Menos mal que não precisara sair pelo mar Tenebroso.
Muitos anos haviam se passado desde que deixara de ser um pirata e Heráclio cultivava uma relação ambígua com o mar. Seguia fascinado por este e ao mesmo tempo o temia. Amava-o e preferia a distância a não ser pelo olhar. Gostava de contemplá-lo ao pôr do sol, de maneira similar ao relacionamento com uma amante pela qual nutrisse uma paixão, mas que o deixasse mais do que receoso, a ponto de hesitar nos menores gestos de carinho para evitar o apego em relação a algo no qual não via perspectivas de felicidade. Era preferível se limitar a fitar as belas formas.
Ainda assim, como em outras ocasiões, atravessara as águas. Embora estivesse longe de ser o condutor da nau onde se achava. Passivo na embarcação, sentia-se mais como uma mercadoria.
Descera com um misto de alívio e expectativa na ilha que os serviços de espionagem da Igreja haviam dito se tratar, talvez, da lendária Hy-Brazil, e, mais importante do que isso, pois era uma certeza, do local onde se encontrava a presente sede da Seita de Magdala. Sua missão: examinar o lugar e exterminar o maior número possível de bruxas; se possível, no entanto, retornando não só com informações mais precisas como com ao menos uma feiticeira viva, visto que as espiãs, em sua maioria freiras não tão ortodoxas, mas ainda assim freiras, não possuíam capacidades para reagir em casos extremos e evitavam portanto atitudes bruscas e os ambientes mais perigosos. "Se eu pudesse, levaria uma delas para os meus aposentos e não até os padres! Se bem que não sei como são. Se forem como Melissa..." Brincava consigo mesmo para não se entristecer com certas recordações.
No passado, a sede daquela seita estava situada na ilha de Judá, que abrangia territórios que teriam pertencido aos reinos bíblicos de Israel e Judá.
Fora na Cidade Santa que, no Natal do ano 1000, em meio às catástrofes que ocorriam, inspirando-se em uma antiga lenda, o sacro imperador romano-germânico de então, ao acreditar que seria o último, depositara sua coroa no Santo Sepulcro. A expectativa era para que Jesus Cristo descesse para tomá-la. Ou que o Anticristo se manifestasse, para depois ser derrotado pelo Senhor em sua segunda vinda.
Mas nenhum dos dois aparecera. Seguiram-se apenas ataques de demônios contra a população da cidade, onde viviam à época cristãos, judeus e muçulmanos. Jerusalém fora destruída, o imperador sucumbira lutando contra os demônios e os sobreviventes conseguiram levar algumas poucas relíquias da Cidade Santa para Roma e Constantinopla.
Assim, por mais que o cenário parecesse apocalíptico, e lágrimas varreram os corações da cristandade pela Jerusalém Terrestre reduzida a pó exceto por algumas poucas ruínas, além disso partes da Terra Santa indo para debaixo do mar, a vida e a espera pela Jerusalém Celeste seguiram adiante.
Como nem Cristo nem o Anticristo haviam se manifestado, apesar dos demônios, que depois tinham deixado aquela ilha, o Sacro Império Romano-Germânico continuaria a existir, sob uma nova dinastia.
No mesmo período, dera-se o aparecimento do Santo Graal na Inglaterra. O que levara ao surgimento da Ordem dos Padres Vermelhos, para que em seguida despontassem os cruzados, celebrados pela população cristã. A mesma que, em grande parte, passaria a culpar os judeus pelos desastres ocorridos. Diante disso, muitos deles, sofrendo perseguições, acusados de serem evocadores de espíritos infernais, fugiram de reinos como França, Castela e Escócia, e também dos domínios imperiais. A maioria estava de acordo que era melhor que se fossem, deicidas como eram, a fim de não macularem o Santo Cálice com sua presença.
Os fugitivos se dirigiram, em boa parte, à ilha de Judá; e apenas depois de algumas décadas que a existência das bruxas de Magdala começara a ser comentada. Estabelecida sua sede nesta cidade, por muito tempo haviam convivido de forma pacífica com a sociedade judaica da ilha.
Isso até que, em 1942, Judá fora invadida e arrasada por uma expedição do sacro imperador Adolf I, que levara consigo as últimas relíquias que restavam de Jerusalém, entre as quais a Lança de Longino, considerada perdida desde um ataque maciço de demônios a Constantinopla em 1453. Os judeus da ilha foram declarados cúmplices das criaturas do Inferno pelo soberano e a partir daquele momento o Império Romano-Germânico passara a ter em seu poder duas lanças sagradas: a de Longino, com a qual o soldado romano atravessara o costado de Cristo; e a Lança do Destino, que continha partes da madeira e alguns dos pregos da Verdadeira Cruz, ambas diferenciadas pela Igreja já havia alguns séculos.
Enfim, com a comunidade judaica da ilha massacrada, e as bruxas caçadas por cruzados cuja presença fora requisitada pelo imperador Adolf, que as acusava de evocar demônios e profanar as relíquias que persistiam na ilha, as sobreviventes se viram obrigadas a escapar. Uniram-se a elas alguns judeus supérstites, e só seriam reencontradas décadas depois. Isso porque uma delas, chamada Gabriela, fora seguida.
Seguindo o mapa que lhe fora entregue, Heráclio deixou para trás a praia e se embrenhou nas florestas da ilha, onde deveria dar com uma certa caverna. O sol forte, uma vez entre as árvores altas e de folhas espessas, desapareceu. Dera lugar a um clima fresco e a brumas repentinas. "Às vezes me questiono demais, fico mudando de opinião, e com essa paisagem as coisas só pioram. Não deveria estar seguro e tranquilo, com a minha fé estável em Cristo, ainda mais depois de já ter tido uma experiência direta com Ele? Infeliz ou felizmente, em meio a tudo o que aconteceu e vem acontecendo durante estes anos, minhas dúvidas só crescem. Qual a diferença entre a magia pagã e o “mago” Jesus? Por que uma vida ser prolongada pelo sangue de um indivíduo não é uma ofensa a Deus e qualquer outro meio se trata de uma afronta à vontade do Criador, que pelo Pecado Original determinou nossa mortalidade? O Filho fazia o mesmo que os magos fazem, transformando a água, multiplicando alimentos, levitando sobre a água. Nada a mais, nem a menos. E não seríamos todos filhos Daquele que moldou o mundo? Não fomos feitos à Sua imagem e semelhança? Perdoe-me se estou sendo ingrato, é que o Senhor não me esclareceu todas as dúvidas! Foi rápido demais. Agradecido sou, ou nem mesmo estaria aqui, arriscando minha pele pelo seu legado. Poderia ser mais um egoísta, que depois de salvo tomaria seu próprio rumo, mandando às favas uma alucinação que o deixou fora do eixo. Na minha visão, tenho que me sacrificar pelo Senhor! A minha vida de alguma forma lhe pertence. Afinal, não só obtive de volta o que já estava perdido, como obtive muito mais… Seu sangue! Só não me conformo com o Inferno, como não me conformo com o Dilúvio Universal e catástrofes que arrastam as massas: não me diga que nesses casos todos são culpados! Se houver um só justo, a cidade será poupada. Não é isso o que está no Livro? Por sorte ou desgraça, nunca desisto com facilidade, e é essa a maneira que encontrei de agradecer sem me torturar, pois o Inferno para mim é também a submissão cega, que se curva ao diabo imposto."
Nas aparências, aquela era uma ilha despovoada, onde a vegetação era o que se impunha. Mesmo os animais rareavam, a não ser pelos insetos e por um ou outro pássaro.
Teve a impressão do anoitecer ao ver um besouro branco sobre uma folha. Segundo o mapa, faltava bastante para chegar à gruta marcada e não deveria haver ninguém por ali, mas escutou alguns passos. Ocultou-se entre as folhagens e se questionou se não deveria atacar, porém existia a possibilidade de que fosse apenas algum animal maior, ou quiçá um náufrago como ele mesmo um dia fora. A ilha talvez não tivesse só insetos, pássaros e bruxas.
"Talvez haja uma compensação. Sabe-se lá o que Cristo pensa e planeja! Fui salvo, e agora salvo outro coitado que veio parar em um fim de mundo. Vamos ver o que acontece", não foi nada pacífica, no entanto, a recepção de alguém que sequer chegou a ver direito, um desconhecido sob capuz e túnica em andrajos: partiu deste maltrapilho misterioso um vento que cortava folhas e obrigou o cruzado a saltar, ainda assim tendo riscadas partes de sua armadura cor de chumbo.
Heráclio não costumava revestir com elmos sua cabeça, tanto que não estava utilizando um no momento. Não era do seu agrado. Fazia com que se sentisse em uma clausura craniana. Para aparar os golpes que vinham na sua direção, evitando que atingissem sua cabeça, empregava seus braceletes. Era muito hábil nesse aspecto, sem dúvidas o melhor dos cruzados no confronto corporal, visto que não trazia consigo armas. "Se Jesus não precisava de espadas e escudos para se proteger do diabo, por que eu precisaria?" Especializara-se em técnicas marciais com os pés e os punhos. Praticara com afinco tanto o pugilato quanto o pancrácio.
Os ventos que continuaram a passar levantavam as plantas próximas do ex-pirata ao mesmo tempo que as retalhavam. O guerreiro se esquivava e se acercava aos poucos do desconhecido, em maior velocidade em relação aos passos que este dava para trás.
Uma aura avermelhada, repleta de corpúsculos pedregosos, envolveu o cruzado. Seu pescoço entumesceu e por pouco não acertou o encapuzado com um soco, em uma investida similar à de um leão que dava seu bote na presa; mas o ataque atingiu uma rocha, deixando-a em frangalhos.
"Que porcaria! Em vez de acertá-lo, estou ferindo a natureza. Tenho que ser mais precisa!" O impacto levantara o capuz e evidenciara o rosto: tratava-se de Gabriela.
"É uma delas! Vai ser difícil levar alguma dessas desgraçadas viva. Só se for uma fraca. No caso dessa aí, a base da coisa é mais no ou eu ou ela!" Refletiu o cruzado, ao passo que a bruxa, com a proximidade do guerreiro, teve outro pensamento: "A precisão vem depois. Tenho que mudar de tática", e desta vez, sem que se esquivasse, uma sequência de socos foi desviada e acertou o ar.
Heráclio sentira como se seus braços tivessem sido empurrados e a feiticeira ainda conseguiu produzir cortes em seu pescoço ao manipular os ventos. "Que pescoço! Com uma pele grossa desse jeito, mais parecendo a de um rinoceronte, vou ter ainda muito trabalho!"
– Puta desgraçada… – Seguiu-se um contra-ataque veloz.
Mais uma vez, contudo, os punhos e também as pernas foram desviados. Um pequeno tufão se formou e atirou longe o cruzado. "Ela é pior do que eu pensava!"
– Apesar de você querer me matar, isso está mais do que claro, e de ter vindo fazer mal a nós, posso poupar a sua vida se quiser. É uma escolha sua. Esteja certo: algumas colegas minhas não seriam assim tão clementes. Mas não quero que faça uma imagem ruim de nós. Ao contrário do que a sua Igreja propaga, somos tudo menos satânicas. – Ela se aproximou. – Ou a sua honra de guerreiro não vai permitir que se renda? – indagou após não receber respostas, só o temível olhar do cruzado, que acabava de se levantar. – Pense mais na vergonha de ser um soldado submisso.
– O que uma bruxa pode entender sobre honra e sobre a Igreja?
– Mais do que imagina.
– Para sua sorte ou azar, não sou dos mais honrados e entendo um pouco de bruxas.
– E em que sentido isso quer dizer que não pretende continuar vivo?
– Só não quero ser mal-agradecido! Uma vez, a vida me foi devolvida de presente. Não posso ser ingrato, e muito menos morrer, pelo menos não enquanto não tiver obtido certas respostas.
– Antes que me pergunte como descobri que estava neste local, sabíamos que cedo ou tarde viriam. Acha que não sei que fui seguida e que introduziram espiãs por aqui? Bastou esperar e senti a presença do intruso. Nós só não as matamos por uma questão de solidariedade feminina. Pobres coitadas, manipuladas feito marionetes! São apenas garotas ingênuas presas em um maquinário criado e controlado por homens. E também não somos como vocês. Dificilmente matamos. A vida é um dom precioso da Mãe. Se você for embora sem alardes, portanto...
– Concordo que a vida seja um dom precioso, e por isso não vou perdê-la, mas está se contradizendo. Não disse que algumas de suas colegas não seriam tão magnânimas quanto você, dando a entender que me matariam?
– Com os cruzados é diferente. São fanáticos e fortes demais. Portanto, ou matamos ou morremos, como já aconteceu a muitas de nós. É uma questão de legítima defesa.
– Engraçado, pensei a mesma coisa quanto a você. Ou te matava, ou morria.
– Ou é ou você me mata, ou você morre?
– Ficou mais próxima da verdade. Mas se quer saber, não tenho nada contra bruxas. Como te disse, entendo um pouco a respeito de vocês. Antes de ser um cruzado, inclusive amei uma bruxa. E não acho que estejam condenadas ao Inferno a priori. Peço que entenda, por favor, que não é nada pessoal.
– Não é um fanático, e isso me deixa surpresa. Se me permite a curiosidade, como foi virar um cruzado e que fim teve a sua amada?
– Mulheres gostam de romances. Qualquer mulher, não é? Só que não sou um trovador: fui um pirata. – Teria tornado a atacar se não tivesse se sentido imobilizado. Suas pernas não saíam do lugar; seus músculos, tensos demais, davam a impressão de que iriam arrebentar se os forçasse mais; os ossos doíam. Não podia se mexer, com a sensação que feridas se abriam em sua pele.
– Movimento errado. Gosta de bater em mulheres? É alguma espécie de tara? Seria menos deselegante se usasse uma espada.
– O que você fez? Ou o que você faz?
– Parece que percebeu que sou um pouco diferente. Não gosto só de magia elemental. Se quer mesmo saber, vou lhe dizer apenas que tenho gosto por observar nossa respiração, alcançando assim nossa força vital, o que nos permite existir neste mundo. Para além do ar físico, estou falando de um ar espiritual. O que é bem interessante, pois consigo bloquear o fluxo desse ar.
Heráclio ficou agoniado. "Respirando eu estou. Só que não consigo sair do lugar. Ela distorce a minha vontade. Preciso querer com mais força! Será essa uma solução? Deve ser. Ou não? E se for preciso relaxar? Fazer força e contrair os músculos é algo que estou fazendo desde o começo do confronto com ela.
Isso me lembra o bom e sábio Raja. O problema é que ela fala demais… Um problema para ela! Preciso estimular isso, se quiser ter alguma chance de sobrevivência! Essa bruxa desgraçada se acha o suprassumo."
– Será que me entendeu, cruzado? A minha oferta ainda está de pé. Só não tarde demais em decidir, porque não vai durar muito.
– Entendi sim tudo o que disse. Vai me deixar ir por não odiar bruxas?
– Também por isso. É que não gosto de ver nenhuma forma de vida perder sua força vital, seu pneuma. O meu prazer está em brincar com ele e em mostrar aos homens que o que a Igreja chama de Espírito Santo não se limita a eles.
– Pneuma? Já ouvi essa palavra. Mas sou meio ignorante, apesar de estar na Igreja. Me interesso mais por coisas práticas.
– E o que há de mais prático do que querer preservar a própria vida?
Heráclio relaxou a musculatura e saltou, para a surpresa de Gabriela. Conseguira se libertar e acertou um murro em seu rosto, que, apesar de seus poderes místicos, ainda era o de um ser humano.
A bruxa gritou e despencou tonta no chão. Fora um dos golpes mais fracos do cruzado, que não contraíra os músculos o suficiente na hora do ataque, mas ainda assim seu ataque equivalera a um soco forte de um homem robusto. Tanto que o sangue despontou na boca de Gabriela.
"Não posso ficar com pena. Se hesitar, ela acaba comigo!" Precisava ir até o fim.
"Mas como ele conseguiu?" Inconformada e caída, teria levado um chute no estômago, desta vez com toda a força do cruzado, "relaxar e agir com vontade, mas sem pressão, foi a chave para acabar com o truque dela! Se acontecer de novo, já sei o que fazer", se um cipó não tivesse brotado da terra e amarrado-lhe o pé, puxando-o e derrubando-o no solo.
Além disso, as folhas em volta avançaram em sua direção para cobri-lo e sufocá-lo.
– O que está acontecendo aqui? Parece que as plantas agora têm vida própria!
– As plantas sempre foram vivas, seu ignorante. – Não pôde ver quem era, porém uma nova voz interviera, doce, fina; parecia a de uma garotinha, só que as palavras e o gênio eram fortes. – Gabriela, não tenha medo, pois vim ajudá-la.
"Outra bruxa! Maldição!" Desta vez com a força bruta, arrebentou a liana e se desvencilhou das folhas.
Viu então, amparando Gabriela, uma jovem de cabelos cacheados castanho-claros que devia ter seus vinte anos ou pouco mais ou menos, cujos olhos eram duas esmeraldas clarificadas e que esboçava em seu rosto um sorriso de lábios fechados que guardava algo de precioso, mas não irradiava nenhuma alegria. "Em outras circunstâncias, poderia me apaixonar por ela", em sua cintura estava pendurada uma espada leve, de empunhadura dourada e lâmina comprida. Trajava uma túnica branca curta e calçava coturnos. "Ela poderia me pisotear", transmitia uma pressão intimidadora; mais do que o rosnar do cão que despontou da mata, que mais se assemelhava a um lobo, talvez um misto das duas espécies.
– Fique calmo, Órion. Prometo que esse homem não vai me machucar. – Acariciou o animal.
Outros cipós brotavam do solo, agressivos feito serpentes, e os galhos e folhas das árvores se fechavam ao redor de Heráclio, que empregou sua potência muscular para ficar livre.
Tentou se lançar na direção daquela feiticeira, porém a terra se elevou em uma corcova e o catapultou para longe.
"Mas que merda de bruxa!" Precisava elaborar alguma nova estratégia.
– Obrigado por salvar a minha pele, Flora. – Gabriela sorriu para a amiga, que perdeu o sorriso e ficou séria.
A primeira bruxa a confrontar o cruzado ainda tinha forças: atrapalhou com sua intenção os movimentos de Heráclio, amarrado por dezenas de cipós, dos quais não conseguiria mais se livrar. "Não dá. Contra duas dessas é impossível! Quem iria imaginar que fossem tão poderosas? Pelo visto, o meu fim chegou", vieram recordações de Melissa, de seus companheiros, da Igreja, de Cristo; tudo terminaria de forma tão precoce? Fora salvo de uma ilha perdida para acabar daquele jeito em outra?
Seu peito ardia, mas seu abdômen ficava gelado. Os vegetais se moviam feito cobras e braços de gigantes. "Não consigo mais relaxar", um mal-estar, os pensamentos dispersos e as lembranças eram o que prevalecia no momento.
– Você subestimou a natureza e a nós. Esse será o seu castigo, homem. – Apesar do sorriso se manifestar outra vez, não havia ironia ou sarcasmo no tom daquela jovem. – Claro que fico entristecida quando uma vida se esvai, mesmo que seja a de um ser humano do sexo masculino, geralmente incapaz de compreender o valor da vida, das plantas e dos animais, o amor que os deuses têm por nós, mas não há outra escolha, pois sei que nos matará se o deixarmos livre, como seus antecessores fizeram com muitas de nossas antepassadas na ilha de Judá. Peço desculpas à Mãe e entrego sua alma a Ela, filho da Terra. Ela saberá o que fazer.
– Apesar de ter me batido de forma muito deselegante, não sou de guardar ressentimentos. Cruzado ou não, as plantas da Flora vão deixá-lo com os ossos moídos, e não desejaria isso para ninguém. Mas você não quis escutar os meus avisos – emendou Gabriela.
– Mesmo que me soltassem agora, eu não desistiria de lutar. – Heráclio cerrou os dentes.
– E por quê? Por uma Igreja que o envia para a morte certa?
– Já lhe disse que não tenho nada contra as bruxas. Só preciso compreender as razões de quem me salvou a vida.
– Por acaso foi a Igreja?
– De certa forma sim. Mas fique certa que, mesmo depois da minha morte, virão outros, juntos, e então vocês estarão perdidas. Afinal, agora a Igreja sabe onde se encontram. Será como quando Judá foi dizimada.
– Poderemos muito bem mudar de lugar a tempo desta vez. – Gabriela abriu um sorriso de superioridade. – Não somos prisioneiras como vocês, que nunca vão sair de Roma. Enquanto existirem. Afinal, a Igreja algum dia deixará de existir, como ocorreu a muitos templos e religiões do passado. Por que com vocês seria diferente? Porque Deus quis? Ora, existiram muitos profetas e sábios como Jesus. Se conhecesse as histórias deles, não diria que ele foi o maior de todos.
– Não estou interessado em questões teológicas e sim nas práticas.
– Já chega, Gabriela. Não adianta perder tempo com esse homem. Ele está tentando nos distrair e nos enganar para se soltar – interveio Flora. – Vou dar um fim nisso.
– Esperem. – Contudo, uma ordem firme e tranquila paralisou a ação da mais nova.
O cão Órion se acalmou de uma hora para a outra.
Da floresta vinham uma mulher em trajes de couro, com os cabelos loiros presos, os olhos azuis, o rosto arredondado e de uma expressão serena e instigante, e outra morena e gorda, de cabelos pretos curtos e olhos escuros, que vestia uma longa túnica colorida e botas. Sorridente, aparentava simpatia a despeito das circunstâncias.
Heráclio, que começava a conseguir relaxar mais uma vez, sentiu todos os seus músculos ficarem tensos de novo e um calor abrasivo o agrediu ao centrar os olhos na primeira. "Essa tem o espírito mais impressionante das quatro! É pior do que muitos demônios."
– Miriam? Não esperava que fosse se deslocar até aqui. Não estou mesmo na minha melhor forma para precisar de tanta ajuda! – Gabriela expandiu seu sorriso, auto-irônica.
– Vocês são é muito apressadas. Parece que já viram um pote de ouro criar pernas! – disse a morena, antes da outra, séria, retomar a palavra:
– Ele é muito valioso para morrer aqui hoje. E mais dois pontos: não somos assassinas e os cruzados não são necessariamente nossos inimigos. – Tinha lábios grossos e sua fala saía sem tremulações. Fora ela a dar a ordem que detivera Flora, que objetou:
– Por que diz isso, Miriam? Ele veio nos matar.
– Sei disso. Mas quer se igualar a eles? Não damos a outra face, mas também não estamos de acordo com o olho por olho, dente por dente. Não queremos um mundo passivo nem um mundo cego. Não se esqueçam de que eles podem ser tão inocentes e manipuláveis quanto as freiras que vieram nos espionar.
– Você diz isso porque não conhece alguns de nós. – Heráclio pela primeira vez se dirigiu à loira. Gilles viera-lhe à memória.
– É claro que existem os fanáticos. Mas não generalizo. Sei que veio por algo maior do que simplesmente cumprir uma missão ordenada pelos padres vermelhos.
– Por acaso é vidente ou adivinha? Uma pitonisa?
– O fogo às vezes me mostra certas verdades. A mim ele não queima, ilumina; e a luz esclarece os corredores, mostra os caminhos. Gabriela, você deve ter percebido que ele tem um coração diferente do dos fanáticos.
– Claro. Tanto que tentei não matá-lo. Por mim, que vivesse sossegado e tivesse filhinhas e netinhas. Só que é um cabeça-dura. – Encarou o cruzado.
– E ele não vai morrer, não será necessário.
– Mas será que os cruzados ainda têm aquilo funcionando? Pode ser que seja ainda melhor, pode ser que seja dolorido, castrados não parecem ser! – comentou a morena risonha.
– Raquel, por favor. O assunto é sério. – Miriam a encarou com severidade.
– Garanto que aquilo meu funciona muito bem, só não sei se daria para ter cruzadinhos e bruxinhas. – Contudo, Heráclio replicou. – Levo a sério o meu voto, então não posso responder por mim, e nunca perguntei nada aos padres. Talvez porque não seja do meu interesse no momento.
– À beira da morte, ainda brinca. – Flora e seu sorriso peculiar.
– Sei que não vou morrer mais. A sua líder me garantiu. Você é a líder das bruxas de Magdala, não é? – Encarou a loira com determinação. Tentava ocultar a dor causada pela queimação em seus membros.
– Bruxinhas e cruzadinhos… O que você quis dizer de verdade? – Raquel franziu o cenho, voltando-se para Gabriela, que replicou:
– Ele já teve uma amante bruxa.
– Bruxa costuma ser um termo pejorativo, mas nós não temos preconceitos. Somos uma Ordem de magia, e temos tanto bruxas quanto magas em nosso grupo. – Miriam expôs ao ex-pirata. – A distinção que fazemos é que, enquanto as bruxas trabalham mais diretamente com a natureza terrena e a magia elemental, as magas dão mais atenção aos seres e fenômenos mentais, sutis e celestiais. Portanto, eu e Gabriela somos, mais estritamente, magas, e Raquel e Flora bruxas. Isso não significa ser melhor ou pior. São dons diferentes. E, respondendo a sua pergunta, não sou uma papisa de Magdala. Elas só me respeitam porque eu me respeito e me faço respeitar.
– Disse que vim por algo mais do que cumprir uma simples missão. Então pode me dizer o que seria? – Heráclio a olhou com profundidade, tentando não se deixar encantar por aqueles olhos grandes e expressivos.
Órion se retirou. Os cipós e galhos soltaram o guerreiro por ordem mental de Flora, que, mais tranquila, deixara de sorrir.
– Não parece mais disposto a lutar. Aprecio sua mudança.
– Quero ouvir o que tem a me dizer.
– Vou lhe mostrar muitas verdades. Depois do que souber, duvido que voltará para a Igreja.
– Acha que vou me unir a vocês? Que eu saiba, não admitem homens.
– Não na magia, mas admitimos aliados. O inimigo a ser vencido não são os cruzados e sim a Igreja. E não a religião cristã nem a Igreja como função e instituição religiosa: a Igreja como instituição política e sua estrutura que é tudo menos religiosa.
– Agora melhor. – Voltou a movimentar os membros. – Estou ansioso para ver o que tem a me mostrar. – Seu corpo já doía e ardia menos.
– Flora, Gabriela, Raquel: estão livres.
– E deixar você sozinha com esse sujeito? – questionou Raquel.
– Ele não vai fazer mais nada. Ele gostou da Miriam – respondeu Gabriela.
– Como é que é?
– Ele confiou na Miriam, melhor dizendo, já que você é sempre maliciosa.
– Não será o primeiro homem a entrar no local em que irei levá-lo – disse a loira, ao passo que Flora já se afastara. – Temos alguém conosco, outro homem, que irá surpreendê-lo.
– Estou pronto para o que der e vier. – As brumas se adensando ao seu redor, o ex-pirata ergueu bem a cabeça, mas o que acabara de dizer era mesmo verdade?
Literunico - O espaço dos criadores de conteúdo literário.