seu próprio corpo. Mas como são seres essencialmente espirituais, apenas adensados em nosso mundo, acredito que destruir os corpos que manifestam e possuem signifique exterminá-los concretamente! Exterminar suas almas!
– Cale a boca! – Antenor esbravejou.
Fiódor, apesar da aparente indiferença por estar de costas para os demais, carregava consigo uma expressão de pesar: "Não adianta. É muito difícil alguém escapar de uma possessão quando o processo tem início."
– Vamos, Edgar… – Ainda que sofrendo com uma cólica crescente, o lusitano se abaixou para auxiliar o cruzado em pânico. – Você consegue!
– Imbecil. Serão esforços em vão! Ele será possuído e depois morto por mim, já que não vou permitir que principiantes como vocês lutem contra um inimigo de primeira categoria.
– Eu disse para você calar a boca, seu filho da puta. – Do latim culto que os cruzados costumavam usar entre si e com os padres, passou para uma variação vulgar.
Fiódor sorriu de canto de lábio, mas só mudaria de posição após o resultado. Não tinha ânimo para acudir um companheiro e acabaria por atrapalhar Antenor em sua boa vontade. Respirando fundo, apenas buscaria mais forças e se arriscaria com o intento de sobreviver.
– Hahaha! Deixou de lado toda a polidez. Como é hipócrita! Esse inglês imundo nem era seu amigo! – zombou Gilles.
– Não é uma questão de amizade, e sim de caridade cristã – retrucou Antenor.
– Não temos que ter compaixão dos pecadores e dos demônios.
Antenor abandonou a discussão com o francês para olhar nos olhos de Edgar: neles residia todo o terror; a vontade desesperada de não perder a alma.
Sem palavras, irradiou a intenção de despertar o outro.
Nessa hora, os olhos negro-vermelhos foram se tornando dourados. Depois brancos, com o desaparecimento de íris e pupilas. Até que, por fim, estas reapareceram na cor original. O suadouro foi parando e os músculos desincharam.
A possessão fora impedida.
O português não se deixou incomodar pelos odores desagradáveis e abraçou o companheiro, o que extinguiu a aura sinistra. O inglês voltara ao normal. A presença maligna fora rechaçada.
– Não estou em pedaços – sussurrou.
– Inacreditável. – Fiódor pronunciou seu sorriso comedido e se voltou para fitá-los já com o semblante sério.
Gilles não dissimulou a desilusão e desta vez foi quem virou a cara. O russo reuniu as forças para se aproximar.
– Agradeço a Deus. Mas devo minha vida a você. Obrigado, meu irmão. – Edgar retribuiu o abraço e se reergueram juntos. – Ainda me custa acreditar no que se passou.
– Mas é nesse tipo de vivência que se fazem presentes os milagres do Cristo. É para isso que existimos: pelo nosso próximo – disse Antenor.
– Ah… Obrigado. – Não tinha mais como nem o que falar.
– Poupe as palavras e repouse o corpo. – Fiódor interveio. – Agradecer já foi o bastante.
Antenor, sério, não resistiu e olhou para Gilles. O albino continuava sem fitá-los.
"E gente como ele? Seria capaz de resistir a uma possessão?" Questionou-se. "Se resistisse, talvez nem ficasse grato caso recebesse uma ajuda... Ou quiçá eu me equivoque. A vida é sempre imprevisível neste mundo perigoso, assim como a fé vai além da razão."
Notou que Fiódor tremia. Sentia mais frio. Seu casaco apresentava rasgos que revelavam partes de sua armadura azul e dourada.
A neve caía. Não bastava o chão; agora o ar: cada floco brilhante demais para ser capturado.
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