O homem alto de cabelos escuros encontrou o irmão encostado na coluna da varanda, o olhar perdido enquanto tragava o que esperava que fosse um simples cigarro, embora estivesse segurando pela ponta entre os dedos polegar e indicador.Â
Quando o viu, sinalizou erguendo um pouco o queixo para cima. Sinal universal de sei-que-te-conheço-mas-não-tenho-muita-intimidade. Já tinham sido melhores amigos, agora só dividiam um sobrenome.Â
Enquanto subia a rampa, Bento jogou a guimba no canteiro de grama ao lado. Ajeitou a perna que até então estava apoiada na parede e deu alguns passos em sua direção.Â
Só então reparou o quanto estava magro, desaparecendo dentro do blusão de lã marrom desfiado nos punhos. O rosto, outrora bonito, delicado e quase feminino estava endurecido e encovado, o cabelo raspado rente ao crânio e com falhas aumentava a idade, os olhos que antes pareciam doces também haviam esfriado. Havia muito tempo que não o via e se o encontrasse com pressa na rua, talvez nem reconhecesse.Â
Samuel perguntou se o irmão tinha entrado na casa. Bento apenas sacudiu a cabeça, os dois olharam ao mesmo tempo para a porta onde havia uma fresta aberta da casa onde nenhum dos três irmãos entravam há anos. Â
Diego estacionou no fim da rua, deu a volta no carro, verificou duas vezes se cada porta estava trancada como fazia sempre. Depois subiu em direção a casa.Â
 O mesmo andar gingado de sempre. A cabeça baixa, a gola da blusa erguida contra o pescoço e as mãos enterradas no bolso. Quase a imagem que os irmãos guardavam dos tempos de escola. Era o mais velho dos três, a calvÃcie começava a dar sinais de que chegaria com tudo. Ainda assim, era o que mais permanecia como era. Diego ainda o ele mesmo.Â
Parou ao lado dos irmãos. Não cumprimentou ou gastou palavras com amenidades. Não se viam há anos, agiu como se tivesse estado com eles ainda à quela manhã.Â
Perguntou assim que os alcançou. Não houve resposta, nem devia ter havido pergunta. Ele sabia que nenhum dos dois entraria.Â
Sacudiu a cabeça, decepcionado por ter acontecido exatamente o que imaginava. Os dois caçulas esperaram por ele, como sempre tinham esperado, como sempre esperariam, como sempre acontecia quando havia algo a resolver. Â
Passou pelos irmãos em direção a porta sem esperá-los ou olhar para ver se o seguiam. Parou para respirar antes de entrar, não sabia o que encontraria lá dentro. Tirando tia Lydia que limpava uma vez por mês, ninguém visitava na casa.Â
Quando decidiu entrar os irmãos já o haviam alcançado. Cruzaram a porta em silêncio, com um misto de respeito e nervosismo que não tinha motivo aparente. Andavam um atrás do outro, como uma fila de crianças entrando na sala de aula guiada pela professora.Â
A casa permanecia exatamente como se lembravam. A mesa de trabalho que o pai usava ainda permanecia diante da janela com sua caneca cheia de canetas, o vasinho de violetas que marcava o canto, o peso de papel feito de vidro colorido que tinha ganhado dos filhos em um dia dos pais. A estante de livros ainda estava organizada, embora tivesse alguns volumes com páginas amareladas pelo tempo que nenhum dos três tinha certeza se já eram assim antes.Â
Diego deixou os irmãos na sala, os dois encostados! Circulou pela casa, verificando se estava tudo bem. Â
Nada na cozinha. Tudo exatamente onde deveria estar, limpo e organizado como nunca havia sido nos tempos em que ocupavam a casa. O pai teria orgulho se visse. Tocou as canecas coloridas penduradas em ganchos, uma para cada um e a que ficava intocada, pertencia a mãe dos caçulas e permanecia no gancho como se em algum momento ela fosse se levantar dos mortos, entrar pela porta e se sentar com o pai para tomar um chá.Â
Foi até os quartos, o seu ainda estava igual ao dia em que saiu de casa, até os posteres do Corinthians na parede, a mesa de estudo com livros empilhados e sua lâmpada em formato de foguete.Â
 O pai podia ter feito coisa melhor com o espaço, um escritório do qual só ele tivesse a chave ou uma caverna masculina com jogos e uma geladeira de cerveja... Pelo que conhecia do pai essa imagem nem o agradaria, preferiria reformar o lugar para que abrigasse seus livros velhos, seus objetos estranhos e delicados que ele sempre advertira aos irmãos para não tocar, sua música sempre constante que dizia que ajudava a reconhecer os próprios pensamentos.Â
Em vez disso decidiu conservar o lugar como o filho mais velho havia deixado, talvez pensasse que se um dia precisasse poderia voltar e começar de novo do inÃcio. Melhor forma de refazer um caminho era voltar a origem.Â
O quarto que os mais novos dividiam também permanecia o mesmo. Só mais pelado que o dele. Não morava mais ali quando o pai tinha desaparecido, por isso não moveu nada. Os irmãos precisaram de boa parte de suas coisas. O quarto agora parecia impessoal, seu beliche não parecia pronta para receber crianças e as prateleiras estavam estéreis. Quase um quarto que se encontra em qualquer hotel barato e que até se esforça para ser aconchegante, mas não parece o lar de ninguém.Â
A porta do quarto do pai estava fechada, mas sempre havia estado. Era onde guardava as antiguidades mais delicadas ou mais perigosas, suas relÃquias. Também era onde havia colocado o espelho imenso feito de pedra vulcânica, dizia que o objeto era muito delicado e que seus cacos seriam muito afiados se quebrasse. Não parecia assim tão frágil, ao menos pelo que se lembrava, tinha quase certeza de que essa era a maneira polida do pai mantê-los afastados de um objeto valioso.Â
Não conferiu o quarto, não havia necessidade. Â
—Quem avisou que a porta estava aberta?Â
Perguntou aos irmãos que olhavam ansiosos para ele. O menor a um passo da porta, como se tudo o que quisesse fosse sair dali. O outro encostado na mesa de trabalho do pai, as pernas cruzadas diante do corpo. As mãos apoiadas atrás. Â
—A vizinha da frente. Não lembro o nome. Ligou para a tia Lydia, ela me ligou e eu chamei vocês.Â
—Quem travou o alarme?Â
Os mais novos se olharam. Obvio que nenhum dos dois. Aquele olhar entre os dois, aquela comunicação não verbal que sempre o deixava de fora. O jeito como agiam, parecendo não dois seres humanos e sim uma entidade com dois rostos...odiava aquilo! Achava que o incomodo diminuiria conforme fossem crescendo. Eram seus irmãozinhos, os amava, mas aquilo o irritava mais do que deveria.Â
—Vocês nem pensaram nisso, não foi? Â
Bento o encarou por um segundo, seus olhos estavam um pouco fundos e as olheiras estavam bem-marcadas sob os olhos. Quando terminassem ali, teria que ter uma bela conversa com ele. Se tivesse algo que pudesse fazer, faria, se Bento quisesse, é claro.Â
—A tia deve ter esquecido de ligar na última faxina, ela já está meio velha...Â
—Pode ser, mas ela nunca esqueceu antes. Não acredito...Â
Os três olharam ao mesmo tempo para o corredor que levava aos quartos. Não tinha sido impressão, ouviram algo vindo dali. Diego estava pronto para ir até lá quando uma porta rangeu e já não sabia o que fazia, se ligava para a polÃcia, se saia da casa correndo ou se apanhava algo que pudesse servir como arma contra o invasor.Â
Do corredor surgiu um homem completamente nu, não fosse pela toalha que envolvia sua cintura e que ele não soubera ou não se preocupara em amarrar, limitando-se a segurá-la de um lado com uma das mãos.Â
Bento foi o primeiro a reconhecê-lo. Colocando-se no caminho dos irmãos caso algum tivesse a brilhante ideia de fazer algo contra o homem de toalha.Â
O homem sussurrou as palavras “O que houve contigo?â€Â Antes de desviar o olhar para os outros presentes na sala.Â
—Tudo bem... vocês têm que me explicar umas coisinhas. Me deem uns quinze minutos, eu já volto. Â
E virou as costas para os três irmãos confusos e assustados como crianças.Â