Burgos, capital do reino de Castela, atravessada pelo rio Arlanzón, era uma cidade caracterizada pelos bairros divididos por muros. Estes contavam com torres elevadas onde ficavam os vigias que verificavam a passagem dos residentes entre uma seção e outra, necessárias permissões específicas para vagar por determinadas áreas, como o gueto judeu e a zona do castelo. Livre a circulação pela região de feiras e bazares, onde, por ser muito movimentada, pululavam menestréis em busca de notoriedade, mais ou menos bêbados, e atores e pantomimeiros que improvisavam palcos e montavam seus espetáculos itinerantes, sobretudo durante a primavera e o verão. Algumas obras eram centradas em cenas do cotidiano, às vezes improvisadas; e havia também sátiras e farsas, além de trabalhos sérios que representavam as campanhas de expulsão dos muçulmanos e expedições contra demônios, afora trechos bíblicos.
As peças se tornavam menos difusas em dias de inverno rigoroso como o daquele ano. As árvores ficavam quase sem folhas e a neve costumava tingir tudo de branco, inclusive as doze portas de acesso.
Destas, a mais empregada era o Arco de Santa Maria, que comunicava a ponte sobre o rio Arlanzón com a praça da catedral, o centro da fé urbana.
Em destaque em seu topo, acima das figuras históricas esculpidas, entre as quais os lendários juízes de Castela, a bandeira de Burgos, composta por duas franjas horizontais, a superior vermelha e a inferior marrom, com o escudo da cidade ao centro. Este se constituía, primeiramente, da imagem de meio corpo de um rei, cujo manto púrpura tinha ali representados três castelos com três torres cada. A coroa do soberano primava pela pedraria, com acima uma muralha que ia de parte a parte e se apoiava nos extremos, cada qual sobre um escudo com um castelo de ouro desenhado no meio.
Mais no alto, a coroa se repetia em maior tamanho e viam-se, dos lados, ramos frutados em ouro e fitas, nas quais se lia Caput Castellae, Camera Regia e Prima Voce et Fide, ou seja, “Cabeça de Castela”, “Câmara do Rei” e “Primeira em voz e lealdade”.
Naquela manhã, com a neve caindo, apinhavam-se do lado de fora da catedral, embaixo de tendas de lona e pele de animais, os populares à espera da saída triunfal do soberano recém-entronizado, que recebia seus vassalos no interior da igreja. Clérigos e nobres, os únicos com permissão para entrar, vinham prestar suas homenagens ao novo rei, que ademais, poucos dias antes, completara trinta anos.
Um depois do outro, em sequência prescrita de acordo com suas posses, seus títulos e o tempo que os detinham, largavam as espadas e báculos, descobriam as cabeças de capuzes, elmos, barretes, mitras ou diademas e se ajoelhavam diante do supremo protetor de Castela, que estava revestido por um manto de cor púrpura.
Seu cinto continha uma cruz de ouro, um cetro de sua mesma altura que culminava em um rubi estava encaixado no espaldar de seu trono e a coroa suspensa sobre sua cabeça lembrava um castelo dourado de três torres.
– O senhor aceita, sem reservas, vir a ser um de meus fiéis homens? – Fazia a todos a mesma pergunta.
– Sim, eu aceito. – E o rei fechava entre suas mãos as do suplicante e selava o pacto com um beijo na testa, reerguendo-o.
Na sequência, fazia sinal para que um assistente, vestindo um manto azul que arrastava no chão às suas costas, trouxesse um escrínio que continha relíquias de santos, desde pedaços de unhas e fragmentos de ossos a anéis que teriam pertencido a tais homens de espírito elevado.
Sobre esse relicário que era feito o seguinte juramento protocolar:
– Prometo por minha alma que de hoje em diante serei fiel ao rei Afonso e que manterei minha lealdade a ele mesmo que me ameacem de morte ou torturem minha família, à boa-fé e sem nenhuma fraude. Sobre nós há de descer a cruz.
As mulheres permaneciam do lado esquerdo da igreja, as donzelas em sua maioria com as cabeças encobertas por véus transparentes, escuros os das damas casadas. O pequeno Miguel, filho do alferes-mor Rodrigo, olhava de um lado para o outro, curioso para discernir-lhes as faces. Notava umas mais coradas, e estas lhe pareciam as mais bonitas.
Fazia caso das que cochichavam e, às vezes, cutucava a mãe – as crianças até os oito anos de idade ficavam próximas das mulheres – para comentar que não respeitavam o cerimonial.
– Shhh! – Ela o repreendia. – Quer que o seu pai lhe dê uma surra depois? Você que precisa se disciplinar, Miguel. Não importa o que os outros fazem. O rei os punirá se necessário e justo. Dê você o exemplo. – Era uma mulher altiva e longilínea, de longos cabelos castanhos e olhos da cor de um tronco de carvalho. Seus traços uniam força e delicadeza.
Dom Rodrigo avançou para pronunciar o juramento e o garoto inflou o peito de orgulho. Já a mãe não parecia assim tão entusiasmada. Apesar das palavras ao filho, entediava-se. O marido continuaria a desempenhar a mesma função e não via a hora que a cerimônia acabasse. Mas a criança ficava fascinada com cada detalhe. Prestava atenção até demais. Se pudesse, congelaria o momento, já eternizado em sua mente.
A mãe estava mais interessada nos artefatos presentes na catedral, como um vaso de pórfiro ao qual os ourives tinham dado a forma de um leão. Talvez desejasse um destes em seus aposentos. Poderia mandar fazer uma cópia.
Também eram impressionantes um cálice de sardônica posto sobre o altar e os ornamentos esmaltados, do escrínio de cores brilhantes, que refletia temas dos Evangelhos, ao crucifixo repleto de pedras preciosas, decorado com cenas do Antigo Testamento consideradas proféticas em relação à Crucificação. Na verdade, tratava-se de um relicário que guardava uma lasca de madeira que se dizia que pertencera à verdadeira cruz de Cristo, que o rei Pedro, o Devoto, avô do rei Afonso, adquirira junto ao imperador de Constantinopla.
Para além dos movimentos humanos, o filho se sentia atraído sobretudo pela arquitetura, com as altas abóbadas do teto apoiadas por um esqueleto de nervuras de pedra e ogivas, a estrutura aberta da galeria – uma nave semicircular ficava atrás do altar – permitindo que o coro fosse inundado de luz.
O menino deitava seus olhos vívidos também sobre a decoração. Seu pai explicara-lhe que a figura de olhos vendados em um dos vitrais da igreja, que segurava a coroa de espinhos com uma mão e com a outra empunhava uma lança, representava o judaísmo, cego diante da divindade de Jesus e por isso culpado por sua morte. Os hebreus, que viviam separados dos cristãos, não eram queridos por ninguém na cidade. Uma aversão que era transmitida às crianças.
Miguel morria de curiosidade de entrar no bairro judeu e já se perguntara por que os cavaleiros não entravam lá e massacravam aquela gentalha. Dom Rodrigo dera ao filho a seguinte resposta:
– Por mais que sejam pessoas da pior espécie, assassinos do Salvador, deicidas, ainda são seres humanos, e Jesus Cristo nos disse para perdoar os pecadores e amar nossos inimigos. Se eles ainda existem, é porque o Pai quer que sofram aqui na Terra pelo que fizeram, e eles mesmos sabem disso. Já conheci judeus que culpam a si mesmos por sua condição marginal. Ainda que não reconheçam que erraram ao matar Jesus, sabem que cometeram pecados e que por isso perderam a Terra Prometida, que nós também acabamos perdendo com a destruição de Jerusalém. Talvez Deus, em sua infinita bondade, planeje algum dia perdoá-los, afinal são o povo de Moisés e Abraão, embora tenha degenerado, e bastará que sofram na carne, sem que seja necessário que os demônios do Inferno se abatam todos sobre eles.
Uma resposta distinta obtivera de Dom Marcos Saavedra, bispo de Burgos e amigo da família:
– Cometeríamos uma afronta aos ensinamentos de Cristo se pagássemos a morte com a morte, o pecado com um pecado ainda pior. Ele nos pediu para que amássemos nossos inimigos, já que amar os amigos é fácil e cômodo. Não se deixe contagiar pelo ódio dos adultos! Continue sendo sempre uma criança e como tal entrará no Reino dos Céus, meu filho. Se Cristo desceu, foi para redimir nossos pecados, de toda a humanidade, e ele não teria conseguido isso, ressuscitando, se não passasse pelo martírio proporcionado por Judas Iscariotes e pelos judeus, que nada mais foram do que instrumentos para que o Senhor nos mostrasse sua capacidade infinita de amar e perdoar. Jesus poderia ter reagido e com seu poder fulminado os infiéis. Mas, se Ele não fez isso, quem somos nós para fazê-lo? Pelo contrário: disse que aquelas pessoas não sabiam o que faziam. Deixou isso claro! Diante de todas as evidências, portanto, não deveríamos julgar mal os hebreus, que, ao contrário dos maometanos, jamais tomaram terras cristãs. Dar a outra face, quando apenas recebemos um tapa, não um golpe de espada, é o verdadeiro sentido da passagem do Filho pela Terra. – E as opiniões divergentes pareciam convergir com as diferenças na aparência e no jeito de ser e agir: Dom Marcos era gordo, grisalho, faltavam-lhe alguns dentes; Miguel gostava de brincar com suas bochechas e, quando o humilde bispo ficava a sós com o garoto, de montar em suas costas; já Dom Rodrigo era alto, magro e se mantinha sempre rijo; seus cabelos, sua barba e seu bigode, de coloração clara, muito bem aparados.
O garoto admirava o pai, mas o tempo faria com que descobrisse nele um homem autoritário, incapaz de permitir falhas. Os servos eram com frequência punidos com pauladas ou chibatadas e, na única vez em que se lembrava de sua mãe ter levantado a voz numa discussão, viera, na sequência, o estalido de um tapa.
Ele próprio sofreria, nos primeiros anos de treinamento, com os exercícios rigorosos e sobretudo com o ar de decepção nas ocasiões em que a execução destes não saía perfeita. Como se tivesse a obrigação de nascer sabendo montar a cavalo! Assim como quando, ainda pajem, derramar um pouco de vinho fora da taça significava dias de sermões. Podia se sentir como o par de mouros representados na base de uma das colunas da catedral, acorrentados; a escultura transmitia com perfeição o sofrimento de ambos.
Já adolescente, dolorido após ser golpeado algumas vezes pelo estafermo1, buscava alívio ao ouvir missa e viria a prestar atenção em outro detalhe da igreja: o baixo-relevo onde estava retratado o Juízo Final, as figuras no centro da fileira mais baixa representando almas de recém-falecidos que aguardavam seu destino, acima demônios agarrando os maus e jogando-os na bocarra monstruosa do Inferno, dentro da qual se contorcia uma massa de homens e mulheres. Um anjo fechava a porta do lado de fora e no alto os justos recebiam sua recompensa na companhia do patriarca Abraão. Acima de tudo, a figura do Cristo, de volta no papel de um rígido juiz, a mão direita erguida em saudação e a esquerda abaixada em condenação, com a seu lado um mensageiro divino que tocava a última trombeta, que provocava o levantar dos mortos. Calafrios e fascínio se mesclavam na alma do jovem Miguel ao contemplar aquelas cenas: "No meio de toda a destruição que ocorrerá nos últimos dias, quantos inocentes não serão varridos pelo caminho? Serão mártires! O bispo Marcos me disse uma vez que uma folha nunca cai em vão, mas, mesmo assim, se o Anticristo surgir antes de eu morrer, gostaria de ficar para ajudar o máximo possível. Talvez quase ninguém sobreviva! Mas espero até lá estar forte e poder proteger de alguma maneira as pessoas e os lugares santos e consagrados. Os demônios vão entrar por todas as portas, invadir todos os lugares, e antes que Jesus desça teremos ainda mais sofrimento do que temos hoje. Mesmo os cruzados não serão o bastante. Ou Deus é misericordioso e faria a terra rachar para os pecadores impenitentes serem logo tragados pelo Inferno? Às vezes Deus me parece cruel, impiedoso. Enquanto Jesus não era dessa forma. Podem ser tão diferentes o Pai e o Filho? Não são, na verdade, um só? Qualquer dia, preciso perguntar o porquê disso ao bispo. Mas toda vez me esqueço", e quando chegou a idade de ser consagrado cavaleiro, passou a noite anterior à cerimônia a orar de joelhos na igreja. Às vezes se arrepiava, ao sentir a aproximação de sombras, e suas ideias vagueavam. Contudo, ao pedir a Deus para que o ajudasse a prosseguir em seu labor, os incômodos iam embora e a fé se reforçava, orações novas brotavam de seus lábios e tinha a impressão de que o cenário se enchia de luz. Ao mesmo tempo, abençoava suas futuras armas e armadura, e montava vigília sobre estas para bloquear o acesso a qualquer demônio. Se algum aparecesse, teria que evocar a proteção dos arcanjos e matá-lo ali mesmo. Para seu alívio, nenhum veio.
O dia seguinte teve início com um demorado banho ritual e, assim que se sentiu limpo não só no corpo como na alma, vestiu uma túnica com fios de ouro, um manto púrpura e calçou sapatos de seda, no momento apropriado levado à presença do rei e da fina-flor da nobreza. Foi julgado digno das esporas de ouro, de um peitoral de fino lavor equipado com uma camada dupla de malha, de uma lança de freixo e ferro, de um escudo enfeitado com leões pintados e sobre eles a imagem do arcanjo Miguel, que beijou antes que fosse pendurado em seu pescoço, e, por fim, de uma antiga espada presenteada pelo soberano, que lhe tocou os ombros com sua própria lâmina para sacramentar a nova condição. Entre os jovens nobres presentes, predominavam seus amigos de infância; e logo que as solenidades acabaram, houve no castelo um dia e uma noite de banquetes, pois era o filho único do alferes-mor. Justas e torneios, dos quais Miguel ainda não participaria, teriam lugar na sequência. Também lhe foi apresentado seu escudeiro:
– Este é Diego, que daqui por diante será também seu melhor amigo e conselheiro. – O pai colocou diante do rapaz um homem já feito, com seus trinta e poucos anos e cabeleira castanha basta, moreno e de olhos alegres, condizentes com o sorriso simples:
– Será uma honra ficar ao lado do senhor, jovem amo. – Ajoelhou-se para beijar a mão de Miguel.
A família se sentou para comer. Diego se aproximou com sua rabeca e se pôs a tocar.
Em Castela, escudeiros podiam ser tanto jovens nobres em treinamento para se tornarem cavaleiros – etapa que Miguel já cumprira – como plebeus de reconhecido valor, que porém, diferentemente dos primeiros, não ascendiam. O caso de Diego. E os membros desta segunda categoria tinham a obrigação de entreter seus senhores.
Como num jogo, sua arte lhes permitia selecionar uma donzela nobre como inatingível objeto de devoção. Quase que um paralelo com a Virgem Maria. E a escolhida de Diego pertencia à família que se sentara ao lado da do alferes-mor. Uma jovem chamada Maria Cristina, a quem agraciou com seus versos:
– Embora grandes turbilhões tenha atravessado, apenas por vós provocados, antes por vossa causa eu morreria do que de outra o menor prazer furtaria. – Maria Cristina tinha cabelos arruivados que fluíam em cachos e olhos verdes que por muitas vezes haviam fixado a imagem de Miguel, desde a tenra infância, embora ele nunca a tivesse notado. Muito tímida, ruborizava-se só de pensar nele e teria gostado que, em lugar do escudeiro, tivesse sido o rapaz a cantar em seu louvor. Não à toa pedira a seus pais para que sua família se sentasse ao lado da do recém-consagrado, que enfim, após alguns risos durante a execução de uma canção cômica, deixou seu olhar pousar sobre a moça. – Gosto de prazer e alegria, de pratos cheios, presentes e torneios! Gosto de uma dama de cortesia que esteja disposta, livre e sem enleios, de um homem rico que gaste com generosidade e reserve só aos inimigos a animosidade! – Mais uma declamação e Miguel, que até aquele dia pouco se aproximara de donzelas, sempre ocupado demais em suas atividades de aprendiz, clareou um sorriso na direção da jovem, que virou o rosto, enrubescida. "Que vergonha!" E logo o pensamento reativo: "Mas o que está fazendo, sua tonta? Agora que ele olhou para você e sorriu, você transmite a impressão de que não gostou dele?" Porém o jovem cavaleiro, que de bobo nada tinha, intuiu que ela se interessara por ele, embora fosse tímida, e pensou numa maneira de poderem conversar depois.
A paixão aflorava nos jovens. Enquanto uma fogueira atiçada pelo diabo trazia problemas aos mais velhos: Isabel, a mãe do rapaz recém-investido, estava cansada dos assédios do arrogante conde Henrique de Toledo, loiro e esbelto, alguns anos mais novo do que Dom Rodrigo. Um homem que acreditava que podia ter sempre qualquer um e qualquer coisa a seus pés.
Tempos atrás, durante uma festa noturna, haviam se separado do resto após a ceia. O marido bebia. Foram bem longe, até pararem em um dos estábulos do castelo real. Ela erguera seu vestido, ele mordera o próprio lábio com ardor e ali se haviam entregado aos prazeres da carne da maneira mais rústica possível.
A esposa do alferes-mor em parte gostara, pela excitação do perigo e pelo fato de que havia tempos que se sentia atraída por aquele homem; e em parte detestara, pela pouca duração do ato e pela força excessiva, que deixara marcas em seus braços e em suas pernas, que depois seriam difíceis de explicar.
Nunca mais tivera nada com Henrique. No entanto, ele continuava a persegui-la. Parecia certo de que um dia ela seria sua. De outra mesa, fitava-a de forma provocativa e dava a impressão de zombar de seu esposo. Magicamente – Isabel se questionava a respeito – sem ser percebido. Isso para o alívio da própria! Conquanto circulassem boatos de que fosse um feiticeiro que colecionava grimórios persas e, embora tais rumores carecessem de comprovações, a esposa do alferes-mor começava a acreditar que poderiam ser verdadeiros.
O que era certo era o amor do conde de Toledo pelos torneios realizados longe da capital. Os que se organizavam em Burgos eram, do seu ponto de vista, por demais regulamentados e estilizados. Afirmava que "não está pronto para a batalha quem nunca viu seu próprio sangue ser derramado, quem não escutou com terror seus dentes baterem sob os golpes de um oponente ou não sentiu o peso e a respiração de um adversário perigoso sobre si". Isso porque os torneios no interior de Castela pouco se distinguiam de guerras de verdade. Eram realizados ao ar livre e se espalhavam por pobres e desafortunadas aldeias. Destruíam tudo o que havia ao redor. Mortes não eram incomuns, cobravam-se resgates pelos prisioneiros e os vencedores tomavam armas, armaduras e cavalos dos derrotados como despojos de guerra.
– Nunca vou enferrujar como o seu marido. Sabe que estou pensando em desafiá-lo para um duelo? – provocara Isabel certa vez, ao se cruzarem em um dos corredores do castelo.
– Você não ousaria.
– Por você estou disposto a tudo. Tem muito medo de que eu possa matá-lo, não é? – Acariciara-lhe o véu. Isabel afastara sua mão com um tapa.
– Rodrigo é um homem forte! Ah, como me arrependo de ter me deixado levar pela luxúria naquela noite estúpida!
– Você morre de medo, afinal não quer deixar o seu garoto sem pai.
– Você deveria ser mudo. – A esposa do alferes-mor cuspira em seu pé e se retirara com rispidez, ainda mais porque tentara lhe roubar um beijo.
Henrique permanecera ali parado, sorrindo e maquinando seus planos ardilosos.
***
Isabel com frequência se fechava, pesarosa em si mesma. Enclausurava-se em um casulo negro de pétalas rígidas que espelhava seres de olhares turbulentos, receosa de que a semente de seu descuido gerasse um fruto venenoso para sua família mesmo após Miguel ter se tornado o cavaleiro mais prestigiado pelo rei.
Seu rosto começava a apresentar as primeiras rugas. E ainda assim Henrique, que parecia ter bebido um elixir da juventude, pois se mantinha quase idêntico a como era anos antes, continuava a rondar à sua volta, ao passo que seu esposo a cada dia ficava mais opaco.
Difícil dizer se o brilho do filho, tendo este virado o melhor cavaleiro do reino ou não, seria o bastante para garantir a segurança de sua família.
Recordava-se dos tempos da adolescência de Miguel. Época na qual testemunhara o treino desde cedo vigoroso com espada e escudo, o jovem encharcado em suor a desferir golpes furiosos contra as estacas de madeira. Despedaçava a grande maioria. Até por instigação e pressão do pai, mas também porque se agradava nisso, levava seu corpo e sua mente ao limite, assíduo nos combates de luta livre e nas caçadas. Matara javalis e cervos e aprendera com Dom Rodrigo a estripá-los e cortá-los em pedaços, para que depois fossem servidos à mesa. Nos dias presentes, continuava a caçar, porém com menor frequência.
Fora depois de um tempo como cavaleiro que pedira aos pais para ficar noivo de Maria Cristina. E estes, tendo em vista a pureza de espírito da jovem e a qualidade de sua família, da alta nobreza de Segóvia, haviam autorizado a união sem hesitar.
– O que não gosto é quando você vai caçar. Entendo a necessidade, o jogo masculino, que é um válido treinamento para a guerra, e que cavaleiros precisem de boa carne, mas nenhuma justificativa faz com que eu deixe de sentir um certo incômodo. – A noiva confidenciara certa vez ao prometido, em um dos jardins do castelo real.
– Ao menos essa não é uma crítica a mim, e sim a todos os cavaleiros, que fazem o mesmo que eu. – Não podia negar que se divertia ao perseguir e atravessar o corpo de um javali com a lança, em meio aos latidos e à agitação dos cães, que se atiravam sobre o animal selvagem como seus valiosos auxiliares.
Ignoravam que ali por perto circulavam, ocultos atrás das moitas, os olhares de um cão invejoso. Tratava-se de Diego, que, ao contrário do que ditavam a tradição e o bom senso, desenvolvera um amor muito pouco idealizado pela donzela.
Observava-a e admirava-a já havia um bom tempo e esperara que um dia se casasse com algum nobre de terras distantes. Não a veria mais e sofreria menos com sua ausência do que ao vê-la nos braços de outro.
No entanto, fora prometida ao cavaleiro a quem vestia, ao qual entregava a espada e cujo escudo carregava. Seria obrigado a vê-la todas as horas e a testemunhar seu senhor tocando-lhe as madeixas e proferindo palavras carinhosas. Não o perdoaria se a fizesse sofrer.
A bem da verdade, de qualquer forma jamais o perdoaria.
***
Miguel e Maria Cristina já estavam casados. O cavaleiro, agora seu esposo, levou-a consigo em uma caçada vespertina.
– Por que me trouxe aqui?
– Porque hoje vamos fazer uma coisa diferente. – Disparou com seu corcel.
– Ei! Onde está indo? Não vai me deixar sozinha! – Partiu no encalço dele com seu palafrém e seguiram a galope por milhas e milhas.
Distanciaram-se da área da caçada, a ponto de saírem da floresta e avançarem por um planalto. Ele encurtou o passo diante do pôr do sol e pararam.
– O que foi isso? Fomos longe demais.
– Acha mesmo que a chamaria para matar algum animal na sua frente? Fiz isso para mostrar que a amo mais do que qualquer atividade lúdica. Você sempre será mais importante do que tudo. Por essa razão fugimos da caçada. Como se fôssemos a presa! Assim pude sentir um pouco do que um animal caçado sente enquanto é perseguido por nós, humanos loucos e cruéis. Nunca mais vou caçar, por você! Ainda que seja um bom treinamento… Há outros. Como os torneios.
– Somos pessoas diferentes, Miguel. Não precisa fazer sacrifícios por minha causa.
– Sendo por você, torna-se algo divertido e emocionante. Deixa de ser um sacrifício. Você me caçou hoje e foi bom ter um dia de caça!
– Será repreendido pelos outros cavaleiros depois. E a cara do Diego? Como ele deve estar agora, coitado! Você é mesmo um louco. O cavaleiro louco de Castela! – riram juntos.
Desceram dos cavalos para admirar o poente e se beijaram. Brincaram com um coelho que se aproximou, receoso, e fugiu. Só voltaram para o castelo quando já era noite.
No retorno, as reclamações dos pais foram o de menos. Algo muito notado e pouco sentido, ao passo que o ódio de Diego, que ele retinha em si mesmo, disfarçado por fora, podia ser captado por Maria Cristina, porém não identificado:
– Em alguns momentos, sinto como se existisse uma nuvem negra a pairar em volta de nós. É silenciosa, mas parece pronta para desabar de repente, fazendo cair uma chuva de gotas que não são de água e sim de metal afiado – confidenciou-lhe à noite na cama.
– Isso é imaginação sua. Tem tido pesadelos?
– Não tem nada a ver com sonhos! É uma percepção. – Mas Miguel estava feliz demais para dar ouvidos ao perigo oculto.
"Ele se torna cego quando fica alegre e satisfeito. Se eu fosse uma mulher má..." Era o pensamento da boa esposa.
***
O burgo vibrava com alegria pela passagem do rei e de sua rainha. Lençóis de seda haviam sido trazidos de fora, estendidos como ornamentos. Desdobravam-se os tapetes pelas ruas, cobertas também por dosséis. Os sinos, as trompas e os clarins ressoavam de tal maneira que houve quem comentasse que não se ouviria Deus troar. As donzelas dançavam diante do soberano de Castela, acompanhadas por flautas, flautins, címbalos, tambores e tamborins. Pantomimeiros davam saltos e faziam malabarismos. Quem seria o mais feliz ao acolher o rei Afonso e a rainha Elvira? Não era todo dia, afinal, que aquela aldeia recebia a visita da realeza.
O sorriso de Miguel se extinguiu ao avistar alguém que se rejubilava com a presença do monarca por outra razão: um arqueiro encapuçado, que, do alto de uma casa, tensionou sua musculatura antes de disparar.
O filho do alferes-mor não hesitou. Lançou-se com seu cavalo na direção do rei e de sua montaria. Algo que provocou gritos e assombro, com o espanto de seus pais, que estavam no séquito, e da rainha, além do conde Henrique ter entreaberto os lábios. O rei caiu.
– Por Jesus Cristo Nosso Senhor! – exclamou a rainha Elvira, mas Afonso de Castela estava a salvo, pois a flecha se cravara no escudo de Miguel, que ainda se equilibrara na sequência para disparar a galope atrás do arqueiro, que acabava de descer do teto da casa.
– Saiam da frente! – esbravejou, furioso, o esposo de Maria Cristina, seguido pelo escudeiro, que não podia deixar de acompanhar seu senhor.
O semblante de Diego era de medo, justificado, até porque outra flecha zumbiu e desta vez acertou o seu escudo.
– O desgraçado tem comparsas! – Miguel berrou. – Volte, Diego, e avise a guarda do rei!
– Mas eles estavam distraídos antes, não vão se descuidar outra vez! – retrucou o escudeiro.
– Obedeça!
– Mas e o senhor? – Diego se deu conta de que sua resposta anterior não saíra no melhor tom e tentou consertar a situação, de alguma maneira.
– O rei sempre é mais importante!
Apesar do medo de virar o cavalo e ofertar as costas para uma possível nova seta, Diego teve de acatar; e não que aquilo o desagradasse por completo...
Em seu regresso, deparou-se com outros escudeiros e alguns cavaleiros, ao que parecia dispostos a ajudar o filho do alferes-mor. Avisou-os que o homem que tentara assassinar o rei não estava só.
– Só pode ser um desses covardes sarracenos, discípulos do Velho da Montanha – replicou um dos cavaleiros. – Geralmente atacam em dois ou três, para assegurar o êxito da missão caso um falhe.
– Quem é esse Velho da Montanha? – inquiriu um escudeiro de doze ou treze anos de idade, um garoto em treinamento para se tornar cavaleiro.
– Nunca ouviu falar dele, rapaz? – retrucou outro cavaleiro. – É o líder de uma seita maometana no Oriente. Uma tal “seita dos assassinos”. Segundo dizem, ele sempre foi velho e sempre será, por isso o nome. Um demônio, com toda a certeza. Que sempre promove ataques contra as autoridades cristãs.
– Não estamos aqui para discutir sobre os assassinos do Velho da Montanha – interveio um cavaleiro mais velho, puxando as rédeas de seu corcel. – Tanto Miguel como o rei estão em perigo. Temos que nos mover logo daqui.
O grupo se dividiu. Uma parte voltou para perto do rei. A outra, com Diego, iria até o filho de Dom Rodrigo.
Acharam antes um dos assassinos de turbante: com o corpo aberto e sangrando, inerte no chão.
Mais adiante, reencontraram Miguel, com outro inimigo prensado em um beco por sua lança.
– Acho que para você está terminado – dizia o cavaleiro.
– Um dia, apodrecerão todos os ímpios, por culpa dos quais o mundo está no terrível estado em que se encontra, e Al-Andalus será novamente dos herdeiros do profeta do Deus único. – Apesar do pouco espaço, o assassino estava prestes a lançar uma adaga contra o rosto de Miguel, que no momento usava um elmo aberto, mas que antes disso afogou a ponta de sua lança no sangue do pescoço do sarraceno.
Ainda assim, horas depois, o filho do alferes-mor teria do que se queixar junto ao rei:
– Infelizmente, não encontrei o arqueiro que disparou contra o senhor. Deve ter escapado.
– Ao menos ele não voltou atrás de mim. E você não deveria minimizar o seu feito – replicou Afonso de Castela.
– Cumpri com o meu dever, senhor. A bem da verdade, gostaria de fazer cessar de uma vez por todas as ações desses arautos do terror em solo cristão.
– Isso não está à sua alçada, Miguel. Esses diabólicos fumadores de haxixe não são fáceis de rastrear. Temo que serão por muito tempo uma praga persistente.
– Por que o papa não emprega os cruzados para localizá-los e matá-los? – interveio a rainha, que era uma mulher morena de rosto ovalado, bem mais jovem do que o rei.
– Não é tão simples assim. Os cruzados já têm muito trabalho a fazer e é importante que atuem apenas contra demônios ou bruxos, que para nós são muito mais difíceis de derrotar. Não há provas de que o Velho da Montanha seja uma coisa nem outra, apesar dos boatos. Pode se tratar apenas de um título, passado de geração em geração.
– Vossa Majestade poderia enviar a mim e a alguns outros cavaleiros em uma missão do gênero. – Miguel conseguia se imaginar no Oriente, a brandir a espada para livrar o mundo dos últimos resquícios das hordas de Maomé. Ao contrário do que dissera um dos assassinos antes de morrer, era provável que tivessem sido eles, os maometanos, junto a magos e pagãos de diferentes tipos, a deixarem o mundo à mercê dos demônios.
– Não, Miguel. Eu o quero bem perto de mim, sobretudo agora. – O soberano dissolveu seus sonhos.
Mas era por uma boa causa.
Tê-lo salvado do assassino o tornou de vez o favorito de Afonso de Castela, para além do quanto fosse maravilhoso testemunhar naquela geração um cavaleiro de prolongada invencibilidade nos torneios de Burgos, que desde que fora investido não perdera nenhuma justa.
Miguel era o Sol afiado de Castela, um pelejador que todos principiaram a acreditar que seria eternizado nas crônicas e poemas de gestas.
1 Boneco móvel com um açoite preso em uma das mãos e um escudo na outra, instalado em um eixo vertical giratório. Nos exercícios de cavalaria, os cavaleiros ou aprendizes tentavam acertá-lo com a lança sem serem atingidos pelo açoite.
Literunico - O espaço dos criadores de conteúdo literário.