Abriu a porta e encontrou um Bento enrolado no cobertor como havia feito de manhã ao ir à cozinha.Â
—A porta quebrou. Não abriu por dentro...Â
Pela luz que saia do corredor para o quarto, Alexandre viu que o filho suava, as mãos estavam um pouco tremulas também, menos do que durante o dia, acreditava que o dia seguinte seria menos difÃcil para Bento. Samuel não teria tanto trabalho.Â
—Parece que um caminhão passou por cima de mim.Â
—Volta para cama então.Â
—Já estou cheio de ficar deitado.Â
Bento passou por ele em direção da sala, a pele estava brilhando de um suor grudento que ensebava os cabelos e os lábios estavam ressecados, quase rachando. Sinal de desidratação. Â
Foi até a cozinha e pegou a garrafa com água gelada que entregou ao filho que se jogou no sofá sem acender a luz. Sentou-se ao lado de Bento, adiando um pouco mais o que não tinha pressa de fazer.Â
Ficaram algum tempo sentados um ao lado do outro sem falar nada. Confortáveis de certo modo, cada um entregue aos próprios pensamentos.Â
—Pai... o senhor me perdoa?Â
Bento quebrou o silêncio, mas por algum tempo não obteve resposta. Alexandre estava bastante cansado.Â
—Não tenho pelo que. Só me promete que vai ficar bem, tá legal?Â
Foi a vez de Bento ficar calado. Dos três rapazes, ele era o que pensava mais baixo, quase silencioso para Alexandre na maior parte das vezes. Bento sussurrava dentro da própria cabeça, era engraçado. Na maior parte do tempo só conseguia ouvi-lo quando o tocava.Â
Alexandre estendeu a mão. Tocou a pele exposta do braço fino do filho, o blusão de lã foi atirado a um canto ao longo do dia. Antes de deixar que voltasse para a cama trocaria os lençóis e colocaria as roupas para lavar, também faria com que tomasse banho. Esse menino precisava se sentir limpo.Â
Bento tinha um milhão de coisas a dizer, mas não conseguia fazê-lo. Tinha medo até de pensar claramente em algumas coisas. Alexandre ouvia, baixinho, mas ouvia e tinha impressão de que o filho sabia que era ouvido, só não tinha certeza se ele simplesmente aceitava que o pai era um pouco fora do comum ou se por outro motivo. Pelo que se lembrava, Bentinho também não era muito comum, desde pequeno era um pouco mais sensÃvel do que os irmãos tinham sido.Â
O fluxo de pensamentos confusos que chegava até ele vinha carregado de culpa. Anos vivendo como caçador, invadindo a cachola de um monte de gente de todo tipo e nunca tinha visto uma pessoa com tanto peso sobre as costas, consumido pelas culpas que tinha e imaginava ter. Â
Alexandre refletiu consigo mesmo se seu menino não precisaria resolver bem mais coisas do que o problema com drogas, tentou garantir a si mesmo que confiaria no garoto e deixaria que lidasse com isso a sua própria maneira, não ia mais interferir, exceto se ele pedisse.Â
Bento sentia culpa pela morte da mãe, de algum modo isso permaneceu na mente da criança de forma distorcida, como se ele soubesse o que estava para acontecer e não tivesse avisado a ninguém. Se culpava pelo sumiço do pai, por ter concordado com o irmão do meio por algum tempo de que o pai estava morto, pelo infarto do tio que aconteceu em uma de suas fugas, quando ficou fora do ar por três dias, por absolutamente tudo de ruim que tinha acontecido de errado com qualquer pessoa a sua volta, sentia-se um vórtice de desgraça que atraia todo azar do mundo para quem quer que o amasse.Â
Alexandre não interrompeu, deixou que seguisse com seus pensamentos porque deveria ser seu jeito de desabafar. Ali no escuro se sentia acolhido. O pedido de perdão era muito mais amplo do que imaginou no inÃcio. Só faltava se desculpar por ter nascido e de certo modo fazia isso. Â
Alexandre o abraçou e Bento se permitiu chorar no escuro. Que será que pensaria se soubesse que o pai havia feito o mesmo sozinho e envergonhado pouco antes?Â
Quando se sentiu melhor afastou-se, evitou o contato fÃsico, mas permaneceu sentado ao lado de Alexandre. Â
—Escuta, eu preciso sair amanhã. O Samu vem ficar aqui com você, tudo bem?Â
—Vem nada! Eu posso ficar sozinho, já estou me sentindo melhor...Â
—Sem chance! Teu irmão me prometeu que cuidaria de você enquanto eu resolvo umas coisas. Ele vai vir, só preciso que você esteja bem com isso... se não estiver fica no quarto, ele faz hora aqui na sala e você só chama se precisar mesmo, pode ser?Â
—O senhor não tem medo de que eu fuja pela janela enquanto o senhor resolve suas coisas?Â
—Porque eu acho que o senhor sabe que eu queria muito fugir, só não fiz para não te chatear, mas eu queria...Â
—Eu confio em você, Bentinho. Me promete que não vai fugir e eu faço minhas coisas em paz quando amanhecer. Â
—Eu prometo que vou tentar, mas não acho que o Samuel vai tentar me impedir... acho que se eu tentar fugir ele meio que vai dizer que já esperava.Â
—Não é sobre ele, é assunto nosso. Você quer ir embora? Se quiser eu não vou te prender. Quero que fique até estar bem. Estou falando bem mesmo, estabelecido, com condição de ir para sua própria casa, de viver a sua vida. A decisão é sua, você não está preso aqui.Â
—Eu não quero ir, queria ficar aqui...na minha casa..., mas eu sempre acabo indo. De repente o senhor devia me prender mesmo...Â
—Você é um homem, pode fazer suas próprias escolhas. Eu espero que escolha ficar. Se você for embora, é bem provável que eu vá te buscar. Quantas vezes você precisar!Â
—Eu vou ficar. Vou pedir para o Samu me ajudar a ficar se eu tiver vontade de fugir. Quando o senhor voltar eu vou estar bem aqui.Â
—Que bom! Escuta, você pode ficar um pouco aqui? Vê um pouco de televisão. Acende tudo, se quiser lê alguma coisa... Eu preciso de um tempo lá no quarto. Espero que seja rápido, mas não posso te prometer... se precisar me chama.Â
Não esperou a resposta do filho. Agora que tinha tomado coragem, teria a temida conversa e imaginava que não seria agradável.