Do alto do morro, observava a cidade com suas luzes lá embaixo. As dezenas de casas parecidas entre si com lâmpadas amarelas brilhando nas varandas. Entre elas estava a sua, sempre com sua lâmpada azul acesa e tingindo a frente da casa e parte da rua, destacada das outras, esperando que voltasse.Â
Era cedo. Não havia ninguém na rua, o sol ainda estava distante de nascer e mesmo os vizinhos madrugadores ainda dormiam. Nem mesmo um carro errante.Â
Tinha vontade de chegar logo, mas caminhava com todo o cuidado que podia. A cada passo sentia agulhadas terrÃveis na ferida ainda não cicatrizada na lateral do corpo. O bom senso mandaria procurar um hospital assim que o dia surgisse, depois de tranquilizar a famÃlia. A consciência dizia que devia cuidar da questão ele mesmo.Â
Chegou à porta e o céu já adquiria aquele tom de roxo fosco que antecede os primeiros raios de sol. A mochila que sempre carregava não importava aonde fosse fora de casa estava pesada com suas duas alças apoiadas no ombro contrário ao local do ferimento.Â
A chave reserva no local de sempre, o buraco escondido no terceiro tijolo do lado esquerdo. Deveria parar com aquilo! A comunidade já não era tão segura quanto quando se mudaram. Certo seria que cada um tivesse sua chave e se a perdesse que esperasse outro chegar sentado nos degraus da frente. Havia grandes chances de ser ele a ficar do lado de fora, melhor deixar as coisas como estavam.Â
Destrancou a porta e tirou os sapatos antes de entrar. As luzes todas apagadas, a pouca luminosidade que tinha vinha da lâmpada azul da varanda. A casa estava tão silenciosa quanto a rua em que ficava, exceto por um cão que latia em algum lugar ao longe.Â
Deixou a mochila sobre o sofá, sentindo ou imaginando sentir um lÃquido espesso e morno descer pelo abdômen, o ferimento podia ter se aberto novamente.Â
Começou a caminhar para seu quarto. Precisava de um banho, trocar o curativo, dormir um pouco em sua própria cama. Pensou melhor e voltou para pegar a mochila esquecida. Quando se tem rapazes em casa é preciso dar o exemplo. Não poderia cobrar organização deles se deixava suas coisas todas espalhadas pelos cantos.Â
O ferimento ardia, também obrigava a uma marcha tropega, desanimava do banho porque a água e o sabão seriam incômodos. Suspirou e ligou o chuveiro deixando que a água escorresse ralo abaixo enquanto pegava a primeira muda de roupas que encontrou na gaveta e tomava coragem.Â
Quando terminou o banho sentiu como se os vários dias longe de casa pesassem em seu peito. A roupa escolhida foi deixada de lado sobre a cadeira e depois de refazer o curativo se enfiou sob a colcha que cobria a cama com cuidado de arrumar uma posição confortável em que nada tocasse o ferimento. O cansaço era tanto que adormeceu assim que fechou os olhos.Â