Os gemidos da nevasca pareciam vir da catedral e havia a sensação de galhos arrancados pelos ventos congelantes, de santos de retábulos1 que descascavam, de um escabelo2 que rangia: as imagens e impressões de dentro e fora da igreja se fundiam e confundiam, isso que não bebera sequer um gole de vodca e se sentia como um boi que respirava a custo, estendido na relva, ou como um porco esfolado que grunhia à beira da morte. De que adiantava construir um templo magnífico se os delitos mais demoníacos eram cometidos em seu interior ou ao seu redor?
Veio a memória de um caldo quente. De quando chegara ao mosteiro, congestionado pela vinda de outros desafortunados, que partilhavam entre três ou quatro um cobertor e o feno do catre. Através das frestas nas paredes, o vento e a neve se esgueiravam para dentro e uma tosse pertinaz não o abandonara por vários dias.
Ainda assim, graças àqueles monges, que eram como uma nova família, Fiódor estava conseguindo preservar um mínimo de fé na humanidade. Arrependeu-se, portanto, de visitar a Catedral de São Basílio, com suas cúpulas em forma de bulbos, porque esta fazia com que se recordasse de Ivan, o Terrível, que, após terminar a construção, mandara arrancar os olhos do arquiteto para que este não viesse a construir no futuro algo de igual valor. Se a homenagem era a um santo, como pudera cometer um ato tão ignominioso? Ivan era um cristão? Um homem como aquele, que mesclava remorsos e violência física e espiritual, de que maneira seria capaz de compreender os Evangelhos? Quanto ao Velho Testamento, talvez fosse mais coerente com este, já que em muitos trechos Fiódor o considerava uma ode à brutalidade, pois atribuía a Deus trejeitos de vaidade e soberba típicos dos seres humanos. Teria sido realmente inspirado na íntegra pelo Criador e Rei dos Céus? Era, afinal, o único livro sagrado dos judeus, em relação aos quais não sabia que pensamento e atitude cultivar. Eram os assassinos de Cristo; ao mesmo tempo que o Filho de Deus era um membro de seu povo e, portanto, de sua grande família.
Desde sua chegada a Moscou, Fiódor sonhara por diversas vezes com sua família viva e seu passado como se este fosse se prolongar, um verdadeiro futuro do pretérito, no qual seus pais e irmãos continuavam a comer, beber, dormir e sorrir. De repente, porém, a realidade se impunha e, como uma mão férrea de dedos com unhas de aço, rasgava e esmagava os devaneios. Visões do fogo e do sangue vinham à tona e o acordavam, fazendo com que temesse o regresso ao sono. O medo maior, entrementes, seria o de rever as cenas de crueldade ou de viver uma ilusão? O despertar era o pior possível. A tortura prolongada da mente superava em muito a dor do corte das lâminas.
O mais doloroso era entregar à criança um pedaço do doce, deixar que desse a primeira mordida e a seguir arrancá-lo de forma enérgica, para devorar todo o resto e humilhar o menino chorão. "O meu tio Aliocha gostava de agradar a minha mãe, trazendo para ela as peles das raposas que caçava. Ela ficava toda entusiasmada e correspondia às gargalhadas do balofo com sorrisos e passadas tenras de mão. Acariciava-lhe o nariz vermelho: “querido Lyocha, meu doce cunhado Lyocha Petrovich!” E não duvido que tenha enganado o meu pai com aquele gordo em troca de joias e peles. Em vão, pobre tola, para depois ser traída e não ter sequer um túmulo onde pudesse ser enterrada junto com suas preciosidades.
O tio Alexei parecia um bonachão adorável, meu pai confiava cegamente nele. Por esse lado, meu sangue tomou um rumo diferente. Nunca fui de confiar muito, afinal Anatoli Dimitrovich, meu único amigo de infância, roubou o boneco de cossaco que ganhei no meu aniversário de oito anos quando teve a primeira oportunidade para fazê-lo. Como acreditar no ser humano? Mas um mínimo de confiança eu tinha e continuo tendo, ao menos para não cogitar que todos ou quase todos sejam capazes de cometer as barbáries mais atrozes, de abandonar parentes, de deixar amigos para trás. Um adultério, um brinquedo roubado: não são nada. Mas deixar um amigo morrer, não se juntar a ele em uma luta, o que seria isso? Fiódor Pavlovich terá nascido na época errada? Ou no mundo errado? O que dizer dos seres que crucificaram Deus? Apesar de Deus ter se feito homem… supostamente. Supostamente Deus é bom e perfeito. Porque se fosse realmente perfeito, como permitiria uma criatura tão imperfeita? Como permitiria os demônios e os demônios humanos?
Meu pai, Pavlov Petrovich, pertencia à nobreza, tinha títulos, terras, era de certo modo Deus em seus domínios, mas continuava a ser um ente imperfeito. Deus também não seria assim, tendo o universo como um feudo, que porém não pode controlar?
Tio Lyocha possuía o costume de tirar os restos de comida dos dentes na frente de todos. Um bobão, um porco", seu pescoço estava tão dolorido e sentia tanto frio, sobretudo na área em que a cabeça se encaixava ao restante do corpo, que dava a sensação de ali estar congelado, isso desde que se reerguera depois de horas se fingindo de morto na neve. A verdade era que não queria olhar para trás. Caso se voltasse, correria o risco de não mais conseguir fitar adiante, nunca mais, perdido na fantasia do futuro do pretérito, que jamais deixaria de ser pretérito, em verdade falsa eternidade.
Seus pais e irmãos estavam mortos e ponto. Ao menos na Terra, tudo precisava ter um fim.
– Olenka, veja o que lhe trouxe! – "E lá vinha minha mãe abanando o rabo, encantada com um resto de raposa."
– Tia Olya! – "Os meus primos adoravam a minha mãe. Deles não posso cobrar nada, afinal eram só crianças, apesar que em breve serão jovens adultos, dispostos a escalar o que estiver pela frente. Infeliz Olga Ivanovna! Mas vou ter saudades de Misha, Katinka e Vânia", referia-se aos primos Mikhail, Katherina e Ivan, com os quais se acostumara a passar horas brincando enquanto seu tio Alexei ficava no quarto com sua mãe e seu pai ia supervisionar o trabalho dos camponeses junto a Boris, o mais velho e em teoria o herdeiro da família. "Borya era ambicioso e cruel. Não se encaixava com a personalidade do meu pai. Mesmo assim, era o primogênito."
Fiódor, no que dizia respeito à questão da crueldade, não se limitava a condenar a tortura ou à sua aversão a derramamentos de sangue gratuitos. Incluía a fuga quando o próximo requisitava presença, a covardia do abandono e os requintes da sedução sem afeto.
– Estávamos caçando um cervo, os homens da família, quando os tártaros chegaram. Um deles acertou uma flecha na jugular do meu irmão mais velho, que caiu do cavalo e morreu. Apesar de a morte não ter sido a minha, pude sentir o frio dela na hora. E eu, meu pai e meu irmão caçula lutamos. Só que o meu tio Alexei e alguns amigos da família fugiram sem hesitar. Deixaram-nos sozinhos confrontando vinte, cinquenta ou cem tártaros. Não importa quantos eram! Eram muitos e pareciam só crescer em tamanho e quantidade. Eram enormes. Não sei se foi impressão minha. Piores que ursos. – À noite, encerrado seu passeio reflexivo pela cidade, o rapaz contou sua história em detalhes ao abade Mendeleev, um homem magro e encurvado, de olhos estreitos e barba e cabelos longos.
– Fico impressionado que tenha conseguido chegar vivo a Moscou, meu filho.
– Depois que golpearam meu pai no crânio com uma maça, arrebentando-o, e que cortaram a cabeça do meu irmão, fingi que a flecha que tinha me acertado no ombro, perto do peito, havia me ferido em ponto de morte. Fui sortudo porque o casaco era bem acolchoado e a ferida foi superficial, só me arranhou. Continuei caído na neve, me fazendo de morto, enquanto eles iam embora.
– Chama isso de sorte? Eu chamo de milagre.
– E onde estava o milagre para o meu pai e os meus irmãos?
– Não se revolte, filho. A vida não é uma tabela em que as ações e reações são meticulosamente previstas e se sucedem com precisão. Quer saber de uma coisa? Adoro observar a neve, a relva, prestar atenção à cor das plantas e fazer estudos de anatomia, embora poucos aqui saibam que tenho o hábito de dissecar os pequenos animais que encontro mortos e de pedir um ou outro cadáver humano, os de indigentes sem família, aos coveiros de diferentes cemitérios. É incrível como a natureza, por fora, é sempre a mesma, com uma precisão inigualável em seus ritmos, comparável à pulsação de um coração. Só que mesmo o coração mais forte um dia irá parar, e não há como saber quando isso vai ocorrer. Considerando a realidade espiritual humana, a vida não é tão previsível quanto os ciclos da física; e, em palavras simples, Deus faz o que pode! Pense que ao menos você está aqui para me contar a sua história! E que o seu destino pode lhe reservar grandes surpresas, Fiódor Pavlovich.
– Que surpresa, abade? Desde aquele dia, não paro de sentir frio o tempo todo.
– Talvez em breve pare. Tenho alguns bons amigos que podem lhe fornecer algo mais do que um cobertor. Ao sobreviver a um ataque de tártaros, ao frio do inverno e conseguir chegar em Moscou sozinho, demonstrou ser um guerreiro valoroso, capaz de servir aos propósitos de Cristo.
– Encontrei nossa casa saqueada e minha mãe morta, assim como muitos servos. Em breve, contudo, estou certo de que meu tio, aquele covarde miserável, irá se apoderar das nossas terras. Afinal, para ele os herdeiros do meu pai estão todos mortos! Algum dia gostaria de voltar e me vingar.
– Não pense em coisas tão pequenas, filho. Você pode ter um destino infinitamente mais nobre. O que acha de lutar para impedir que coisas como as que lhe aconteceram se repitam com outras pessoas? O que acharia de cumprir a Lei de Deus em terras sem lei?
– Seja explícito, abade. Percebo que está querendo chegar a outro ponto. Detesto rodeios.
– Na verdade, não sou apenas um devoto de São Bento e São Cirilo e um discípulo de Santo Adalberto de Magdeburgo. Pertenço à Ordem do Graal. Estamos precisando de cruzados, pois passamos por uma crise recente. Acho que você tem potencial para se tornar um, se quiser passar pelos testes.
– E por que demorou tanto para fazer a proposta?
– Parecia tão envolvido com o seu passado que eu precisaria de tempo para curvar seu olhar em direção ao futuro.
– E de onde tirou que tenho uma vocação e propósitos tão nobres?
– Você derrotou os tártaros à sua maneira, fazendo-os pensar que estava morto. A sua vitória foi sobreviver. E para um cruzado sobreviver a todo custo para continuar lutando em nome do Cristo é… como posso dizer? Uma demonstração de que, mesmo diante da imortalidade da alma, temos que aproveitar este presente que Deus nos deu: o milagre da vida.
– Estou um tanto desiludido com milagres.
– Isso pude perceber. Será diferente quando beber o sangue de Cristo.
– O vinho da missa?
– Não falo de transubstanciação. Falo de uma substância concreta e imutável, que emerge de um objeto que foi tocado pelas mãos corporais do Salvador, que altera toda a carne, não de uma substância que se transforma e que afeta mais o espírito do que a carne, que Deus me perdoe pela forma como me expresso, mas estas são sutilezas teológicas que não vamos discutir agora. – Persignou-se. – Só lhe peço uma coisa, Fiódor Pavlovich: guarde segredo a respeito do que conversarmos e sobre o que vier a acontecer. Você é o único em Moscou a saber que sou um monge vermelho. Revelei-lhe a verdade em confiança.
– E por que o povo e os outros monges não podem saber disso?
– Porque levo uma vida fixa. Tanto demônios quanto hereges visam as vidas dos padres da Ordem do Graal, que, quando não se encontram ou vivem em Roma, onde a segurança é maior, costumam ser itinerantes por essa razão.
– Entendo. Não vou revelar nada, não se preocupe. Mesmo na minha família, eu era o que menos falava, a ponto de ser conhecido como Fiódor Pavlovich, o silencioso. Apesar das coisas mudarem de figura com um pouco de vodca – riram juntos, Fiódor mais contido, e tomaram um drinque para se aquecerem, sobretudo o rapaz, que sentia os ossos baterem. Quando ficaram mais à vontade, o filho de Pavlov Petrovich externou sua dúvida: – Como se tornou um membro da Ordem do Graal?
– Na verdade, sou como um membro honorário, já que não posso me afastar por completo dos afazeres do mosteiro. Mas o cardeal Celius, um grande amigo, me deu sua benção quando nos visitou há alguns anos, julgando-me digno de compreender os mistérios do sangue de Cristo. E como eles quase não vêm à Rússia, tornei-me o responsável por recrutar um potencial cruzado em nossa santa terra, testá-lo e, se bem-sucedido, ordená-lo e enviá-lo a Roma. Já está mais do que na hora de surgir o primeiro combatente russo agraciado com o sangue do Salvador. Inclusive tenho comigo um frasco com um pouco do sangue bendito. Foi a provisão que me deram para caso encontrasse alguém perfeitamente apropriado, sendo que muitos morreram nos últimos tempos em batalha contra Belial, um dos reis do Inferno. A Santa Sé pediu auxílio a diferentes centros da cristandade.
– O cruzado, embora seja um guerreiro, é acima de tudo um servidor que dedica sua vida à Igreja. Não sei se estou apto. Posso ser teimoso, muito persistente, mas acho que teria dificuldades para aceitar certos dogmas e me manter casto.
– Com o sangue de Cristo em suas veias, duvido que volte a se interessar por mulheres.
– Será mesmo que o sangue do Salvador aplaca as ânsias da carne? Terei o sangue Dele, mas nunca serei Ele.
– Não saberá do que será capaz se não tentar.
– E se tentar e me arrepender?
– Não tem muitas opções, Fiódor.
– Tem razão. O destino do filho de um nobre que não é o primogênito, no fundo, é com frequência o de se tornar um servo da Igreja.
– Não fale com peso, filho. Valorize a missão que Deus lhe deu.
– Nunca estive diante de um demônio, mas não tenho medo de Belial e de outras aberrações do gênero. O que mais me assusta é a besta dentro do ser humano. Inclusive a que tenho dentro de mim mesmo.
– O sangue de Cristo o ajudará a afogar essa fera. E a dissolvê-la, pois é um líquido incandescente.
– Hm… – Fiódor se pôs a pensar sobre diferentes coisas e disse ao abade que refletiria melhor antes de dar qualquer resposta. Complementou, de forma jocosa: – Sob efeito de vodca, não daria certo tomar uma decisão como essa.
– Pelo contrário: é nessas horas que somos mais sinceros. – Contudo, o filho de Pavlov Petrovich se retirou do escritório do abade sem dizer mais nada.
À noite, antes de adormecer, vieram as inevitáveis recordações.
Nos dias de Natal, havia a escultura de neve e gelo com olhos de ameixas, dentes de ervilhas e nariz de cenoura que seu tio Lyocha costumava preparar e que tanto ele quanto seus primos adoravam. Atiravam bolas de neve um no outro nas proximidades. "Às vezes me questiono se meu julgamento não está equivocado. Ele era tão alegre, parecia ser uma pessoa tão boa! Como pôde nos deixar para morrer? Talvez não fosse obrigação dele morrer conosco. O problema é que eu venerava aquele sujeito", passou as mãos pela barba rala e se lembrava dos cantos e danças em círculo, segurando tochas em volta da escultura, e a roda demorava a parar. Sentia em alguns momentos como se o passado retornasse. Vinham o sono, uma tontura, o efeito da vodca e do rodopio. Meio acordado e meio adormecido, despertava por completo de uma hora para a outra, assustado. Não queria olhar para trás. E muito menos recuperar, participar e trazer, porém era inevitável, mais forte do que ele. Regressava-lhe à mente como costumavam ser em família os derradeiros dias de inverno, "minha avó falando dos maus dias, os dias anteriores à chegada da palavra de Cristo na Rússia. Questiono-me se eram mesmo dias assim tão ruins. O ano inteiro esperava por aquela época, e não pelas histórias velhas, não só por isso, apesar de gostar de ouvir, e sim pelo baile de máscaras e roupas divertidas. Ria até a barriga doer, ainda mais quando estava cheia! Era muita comida, uma semana inteira de queijos, e outra de panquecas. Com o fim do inverno, só podia ser um período de felicidade. E nós nos aquecíamos nesses últimos dias; e queimávamos o boneco de palha. Como era bom! A sensação libertadora, como se estivéssemos queimando as aflições do frio. E meu pai sempre trazia caviar, mel, creme de leite fresco e manteiga para preparar as panquecas. Se me tornar um cruzado e não tiver família, vou poder reviver isso algum dia?
Não tenho que 'reviver', oras! Não posso voltar ao passado. E até já 'revivi' uma vez!" Uma festa que derretia: a Maslyanitsa; precisava derreter aquelas reminiscências, por mais doloroso que fosse. "Agora está me dando fome. Os caldos daqui não se comparam ao que já comi", o gosto do seu doce de Páscoa preferido, preparado por sua babushka, misturando passas, de novo manteiga e um queijo cremoso, não saía de sua boca, que salivava com intensidade; tinha assim que engolir saliva o tempo todo. Não relaxava.
A matriarca da família também não se esquecia, em toda santa Páscoa, de reservar ovos para dar aos netos e os incentivava a entregarem os seus a amigos e parentes. Salientava que, se lavassem os rostos com a água na qual os ovos haviam sido cozidos, seriam saudáveis para sempre.
O pequeno Fiódor, por diversas vezes, pusera a cara na água, hábito que perdera com o passar dos anos.
"Cristo está vivo!" O tio Alexei parava na entrada da casa do irmão com a saudação habitual daquele período festivo e o bom Pavlov respondia: "Cristo está realmente vivo", e se abraçavam, trocavam um beijo e o bom Aliocha entrava. "As marcas da Páscoa: foi num primeiro domingo depois da Páscoa que os meus pais se casaram, e idem o meu tio, que enviuvou cedo, considerando que em nossa família os casamentos duravam de vinte anos para cima. Três filhos em quatro anos, e depois a viuvez. Pelo menos as colinas vermelhas floresceram para o futuro", quando criança, o feriado preferido de Fiódor Pavlovich era o Troitsa. Ajudava a decorar sua casa e as casas dos camponeses, que o viam com carinho, diferentemente do medo que Boris lhes inspirava. "Me divertia pendurando nas bétulas alguns vestidos de Nadienka", uma amiguinha de infância. "Depois corria em volta. E íamos cantar e dançar.
Uma velha pagã afirmava ser capaz de realizar previsões através das guirlandas feitas com galhos e flores de bétula colocadas dentro d’água. Nunca acreditei, mas, quando estava junto dos camponeses, às vezes ficava ouvindo algumas adivinhações.
Lembro que quando ela quis fazer a minha, saí correndo. Será que fiz bem? Talvez tenha sido medroso demais. Se pudesse ter previsto! Ter conhecido a verdadeira natureza do tio Alexei! Mas será que agora eu a conheço? Difícil dizer", tardou, mas, por fim, conseguiu adormecer. No entanto, seu sono estaria longe de ser tranquilo.
Despertou consciente de estar em um sonho, lúcido, e o efeito da bebida passara. "Mas o que é isso? Estou dormindo, mas ao mesmo tempo acordado. Não bebi tanto assim para chegar ao ponto de delirar", viu-se em um recinto de paredes cinzentas, de frente para uma estátua do que pareciam ser gêmeos siameses, a metade à direita vestida de branco, a esquerda de negro. "Acho que reconheço essa imagem. Minha avó me falava dos tempos em que Byelobog e Chernobog lutavam pelo controle do mundo. Até que Byelobog teria vencido ao trazer o Cristo à Terra, suplantando de vez o inimigo.
Os confins entre o bem e o mal às vezes me parecem por demais tênues, como se fossem de fato irmãos, gêmeos", a reflexão fez o cenário se alterar. Passou a uma estepe onde um homem a cavalo estava quase morto de sede e de fome. Cogitou ajudar, mas depois achou que seria melhor deixar as coisas acontecerem. Era só um sonho, afinal.
O indivíduo, que depois Fiódor percebeu que tinha um rosto semelhante ao de seu pai, desceu da montaria ao ver um saquinho largado no chão. Talvez contivesse comida. Ou ouro.
Entrementes, com todo o esforço, não conseguia levantá-lo. Só foi capaz ao erguê-lo ajoelhado. O esforço não compensou porque seu corpo começou a afundar na terra.
"Sonho ou não, é melhor ajudar", mas o desconhecido que lembrava Pavlov Petrovich desceu muito depressa, chorando lágrimas de sangue que paralisaram o rapaz.
Algumas árvores cresceram; e em seus galhos despontaram crianças de asas depenadas, de cujas bocas tortas saíram berros estridentes.
Tais criaturas horripilantes se transformaram em donzelas atraentes, que entoavam um canto mavioso. Rios e lagos nasceram. Fontes passaram a jorrar. "Rusalkas! Minha avó já me falou delas também. Achei que não existissem. E não existem, é claro: estou sonhando. A menos que o domínio dos sonhos seja um reino válido da natureza, cujas regras nunca conheceremos. O sonho pode ser a porta para a morte. Ou o vaso que contém a morte."
– Venha conosco. Estávamos esperando por você. – Uma das rusalkas cantarolou.
– Não tenho nada que ver com vocês. Voltem de onde vieram. Que suas almas tenham paz.
– Como ousa? Como pode fazer pouco-caso das minhas meninas? – interveio uma voz rouca de velha. O susto foi grande e materializou-se à frente de Fiódor:
– Vovó! – O rosto era o de sua babushka, embora estivesse transformada, e cavalgava um grande almofariz, que a impulsionava pelos ares.
Seus cabelos estavam desgrenhados e tinha poucos dentes, se bem que afiados. A pele queimada; e um cinturão de ossos cingia-lhe o quadril. Terminou por reconhecer que aquela era a figura pagã da Baba Yaga, que o paralisara.
– Você deveria ouvir melhor o que elas têm a dizer! Ou o que eu tenho a dizer. Não seja tão arrogante! Acha que sabe tudo, cristãozinho? Não tem noção de como o mundo é vasto, e do que tenho a lhe oferecer. – Passou a rodeá-lo feito uma serpente. – Venha comigo. – E dispararam rumo aos céus, para o terror de Fiódor, que teve medo de cair. – Não seja covarde. Você sobreviveu até agora. Está com medo de um simples voo em uma realidade que, do seu ponto de vista, não passa de um sonho? – As rusalkas os seguiram. Pousaram defronte a uma casa com pernas de galinha. – Agora coloque a mão na fechadura, meu pequeno. – O rapaz voltara a ser o menino de sete ou oito anos nos braços da avó. Perdeu a consciência de se tratar de um devaneio e ficou apavorado com a perspectiva de enfiar a mão naquela fechadura, que era uma boca repleta de dentes pontiagudos. – Enfie de uma vez ou não vamos conseguir entrar! – O nariz da velha foi ficando rubro e as narinas largas e ardentes, seus olhos semelhantes a carvões em brasa. Sua fúria aumentava.
– Não vou fazer isso. Estou com medo – respondeu com voz e postura de criança.
– Idiota! – Ao que a casa começou a andar, as rusalkas a girar freneticamente no alto, formando um rodamoinho, e a Baba Yaga urrou de ódio. Apesar da confusão, Fiódor recuperou a lucidez e tornou a se perceber adulto: algo descia dos céus feito uma estrela cadente e investiu contra a velha; um dragão ossudo, que expirava fogo e tinha as feições do tio Aliocha. – Koshchei, meu inimigo! – bradou a Baba Yaga, mas as chamas a foram secando, até o ponto de incinerá-la, evaporaram suas ajudantes e queimaram a casa. O dragão assou e devorou as pernas de galinha e se colocou diante do filho de Pavlov Petrovich. Encarou-o com um sorriso cínico:
– Bela bagunça que você arrumou! Olhe como a família está! Veja que condições deploráveis.
– Como se a culpa fosse minha. Foi você quem fugiu.
– Pareço ser, mas não sou seu tio. Você que está me dando este rosto. Sou muito mais antigo. Guardo a minha vida em um ovo, que fica dentro de um pato prisioneiro das entranhas de uma lebre, que fica dentro de uma cuba, escondida debaixo de um carvalho. Acha que pode calcular ou encontrar isso? Não seja tão ingênuo! Tenho milhares de anos. Ou milhões. A vida não é tão curta como os cristãos imaginam, nem tão única. A vida é a vida, um emaranhado de galhos.
– Aonde quer me levar?
– Para lugar nenhum. – Desfez-se em um vapor vermelho, que tinha alguma finalidade: foi moldado ao redor um cenário; uma taberna.
Nesta, um homem de pele escura e cabelos crespos caía bêbado, tropeçava a todo instante, sem, no entanto, sucumbir sob os risos da ralé.
– Serei lembrado! – Era o seu brado. – Vou construir uma tradição! Vocês serão todos esquecidos, logo que forem enterrados. Suas vidas passarão em vão!
– Pare de fazer versos, Pushkin! Está mamado demais para isso!
– Não valorizamos as tradições da nossa terra. Aonde iremos parar? Antes de sermos cristãos, somos russos! Membros de uma grande e magnífica família! – Era pequeno e descabelado, com uma voz potente.
– Parem de criticar o senhor Pushkin! – falou uma figura na bodega que lembrava um sátiro; sentado em um banquinho, sóbrio, mas nu, com o membro ereto. Sua pele se parecia com a casca de um tronco de árvore. – Antes de ser russo, ele é meu amigo! E prestem atenção no novo visitante: ele sim é digno de uma recepção calorosa! – Apontou para Fiódor.
– Yarilo, meu caro, sempre um amigo valioso! Você sim é meu Salvador! – "Um deus imoral e obsceno! Como pode ser um deus? Na verdade, era um demônio venerado pelos ignorantes", Fiódor se lembrou de palavras que sua avó dizia quando era pequeno, misturando-as às recentes imagens da Baba Yaga. Desejou acordar, voltar ao corpóreo. Foi em vão.
– Não sei como vim parar aqui. E já estou de saída – falou com aquela gente.
– Esse aí está tão bêbado que nem sabe como chegou! Pois então vamos mostrar a saída a ele, Yarilo! É um belo rapaz. – Talvez estivesse realmente bêbado, andando por aí e não sonhando, e visse criaturas estranhas no lugar das pessoas comuns e reais?
– Deixe de ser imoral, senhor Pushkin! – A criatura brincou.
E se houvesse algo na vodca? Quiçá uma gota do sangue de Cristo colocada pelo abade Mendeleev?
– Não sou imoral, sou russo! – Todos gargalharam. Fiódor resolveu escapar e disparou.
– Não o deixem fugir! – O deus da fertilidade resolveu se mexer.
– Eu o vi primeiro, seu desgraçado!
– Era seu salvador, agora sou um desgraçado?
– Não há assim tanta diferença. As diferenças estão nas circunstâncias!
Surpreendendo a si mesmo, o rapaz conseguiu ir longe o bastante para não ser alcançado por aquela turba ébria.
Deparou-se, em um cenário de relva alta e fosca, o céu avermelhado, com uma casa que lembrava em muito as residências dos servos de seu pai.
Como a porta estava entreaberta, empurrou-a. Lembrou-se do supersticioso Yevgeny. A habitação era parecida demais. Rangia a cada passo dado.
Quanto ao fato daquele camponês detestar animais brancos, e nunca ter tido um, a despeito da casa cheia de gatos, de alguns cães e de um cavalo no estábulo ao lado, fora questionado pelo garoto nobre e explicara-se:
– Bichos de pelo branco atraem os Dvorovoi, que são demônios muito agressivos e detestam esse tipo de animal. Depois de comerem um gato branco então, passam a devorar humanos. – E com um certo riso Fiódor se lembrou de antigos pesadelos, de como sua imaginação moldara os Dvorovoi e de como tivera medo de que um deles chegasse à noite para devorá-lo.
"Carne tenra e macia", imaginava o monstro falando devagar, com uma voz engraçada para seu senso crítico adulto, apavorante em outros tempos.
– Até que enfim chegou. Me deixou esperando por tantos anos! – Quem encontrou na casa, no entanto, não foi algum demônio doméstico, mas sim uma moça exuberante, sentada em uma cadeira ao fundo, que revelou seu rosto ao se levantar e sair das sombras, sem assustá-lo: era-lhe familiar, ainda que não soubesse dizer de onde a conhecia; alguns traços de sua face recordavam os seus próprios; tinha grandes olhos azuis redondos, cabelos loiros cacheados e trajava-se com um vestido branco de anáguas e bordados dourados.
Sorriu com amenidade e o abraçou com um carinho que só se lembrava de ter conhecido ainda bem pequenino, em suas primeiras memórias, no colo da mãe.
– Quem é você? – inquiriu com certa perplexidade.
– Compreendo que não me reconheça. Afinal, nunca chegou a me conhecer. Essa é a dura verdade. Sou Vasilissa Pavlovna. Isso lhe diz algo?
– Pavlovna… Nosso patronímico é o mesmo.
– Sou sua irmã. Mas uma irmã que você não chegou a conhecer, ainda que nossos pais já na época tivessem idealizado um nome, para o caso de terem uma menina, quando eu estava no ventre da mamãe. – Fiódor arregalou os olhos. – Sei que é difícil de acreditar, que isso parece um sonho. Mas ao mesmo tempo parece realidade, não é mesmo? Você não está sonhando, apesar de não estar no mundo material, Fiódor.
– Se é mesmo minha irmã, como nunca tomei conhecimento da sua pessoa?
– Mamãe me perdeu com oito meses de gravidez, antes que você e nossos irmãos nascessem. E nunca mais falou sobre o assunto com ninguém. Para não reviver a dor, para não rememorar o sofrimento. Por isso você acabou não sabendo. Porque ela nunca mais quis falar sobre o que aconteceu. E nem que outras pessoas comentassem algo entre si, o que acataram em respeito a ela. Só que não se iluda, pois o feto já é um ser vivo. E desenvolvi minha consciência sem ter vivido, sem ter existido no mundo, sem poder pertencer à minha família. Como espírito, cresci no Limbo e acompanhei a trajetória de vocês. Por não ter sido batizada, não posso me elevar ao Paraíso. Mas você é a minha esperança, Fiódor. E a esperança de Boris, do papai e da mamãe, que estão no Purgatório. Como o último de nós, reze por eles. Para que o caminho seja facilitado. E reze por mim. Para que o Espírito Santo me batize, já que no Limbo não há água. Não há nada. Nem mesmo sofrimento. Apenas vazio.
– Isto é desconcertante. Não sei como posso acreditar. Mas parece tão real...
– É real! Fiódor, você será um cruzado, abençoado por Deus! Honre nossa família, irmãozinho! Posso chamá-lo assim porque teria nascido antes de você.
– Consegue enxergar o futuro?
– Posso intuir. Mas você é capaz de mudá-lo! Você é livre. Em todo caso, gostaria de lhe pedir para que seguisse a senda de Cristo. Como eu, há muitas crianças não batizadas na Rússia. E é pelo excesso de paganismo, mais ou menos disfarçado, que o reino está nessa situação, repleto de tártaros e de covardes como o tio Alexei. Vi o que ele fez. Mas de nada adiantaria se vingar, irmãozinho. Sangue não se paga com sangue. Isso é pagão. Nossa avó tinha razão quando lhe contava as histórias dos demônios antigos. O problema é que eles ainda estão vivos. O tio Aliocha só tem a veste de cristão. Escondido, venera os deuses pagãos! Tome consciência: você não deve combatê-lo, e sim combater o paganismo, a fumaça que sobe até o trono do Tsar, tentando queimá-lo. Trate a doença, não os sintomas.
– Há cristãos que fazem tanto mal quanto certos pagãos.
– Mas é porque um fruto podre corrompe os sadios! Entenda, Fiódor… – E mergulhou seus olhos nos do irmão, que despertou para a constatação de que saíra em espírito para visitar o outro mundo, de que tudo o que acontecera até o momento fora tão real quanto sua própria carne ou o abade Mendeleev. Não se tratava de um delírio. – O que você viu hoje… Você esteve bem próximo do Inferno, para testemunhar de perto o que o paganismo faz com as pessoas. Seres terríveis, como a Baba Yaga, querem se passar por nossos entes queridos! E no passado inúmeros demônios se passaram por deuses. Para que o que passou não o atormente nunca mais, precisará construir um futuro sacramentado pela cruz. – De supetão, o irmão liberou um gemido, franziu o cenho e se afastou, pois começava a sentir vertigens e uma forte dor no peito. – O que foi? Irmãozinho?
Não conseguiu responder. Outras dores se manifestaram em partes diferentes de seu ser e as tonturas aumentaram. Por um instante, apagou. Como última sensação do outro lado, restava-lhe um fio da doce voz de Vasilissa. Despertou em seu corpo de carne e ossos. Amanhecera.
Moveu os dedos e girou os pulsos. Sentia uma leve dor de cabeça. "O que foi que aconteceu? Ainda não sei o que pensar. Lembro-me de tudo, de cada detalhe! Sempre me esqueço dos sonhos, só que dessa vez me lembro do que aconteceu com mais nitidez do que daquilo que vem acontecendo na minha vida entre os afazeres diários! Nunca imaginei que a minha mãe tivesse me escondido uma irmã. Se foi só um devaneio, não sei; mas e se não foi?" Com o corpo mais duro do que dolorido, teve dificuldades para se levantar. Passaria o resto da manhã confuso, à espera que o que vivera se transformasse em névoa, mas não esqueceria. Uma parte sua acreditava; a outra parcela tinha dúvidas.
Perto dali, no interior de uma choupana, um homem encapuzado encerrava seu ritual. O círculo mágico desaparecia à medida que a luz do Sol entrava. Os símbolos se dispersavam.
Ratos roíam uma viga apodrecida; a madeira do teto e das paredes resmungava. O indivíduo descobriu a cabeça: tratava-se do abade Mendeleev.
– Você realmente não mede esforços para realizar o que se propõe.
Aquela voz, expressando-se em latim, vinha de uma figura espectral, que estava imóvel no canto oposto.
– Fiódor se unirá a nós. Ele não nos escapará – replicou Mendeleev.
– Acompanhei a cerimônia toda. E fiquei impressionado com a sua crueldade. Ao mesmo tempo, estou orgulhoso! Gostaria de estar fisicamente por perto para lhe dar um abraço!
– Poupe-me das suas carícias.
– Por que quer tanto o rapaz?
– Você sabe. Eu lhe falei da visão que tive.
– Vive tendo visões! E as leva tão a sério que precisa realizá-las a todo custo. Se o viu como um cruzado logo da primeira vez que o encarou, por que não deixou o destino se encarregar disso? Parece que não acredita tanto assim no destino, ou não tentaria manipulá-lo. Se suas visões fossem puras, previsões exatas, não interferiria na vida para realizá-las.
– Não se meta, Jonathan. Sei o que faço. Fiódor será um cruzado de grande utilidade.
– E por quanto tempo ainda pretende preservar esse disfarce de abade? Até ter uma nova visão?
– Por quanto tempo você pretende manter esse disfarce de cardeal?
– Está sendo muito duro comigo! Não fui eu quem entrou na mente de um mancebo desamparado, devassei seu passado, o de seus entes queridos e não tão queridos e manipulei a alma perdida de um pobre feto inocente, fruto de uma união ilícita, por tanto tempo mantido em segredo, e que você teve a ousadia de batizar.
– Não tente sugerir nada.
– O que eu poderia insinuar? Estou treinando para me tornar um homem santo. – O cardeal Jonathan Cibo, ali presente através de uma emanação espiritual, ergueu um sorriso de canto de lábio e sumiu.
Mendeleev saiu do casebre, deixando para trás apenas o bosquezinho brumoso situado ao lado do mosteiro. Considerando um olhar para a matéria, ali não havia mais nada. Graças à sua magia, conseguia manter seu recanto de meditações oculto, assim como a si próprio enquanto se achava em seu interior.
Quanto aos ratos dali, talvez não fossem meros animais, da mesma forma que um cruzado e um mago não eram exatamente seres humanos.
1 O retábulo é uma estrutura de mármore, madeira ou outro material que fica atrás ou acima do altar e que costuma encerrar um ou mais painéis pintados ou em relevo.
2 Arca cuja tampa serve de banco, em geral para mais de uma pessoa. Tem encosto e pode apresentar braço.
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