Manhã de euforia em Sevilha. As ruas estavam bem mais movimentadas do que de costume, com o principal mercado da cidade em polvorosa:
– Comprem hoje! Último dia para a venda!
– Bonecos por um maravedi! Efígies por quatro!
Os comerciantes não paravam de gritar e as pessoas adunavam-se às centenas, desesperadas, em volta das tendas e barracas. Algumas se empurravam, outras pulavam umas sobre as outras. Não eram respeitados nem os mais velhos, lançados com violência de queixo no chão quando significavam alguma forma de concorrência, os pisoteios não raros.
O Auto da Fé fora anunciado com quatro semanas de antecedência. Começara com a proclamação, na praça principal, por parte de um sacerdote inquisidor. E a divulgação prosseguira nos dias seguintes, durante as missas e por meio de panfletos.
Como sempre acontecia na iminência de tamanho evento, afluíam cristãos dos territórios vizinhos e mesmo peregrinos de nem tão perto, aos quais, de alguma forma, chegara a notícia.
Os bonecos de pano ou madeira e as efígies de argila, cera ou pedra representavam os condenados, vestidos com os mesmos trajes. Deveriam ser jogados nas fogueiras pelos espectadores depois que estas já tivessem completado algum tempo acesas, após a autorização do inquisidor de posição mais elevada presente no local. Do faturamento das vendas, a Igreja recebia a décima parte.
O ar parecia mais agitado e inflamado com todas aquelas vozes quentes, como se a cidade tivesse dez vezes mais habitantes, todos eles exaltados, e assim prosseguiu por todo o dia.
Ao entardecer, Sevilha já respirava efetivamente chamas, com um pôr do sol mais agressivo e vermelho do que de costume. O próprio astro-rei aparentava ser um olho carregado de ódio, o rosto do céu mergulhando em um poço de sangue borbulhante. Faltava o outro olho, ao que tudo indicava queimado pelas labaredas em volta.
Os Autos da Fé haviam sofrido algumas mudanças no decorrer dos séculos e tinham se tornado cada vez mais espetaculares, grandiosos e lucrativos. No entanto, poucos tinham acesso ao que os antecedia.
– Porco imundo! – Ao chicotear, com toda sua força e fúria nos olhos ferventes, um homem nu, dependurado ao teto por correntes, o cruzado Edgar abria sulcos em sua pele. – Como ousa persistir na recusa em pronunciar o nome de Cristo?! – Como a língua fora arrancada, era óbvio que o sujeito não podia pronunciar nome algum. – Só posso dizer que está perdido! Tudo o que fizemos, que fique bem claro, foi ad eruendam veritatem1. Mas você continua a renegar a fé cristã! – Seus cabelos ruivos se agitavam, sua barba cheia de respingos de sangue.
Encontravam-se em uma das prisões secretas do Tribunal da Inquisição, na periferia da cidade. O lugar era úmido, frio, e lá estavam vários acusados, já obtidas as confirmações de alguns dos delitos.
Um de cada vez, Edgar os analisava e punia, seu rosto quase tão intimidador quanto o da serpente que envolvia a cruz bordada no centro de sua túnica branca com detalhes dourados, azuis e carmesins, que vestia sobre a cota de malha. O carrasco costumeiro fora dispensado, mas alguns outros funcionários estavam ali para cooperar.
O secretário da Inquisição, trajado com uma casula negra e com um pequeno barrete também preto na cabeça, magro e um pouco trêmulo, porém mesmo assim de caligrafia impecável, permanecia colado ao réu, com a finalidade de escutar até os seus suspiros. Analisava o semblante, já que este não tinha mais como falar, e registrava de forma minuciosa o que ocorria.
Só não estava mais atento do que o cardeal Tomás de Torquemada, de batina e barrete cor de sangue, um homem na faixa dos cinquenta anos, de rosto quadrado e feição petrificada.
– Já não acha que é o bastante, Eminência? – O médico ali presente, um sujeito pequeno de barrete preto, mas trajado de verde, falou com o cardeal, visto que seria inútil se dirigir ao cruzado, que parecia fora de si. Seus olhos quase saltavam das órbitas.
– Ainda é muito pouco. – Torquemada, que fora nomeado inquisidor-geral pelo papa, meneou a cabeça em sinal de negação. – Esse homem chegou a afirmar que os apóstolos nunca foram agraciados pelo Espírito Santo. – Natural de Valladolid, residia agora em Roma, mas sempre se esforçava para comparecer a Autos da Fé de grande porte. – É um ingrato para com Deus e seu Verbo.
O médico achou melhor voltar ao silêncio. Não parava de engolir a saliva. Já testemunhara diversas torturas em tempos recentes. Talvez sua garganta ardesse porque imaginava como seria ter um trapo inserido ali. Essa pena completada com o lento esvaziamento de jarros d’água na cabeça do imputado. Reproduzia-se o terror do afogamento, ao fim o pano retirado com toda a força.
Já prensas de mãos ou pés faziam-no pensar em seus ossos e carne sendo esmagados. Talvez fosse digno de todo o desprezo, e de ter seu membro viril reduzido a uma pasta sangrenta, por ter se excitado com uma jovem nua que examinara, a fim de constatar sua boa saúde antes que fosse colocada sob um fino jato de água gelada e deixada num cavalete nessa condição por um dia e meio.
Era provável que fosse ainda pior a roda sob a qual havia brasas incandescentes, o pobre-diabo amarrado com as costas à parte externa, o giro se dando bem devagar…E como seriam as dores nas costas de um homem acorrentado de cabeça para baixo a uma cadeira de ferro?
Em outra cadeira, repleta de espigões, o mínimo movimento significava que o ferro perfuraria a carne nua.
E havia uma terceira, com o assento metálico aquecido pela fogueira abaixo.
Quase nenhum réu resistia sem confessar.
– Vamos ao próximo herege! – Edgar cuspiu com desprezo no desgraçado que açoitara. Dirigiu-se com seu azorrague para a próxima vítima.
Seguido pelos demais, encarou com severidade, os olhos crispados, uma jovem cigana de longos cabelos pretos, sobre os quais se viam pétalas de rosa murchas.
Vestia um corpete dourado sem pregas e uma longa saia colorida que, rasgada em mais de um trecho, deixava entrever a beleza das pernas.
– Uma acusada de bruxaria, Eminência? – perguntou a Torquemada.
– Isso mesmo – replicou o cardeal. – E essa fala. E muito bem por sinal. – Fitou-a de alto a baixo.
Estava com os braços levantados, seus pulsos amarrados por cordas, porém tinha os pés livres.
– Parece que hoje não está muito disposta. – A expressão no rosto da moça, de íris negras e vívidas, estava carregada de uma certa imponência. – Pois eu lhe darei disposição. – Agitou com fúria o látego e golpeou-a na bochecha, produzindo as primeiras marcas. – Vamos, confesse! O que espera? Que Satanás venha salvá-la?
– E se lhe dissesse que sim? – Conquanto fritada pela dor, respondeu com altivez.
Torquemada franziu a fronte e baixou um pouco a cabeça. O médico meneou a sua para os lados e o escriba anotava cada detalhe.
– Vocês não sabem de nada. – Era uma jovem persistente.
– Cale essa sua boca imunda, prostituta! – Edgar discerniu no movimento injurioso daqueles lábios a sinuosidade de duas serpentes. – Sua beleza é uma armadilha e sua vaidade prova que não passa de um demônio libidinoso sob as ordens de Lilith e seus súcubos. – Direcionou o olhar para os pés nus, delicados, de unhas bem cortadas.
– Nossos costumes não têm nada que ver com Lilith ou Satã. Vocês, imbecis e ignorantes, não entendem que amamos a vida e a celebramos com alegria, não com culpa e pesar. – Não se tratara da única cigana capturada. Um grupo inteiro fora emboscado, mas os que se declararam cristãos ou se converteram terminaram absolvidos, apreendidos os objetos de ouro e prata que tinham consigo, a fim de arcar com as despesas do Tribunal para com os que persistiam no paganismo.
A princípio, a Inquisição não perseguia os não católicos. Limitava-se aos que, pertencendo à Igreja por terem sido batizados, tinham se apartado dela e manchavam a pureza da doutrina, continuando a se dizerem católicos apesar de teses e práticas contrárias. Ou seja, hereges e apóstatas.
O cenário mudara a partir do momento em que o Tribunal passara a acumular funções de conversão, com maior força no Ocidente. Isso porque se julgara que as conversões, firmando a verdadeira fé, reduziriam a quantidade e as ações dos demônios.
– Você não se arrepende dos seus pecados, portanto. – Com ainda mais força, Edgar atingiu o pescoço da cigana e o médico quase sentiu na própria pele a dor da carne rasgada. Se os cruzados tinham o sangue de Cristo em suas veias, como um deles existia sem manifestar o mínimo sinal de compaixão?
A propósito, agora que Torquemada se tornara o Grande Inquisidor, aqueles homens estariam com toda a certeza muito mais presentes nos processos contra hereges e pagãos, pois era um cardeal da Ordem do Santo Graal, conhecida pelo vulgo sob a denominação de Ordem dos padres vermelhos, como ficava evidente pelo cálice bordado em ouro do lado esquerdo de seu peito e pela presença da cor rubra em suas vestes, algo a que nem todos os cardeais aderiam em todas as ocasiões.
Por um momento, passou pela cabeça do médico que, se preciso, Tomás de Torquemada faria os condenados, apartados do sangue de Cristo, beberem da taça de seu próprio sangue.
– Homens como você são o pior da face da Terra. Covarde! Por que não se afoga no seu mijo? – Aquela mulher tinha mesmo sangue ruim, parecia difícil de dobrar, mas Edgar não desistiria:
– Ainda persiste em seu orgulho, bruxa desgraçada? – As chicotadas que se seguiram terminaram de rasgar o que restava da roupa da jovem. Embora não o admitisse para si, queria vê-la nua. Espancar mulheres, já que não podia tê-las, era fonte de indizível prazer, ainda que fugaz.
Quando torturava um herege, só sentia a ira tomar conta de sua cabeça, que doía. Conseguia ser mais paciente e dar mais golpes fortes do que golpes em quantidade.
Já com mulheres, seu rosto ficava muito mais vermelho, seus olhos se arregalavam e assumiam a aparência de brasas, sua mão não limitava a velocidade e a salivação aumentava. Deixava a saliva pingar no chão ou grudar na barba. Não sentia dores, apenas espasmos, que conseguia disfarçar a custo; e bater com o instrumento de tortura era como deslizar por um corpo feminino seus dedos famintos de pele.
Conseguia diminuir o ritmo somente ao ejacular, e então seu comportamento voltava a se parecer, em geral, com o que tinha em relação aos hereges do sexo masculino. A não ser quando, após apenas alguns instantes de desaceleração, queria mais. E nesses momentos precisava que alguém o detivesse antes que a morte da vítima precedesse seu abrandamento.
– Já chega! Se continuar assim, o senhor irá matá-la! – O médico se desesperou. A cigana, quase nua, ficou tão mole e sem forças que sua existência dava a impressão que se dissolveria.
– Basta, Sir Edgar. – O cruzado só obedeceu à voz fria de Torquemada: deteve-se no ato ao ouvi-la, a princípio trêmulo, aos poucos voltando ao normal. Precisou se contentar com apenas um gozo.
– A bruxa orgulhosa não quer se retratar – justificou-se, arquejante.
– Sei que não fez por mal, meu filho, mas não deveria se exceder assim. Ela terá o que merece em breve. Nós, homens de Deus, não podemos sujar nossas mãos dessa maneira. Deixe que o braço secular cuide disso.
Edgar mordeu o lábio inferior e baixou a mão que empunhava o látego. Seguiu Torquemada, que já tinha ido adiante.
Goteiras persistiam entre as paredes escuras e molhavam o chão borrado de sangue. Pararam defronte a uma porta de ferro.
– Agora vocês dois fiquem aqui. – O cardeal se dirigiu ao médico e ao escrivão, que também tinham vindo atrás dele. – Pois não é um ser humano o que está aí dentro. – Ambos trocaram olhares receosos.
De fato, um demônio fora arrastado até ali havia pouco tempo. Por outro cruzado.
Qual a razão da criatura não estar morta e sim detida? O que levara um guerreiro da Igreja a prendê-la ali? Por acaso desconhecia a proibição de manter próximos pagãos ou hereges e criaturas malignas, pois poderiam entrar em conluio?
Torquemada estava pronto e Edgar, com um olhar sério e atento, também aparentava estar.
Entraram e fecharam a porta. Dentro, a iluminação era ainda mais escassa, proporcionada por uma lamparina mais fraca do que as presentes em outras áreas da prisão, pendurada ao teto por três correntes.
A primeira claridade maior a ser notada foi a de um olho que se abria, sua íris oval negra posicionada mais à esquerda em um fundo dourado.
– Conserte a tolice que Gilles cometeu – ordenou o cardeal. Fora sobretudo para aquilo que viera com Edgar, estimulando-o com o espancamento de hereges, algo que sabia que entusiasmava o cruzado e que, pelo passado deste, até consistia em um pouco mais do que mero alimento para sua euforia. – Faça o que precisa ser feito.
O corpo verde-escuro do monstro estava camuflado nas trevas. Apesar de muito musculoso, não tinha forças para se soltar das correntes que o prendiam pelas mãos, estas mais claras, nem para se livrar da crueldade do guerreiro que o trouxera. Havia facas e adagas cravadas em sua carne, algumas delas serrilhadas, outras mais curvas e afiadas.
Torquemada encarou o demônio por alguns segundos. Havia mais melancolia do que ódio no olho aberto da criatura, cuja barba parecia constituída por espigões semelhantes às duas grandes presas que saíam de sua boca, uma das quais estava quebrada.
O cardeal abaixou a cabeça e Edgar desembainhou sua espada bastarda, com uma serpe gravada na lâmina e inscrições entalhadas em latim na empunhadura. Eram trechos da Escritura.
Contudo, a arma voou longe no momento em que seria utilizada e foi se fincar na porta, para o susto tanto do Inquisidor quanto do cruzado.
Alguém emergiu da escuridão, com sua lâmina na garganta do inglês: era outro cruzado, nas sombras até pouco antes; encolhido e em um traje negro, ocultara sua cabeça branca.
– Que brincadeira foi essa, Gilles? – O Inquisidor indagou em tom de reprimenda. – Edgar, não reaja.
– Isso mesmo, Eminência. Diga a ele para ficar paradinho enquanto lhe corto a garganta, para assim o sangue jorrar fresco na minha...
– Gilles, repito para que não brinque com coisas sérias!
– Vossa Eminência disse outra coisa antes, mas não importa! Não tenho a intenção de matar você, meu irmão. – O olhar de serpente albina gelou Edgar, que de qualquer maneira não estava conseguindo se mexer. – Só não interfiram na minha tarefa. – Afastou a espada fina e afiada do pescoço do cruzado inglês, que recuperou os movimentos, com a pele, que gelara, persistindo assim.
Edgar visualizou seu sangue como se escorresse azul em seu interior, o que lhe causou um medo oposto ao habitual rubor impetuoso. Isso que já não simpatizava com o francês.
– Você capturou o último demônio que vinha apavorando os arredores de Sevilha. A sua missão, portanto, está encerrada. Não torturamos as criaturas das trevas. São perigosas demais para serem mantidas vivas. Ordeno que o execute agora. – A tentativa de imposição de Torquemada.
– Esse monstro não está aqui para confessar nada, por isso não planejo meramente torturá-lo. Claro que irei executá-lo, Eminência! Tudo a seu devido tempo. – Albino e de aparência andrógina, seus cabelos longos e brancos e o rosto delicado e liso, era impossível determinar a um primeiro olhar se Gilles se tratava de um homem ou de uma mulher. – Só quero antes testemunhar seu sofrimento e fazer com que sinta na carne a dor que causa aos filhos de Deus.
– Você sempre teve uma personalidade difícil. Ordeno que o execute agora.
– Agora sim o senhor repetiu o que tinha dito antes.
– Eminência, não pode permitir esse tipo de provocação! – Uma cusparada saiu da boca de Edgar junto com suas palavras.
– Você não se intrometa, com essa sua barba suja cheia de bichos, mais feia do que a de qualquer monstro, que certamente não lava há mais de um ano! Imagino como os piolhos se levantariam e se debateriam se entrasse na água!
– Não trate assim seu companheiro e irmão. – Torquemada ainda tentava impor a Gilles seu tom severo, sem muito êxito.
– Ele é lamentável, Eminência! – O imprevisível francês girou o quadril e lançou sua espada na direção do demônio.
A lâmina estilhaçou parte da barba e atravessou a garganta da criatura, que rugiu, fazendo-se ouvir pela masmorra e aterrorizando os que estavam do lado de fora.
Dentro, Gilles encarou o inglês e abriu um sorriso de orelha a orelha, ambas quase tão pontiagudas quanto as lâminas que tanto o agradavam.
Ele que não agradava em nada a Edgar, que se perguntava por que Deus permitia a existência de criaturas do gênero entre os homens, e ainda por cima lutando por Ele, quando o que via mais aparentava ter sido cuspido pela boca do Inferno.
1 Para averiguar a verdade.
No entanto, poucos tinham acesso ao que os antecedia.
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