Para o torneio que selecionaria o guerreiro que viria a se tornar o mais novo cruzado, organizado pela Igreja na expectativa de encontrar o décimo segundo caçador de demônios
da era presente, gente de diferentes origens estava reunida no Coliseu de Roma.
A fim de ofuscar as lembranças dos gladiadores e massacres de animais, havia imagens sacras espalhadas pelo anfiteatro, que na grande final contaria inclusive com a presença do
papa.
– Resolvemos realizar aqui a seleção de mais um paladino da fé, espalhando o anúncio desta nova forma de escolha por todos os reinos da cristandade, para que
possamos encontrar um que prime pela bravura, demonstrando de forma inequívoca que não possui o menor receio de colocar a própria vida em risco. – O cardeal Torquemada fez o discurso de abertura.
– Claro que não gostaríamos que ocorressem mortes, mas se estas acontecerem teremos que nos lembrar dos mártires que ofereceram seu sangue, do sacrifício de suas próprias vidas, para
propagar a verdadeira Fé. Deixemos de lado as diversões mundanas que eram realizadas neste palco e recordemos isso, pois o que os demônios esperam de nós são a covardia e o medo, a desistência
da meta e o abandono da fé quando as dificuldades se impõem.
Havia, entre os homens dispostos a aceitar o desafio, alguns búlgaros pobres de elmos pontiagudos, atarracados e trajados com túnicas almofadadas costuradas de forma rudimentar. Tornar-se um cruzado significava para eles adquirir respeito, temor ou amor, não sentir fome e não se entediar, mas, visto que nem possuíam recursos para comprar
armaduras, suas chances de triunfo eram mínimas.
Entre os espectadores, que deviam ser por volta de trinta mil, a opulência da burguesia e da nobreza romanas se escancarava nos assentos reservados. As mulheres das classes altas tinham
ali como última moda, importada da França, os sapatos de solas altas de couro, cortiça ou madeira. O clero, em grande parte, não os via com bons olhos, pois eram considerados vulgares, mais adequados
às prostitutas, e difundiam ideias de que estes contribuiriam para a esterilidade das moças. As mulheres grávidas, afinal, não conseguiam manter o equilíbrio sobre aqueles saltos; e durante
seus sermões nas missas, os prelados não paravam de falar nas que tinham sido vistas caindo, que dessa forma haviam perdido os filhos, o que as conduziria à perdição de suas almas.
Outra moda, a dos vestidos muito coloridos, era evidente nas arquibancadas do Coliseu, mas estes haviam sido proibidos às casadas, permitido apenas nos arredores da capital do Estado
Pontifício que esposas não nobres do campo os utilizassem. Não haviam chegado ao nível do que ocorrera em Siena, na Toscana, onde roupas de muita cor eram vetadas a mulheres que não fossem
prostitutas.
Os vestidos padrão, justos até a cintura e abrindo-se em uma saia ampla que caía em pregas, permitiam decotes para as solteiras e mostravam detalhes requintados quando
pertenciam a donzelas e senhoras de estratos elevados.
Os chapéus mais comuns entre as damas eram: os em forma de cone, de cujo vértice pendia um véu; os de adorno borboleta, estruturas presas a pequenos chapéus ou toucados que escondiam os cabelos e ficavam altas na cabeça, servindo de apoio para véus diáfanos com
o formato de asas de borboleta; e os de adorno corniforme, criticados pelos eclesiásticos por poderem ser associados à forma da cabeça do diabo.
Isso além de penteados altos, que segundo se dizia requeriam uma testa bastante alta, forçando assim muitas a depilarem as áreas próximas da testa para fazer retroceder
as entradas do cabelo.
Entre as técnicas para eliminar fios, estes podiam ser queimados em cal viva, arrancados com pinças ou com os dedos impregnados em pez, ou então atacavam os bulbos capilares
com agulhas quentes.
– Não vejo a hora que comece. Sinto meu sangue fervilhar. Só não tomei parte porque sou casado e não pretendo abandonar minha esposa. – Um nobre romano
comentou com outro, os homens de origens privilegiadas que ali se achavam vestindo, em sua maioria, camisas de linho e calças justas, alguns deles túnicas que iam até os joelhos, bordadas nas extremidades
e presas por cintos repletos de joias e ornamentos, as insígnias de suas famílias em broches, ao passo que entre os humildes prevaleciam camisas de cânhamo e calções largos.
Para os pobres, era difícil obter espaços na plateia, pois, enquanto os nobres e a burguesia contavam com lugares reservados, os que não tinham nem nome nem dinheiro precisavam
brigar – às vezes literalmente – para acompanhar o torneio. Isso que, na teoria, importava a ordem de chegada, e guardas tratavam de manter do lado de fora os que excederiam o número preestabelecido
de espectadores.
– Isto aqui está muito duro! Está velho! – protestou um rústico, os estamentos inferiores alimentados com pão e os superiores com quitutes mais sofisticados,
todos os custos bancados pela Igreja e uma missa realizada ao término das disputas de cada dia.
Se em diversos reinos a Igreja já condenara os torneios, em Roma organizava um e não via a menor contradição entre as duas atitudes, afinal os motivos eram bem distintos.
"De onde venho, sempre salientaram a afinidade entre torneios e pecados capitais", refletia Antenor, que aguardava a sua vez sentado em uma tribuna reservada para os combatentes antes que entrassem na arena. "Aqui, apesar da presença de tantos padres, o que vejo não me parece diferente. Nobres, burgueses e servos são os mesmos em qualquer lugar do mundo. Imperam a futilidade, o orgulho, a gula.
Como naquele garoto que acabou de sujar toda a roupa bordada com um molho amarelo e na mãe cheia de trejeitos que lhe deu a bronca. A diferença entre torneios comuns e este reside na finalidade. Seres humanos
como eles, apesar de seus defeitos, continuam sendo filhos de Deus. Quem é isento de pecados? Essa gente precisa ser protegida por alguém que, embora continue a ser um pecador e um ente falível, tenha
em mente, com mais estabilidade, os ideais cristãos e não possua objetivos mundanos.
Nunca me interessei por terras, festas e batalhas vãs; por isso me julgo apropriado para a condição de cruzado. A fé não deve ser imposta pela força,
mas garantida por ela. Os que já são cristãos, mesmo que numa semente de suas almas, precisam ser defendidos para que quem sabe algum dia seus espíritos floresçam."
Deixara para trás sua família em Portugal e fora a Roma na expectativa de se tornar um cruzado.
Rapaz corajoso, abrira mão de uma vida confortável, filho terceirogênito que era entre os herdeiros do marquês Vicente de Braga, da família dos Biscainhos.
Dizia-se comovido com a miséria do povo e indignado com a violência de bárbaros, piratas e demônios. Afirmava que queria fazer algo pelas pessoas simples, ser um cristão
pleno, de preferência um espadachim que manejava a cruz, se bem que fosse, na verdade, um arqueiro de primeira linha.
– Por que correr esse risco, filho? Se não quer continuar em casa, se sente tédio, pode se tornar um padre e trabalhar com afinco pelos pobres. Por que um cruzado? –
indagara-lhe o bom Vicente, numa tarde ensolarada no alto da Torre de Menagem do castelo de Braga.
O marquês, junto com seu filho, acabara de supervisionar as atividades da guarnição.
– Não tenho vocação para observar as coisas à distância, papai, saber que pessoas inocentes são atacadas e mortas por demônios sem que possam
se defender! Não que o poder da oração seja nulo, mas acho que rezar funciona para os santos, não para as pessoas comuns. Não sei, não posso ter certeza, só tenho a impressão
que, para que a fé produza algum efeito, o indivíduo precisa estar limpo de pecados, e são pouquíssimos os que estão.
– Sei ao que está se referindo. Mas todos fizeram o possível para salvar a sua mãe. Só que os ferimentos eram graves demais.
– Se eu já fosse um cruzado, teria matado o demônio antes que as garras e os dentes dele provocassem a perda de metade do sangue do corpo dela.
– Nada garante que você teria chegado a tempo. Antenor, você não pode salvar o mundo. Você não é Cristo. Não precisa carregar tanto peso
em seus ombros.
– Sei o que deseja, papai. Só me quer vivo e próximo.
– Depois que sua mãe foi morta, vocês, meus queridos filhos, são tudo o que me resta.
– E sabe que, quando ficar velho, se ficar aqui serei o único que passará a maior parte do tempo ao seu lado.
– O seu coração é diferente, sempre foi. Com tamanha habilidade com o arco e as flechas, nunca participou de uma caçada comigo e com seus irmãos...
– Adoro coelhos e cervos. Os únicos animais que até hoje senti prazer em abater foram corvos e abutres. Não gosto de necrófagos de nenhuma espécie.
E animais voadores me dão uma certa aflição.
– Isso vem desde quando era pequeno, quando aquele corvo enlouquecido atacou a sua irmã justamente na ferida do joelho dela, bicando-a com tanta força que ela nunca mais
deixou de mancar.
– Aquele não era um corvo comum, devia ser uma espécie de demônio, ou comandado pelo pensamento de um. E o senhor sabe da afeição que nutro por Teresa.
Desde então sempre os meus olhos queimam quando vejo um pássaro ou um morcego, como se essas criaturas fossem comandadas por uma vontade externa a elas.
– Não se esqueça de que os anjos também têm asas e que há pássaros de doce temperamento e belo canto.
– Quanto a esses pássaros, sei disso e até os aprecio, mas prefiro ouvi-los a vê-los.
– Você só tinha seis anos naquela época, então compreendo que foi um choque ver a sua irmã sendo agredida daquela maneira. E estavam brincando; a violência
quebrou a brincadeira. Um rompimento drástico. Pareceu até que os anjos haviam nos abandonado, pois desprezaram a inocência.
– Quanto aos anjos, a propósito, estou quase certo de que na realidade não possuem asas. Trata-se de uma mera representação. Na verdade, é a Luz de
Deus que os impulsiona. Só os demônios precisam de asas, afinal não têm o mérito necessário para se afastarem da terra.
– E você, meu filho, me parece querer distância dela.
– Não. Quero contribuir para salvá-la. Ou melhor, libertá-la.
– Falo das coisas da terra. A libertação é uma coisa do Céu. Fico aliviado que não se mova por um espírito de vingança.
– Isso não, meu pai. Apesar da recordação da mamãe, sei que não poderei trazê-la de volta. É um calor maior o que faz meu peito arder.
– E ao chegar em Roma, enfrentando uma temperatura escaldante, afinal era verão, esta lhe parecera a mais viciosa e irrecuperável das cidades, repleta de mendigos, ladrões e prostitutas, difícil
crer que fosse a sede da Igreja, muito embora áreas como as proximidades do Palácio de Latrão e da Basílica de São Pedro parecessem sempre limpas e bem protegidas, até pela grande
quantidade de peregrinos que afluía.
Se não conseguisse se tornar um cruzado, teria que se contentar em ser um cavaleiro andante, e retornaria para perto do pai sempre que possível.
Temia a frustração, pois não teria a força necessária para vencer grandes demônios.
Entrementes, no torneio surpreendeu os favoritos, entre os quais diversos cavaleiros italianos e franceses.
Preciso com a espada, o arco e a lança, lamentou as mortes de dois de seus rivais, porém buscou estabelecer em sua mente a ideia de que morriam como mártires, de que fora
algo necessário para que o campeão da fé despontasse; ademais, quem se propunha a enfrentar demônios não podia ter apego pela própria vida.
Era diferente de um torneio mundano: passou a repetir isso para si mesmo e assim chegou à final.
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