Às vezes passavam sombras distantes ou próximas com a forma de pessoas escurecendo a névoa esbranquiçada. Bento continuava caminhando, sentindo agora agulhas nos calcanhares a cada passo.Â
Para não pensar nas dores e no cansaço, começou a procurar focar sua atenção em tudo que estava a seu redor. Outra coisa que aprendeu em uma das clÃnicas e nunca tinha conseguido tentar colocar em prática era que podia mudar o foco de si para outras pessoas quando olhar para dentro ficasse insuportável. Ninguém era um floquinho de neve especial e por pior que fosse, sempre haveria alguém precisando de outra pessoa. Podia gastar um pouco de seu tempo se ocupando dos outros.Â
Quando decidiu internamente parar de olhar para si e olhar em volta, parecia que tudo o que havia na neblina chegou de uma vez até ele, como se soubessem que ele queria ajudar.Â
As vozes chegaram como uma onda, lançando-o para trás e fazendo do mundo um lugar impossÃvel. Anos antes, uma fração daquela sensação o levou a quase destruir a vidinha que tinha. Agora ainda era difÃcil, mas melhor do que ficar no ciclo terrÃvel de pensamentos em que entrara, sendo levado a uma espiral constante de tudo o que era ruim nele e tudo o que de se envergonhava e detestava ou tinha medo. Preferia lidar um pouco com as dores dos outros.Â
Pouco depois que foi envolvido pela bruma densa começou a encontrar consigo mesmo em momentos de sua vida que preferia esquecer e nunca esquecia, nem quando se deixava levar nas asas de alucinação da brisa quÃmica.Â
Chegou a achar que estava no inferno, condenado a eterna repetição do pior dele. Como não se lembrava de ter morrido no caminho e não se sentia mais morto agora do que quando tinha acordado naquela manhã (ou seria na manhã anterior? Ou seria há muito mais manhãs do que pudesse contar?) concluiu que estava vivo. Isso ajudou um pouco a continuar.Â
A primeira visão que o assaltou apareceu bem diante de seu caminho. Como uma tela onde exibiam um filme. Um filme que ele nunca pagaria para ver e que não deveria ser exibido em parte alguma, mas que já tinha visto milhares de vezes.Â
Um dia em que fugiu de casa mais uma vez, sem dinheiro e sentindo o barulho crescer, encontrou um cara que não conhecia bem, já o tinha visto por aÃ. Os dois estavam atrás da mesma coisa. A pedrinha amarelada e aerada que parecia brilhar quando refletia luz e que mandava os problemas e parte do barulho para longe. Â
O colega disse que sabia como conseguir sem precisar de grana. Quem sente a mordida não consegue pensar direito, então foi com o cara até uma casa feia, suja e sem calçamento no pátio.Â
O dono os convidou para entrar. Olhou para ele analisando como quem escolhe frutas no mercado. Deu duas das pedrinhas ao rapaz que o levou até lá e disse que para ele estava no quarto.Â
O homem o empurrou contra o espelho, queria que visse o que acontecia. Quando começou a chorar e pedir para ir embora o homem segurou seu pulso para trás e disse com os lábios colados em seu ouvido — Sem choro! Fica quietinho, nem tá doendo!Â
Quando acabou deu a ele uma das pequenas. Disse que das próximas vezes fosse por conta própria e não precisaria dividir o pagamento.Â
O que mais doÃa é que mesmo com ódio de si mesmo e jurando que nunca mais se humilharia novamente, quando o bichinho nojento começou a morder de novo tinha ido. Olhou a cena e continuou em frente, atravessando bem no meio e vendo o que antes parecia muito palpável se tornar tão névoa quanto o resto a sua volta.Â
Tinha visto outras coisas. A tia caÃda no chão, machucada, quando tinha empurrado para sair da casa depois da última internação. Tinha sido poucos dias antes do pai voltar e não voltou a vê-la. Por isso não quis ir ao enterro, tinha vergonha e um pouco de medo de que a alma da tia se revoltasse e o expulsasse do campo santo a vassouradas.Â
O dia que se jogou do lado de uma lata de lixo com cacos de vidro de uma garrafa de cerveja e tinha pensado seriamente em acabar de vez com tudo, e não tinha ido adiante com medo de ser engolido pelo barulho ensurdecedor que era diferente do barulho que ouvia o tempo todo porque parecia feito não de pensamentos, mas de desesperos e todas as coisas ruins do mundo e acabou jogando os cacos longe, cortando as mãos sem perceber e corrido o mais que podia. Terminando sua noite no hospital implorando para que dessem alguma coisa que fizesse a dor passar enquanto recebia os pontos que tinham infeccionado e que quase tinham feito com que perdesse uma das mãos. Só não tinha acontecido porque a tia o deixou entrar em casa e cuidou dele por alguns dias, sendo paga com nova fuga, desta vez pela janela antes do sol nascer e sem qualquer explicação ou despedida.Â
Cada vergonha, medo, frustração e dor se apresentou diante dele como atores em um teatro de sombras, cada uma delas foi vista, registrada e atravessada.Â
Se estava em uma espécie de inferno, não era tão pior do que as noites que passava sozinho por aÃ. As cenas não o perturbavam ali mais do que todas as vezes que tinham sido remoÃdas. Seus arrependimentos não eram novos, não tinha por que desviar o olhar deles.Â
Sem querer Bento havia descoberto os segredos das brumas. Não eram um meio de punição, mas de purificação. Como atravessar a névoa e chegar a sua sorte se não se é capaz de encarar as coisas ruins pelas quais já passou e seguir em frente apesar de tudo? Como virar uma página se não consegue desgrudar da anterior. Como seguir em frente se você se desvia do caminho para não olhar o que precisa ser visto para não repetir?Â
Admita sua culpa pelo que tem culpa, perdoe o que precisa ser perdoado, veja o passado, siga em frente. DifÃcil, mas necessário.Â
Quando o desfile de seus pesos terminou, acabou percebendo que as sombras na névoa se tornaram mais nÃtidas, como se estivessem mais próximas. Ele as tinha convidado quando decidiu que queria fazer algo por alguém além de si mesmo, parou por alguns segundo, escolheu uma direção sem nenhum motivo em particular. Seguiu até que a forma difusa na névoa brotasse diante dele.Â
A mulher curvada sobre si mesma, agarrada aos joelhos, chorava sem lágrimas. Já deviam ter secado, ela estava a tanto tempo ali sentada que nem tinha percebido que nunca mais seria capaz de molhar o rosto com o próprio choro. Diante dela havia um pequeno embrulho de tecido amarelo. Bento sabia o que significava, a moça que devia ter cruzado com um monte de arrependimentos, não conseguia deixar esse para trás, sabe Deus quanto tempo estava assim! Tinha o rosto encovado e as extremidades dos ossos aparentes. Os lábios rachados sangravam. Ela não notava.Â
Bento se agachou ao lado dela abraçando os joelhos, só porque ela parecia tão sozinha que se fosse ele gostaria de alguma companhia. Demorou um pouco para que o percebesse ali. Afastou o rosto das mãos e virou em direção a Bento, não o tinha visto chegando. Tinha muito tempo que não via nada. Bento sorriu de leve, olhou o embrulho amarelinho e para a moça de novo.Â
Estendeu a mão diante da mulher, desequilibrando um pouco antes de alcançá-la, mas sem perder a posição.Â
—Dói né? Eu sei, mas não resolve. Se você não continuar apesar disso, vai ter sido muito esforço para nada. Vem comigo! Já faz muito tempo que nem faz sentido continuar aÃ.Â
A mulher hesitou um pouco, mudando o olhar do rosto de Bento para o pacotinho do qual não conseguia se desapegar. Por fim segurou a mão que Bento estendia. Ele se levantou e ajudou ela a se levantar, entrelaçando seus dedos nos dela e ajudando a dar passos trôpegos adiante no caminho, passaram por cima do pacotinho que virou névoa assim que seguiram. Â