Pouco depois que o pai e o irmão saÃram, Samuel trancou a casa por dentro, foi até o quarto que ele e o irmão sempre dividiram. Vazio! Olhou no quarto de Diego, nada novamente. Só então passou pela sua cabeça de procurar no quarto do pai. Saber que Bento estava dormindo ali já o incomodava, parecia alguma corrupção do mundo que conhecia. Â
Ultimamente as coisas vinham mudando tanto e a todo momento alguém apontava alguma coisa que sempre tinha sido de uma maneira e dizia que na verdade não era, que aquilo que julgava conhecer era e sempre tinha sido de outro jeito, só ele que tinha lido errado.Â
Sentia como se o mundo inteiro tivesse enlouquecido.Â
Não sabia o que tinha acontecido com o pai enquanto esteve fora, mas era claro que andava perturbado, o nÃvel de absurdo das coisas que afirmava só crescia. Samu se calava porque os irmãos concordavam, mas não acreditava em muita coisa do que ouvia.Â
Ficou parado algum tempo diante da porta do quarto fechada, tentando decidir se bateria ou se entraria de uma vez. O pai pediu que tomasse conta do irmão e ele o faria.Â
Tentava conter a irritação que sentia por ter que perder mais um dia de trabalho na mesma semana para vigiar Bento. Um homem adulto, pouco mais de um ano de diferença de idade entre eles e não podia ficar sem vigilância!Â
Acabaria perdendo o emprego por causa dessas faltas. Não podia culpar o pai pela falta anterior, mas podia culpar o irmão sem juÃzo por essa. Não que gostasse muito do atual emprego.Â
Analista de crédito não era o que nenhuma criança no mundo respondia quando perguntada sobre o que queria ser quando crescer. Dos três era o único que tinha feito faculdade, achava importante porque o pai tinha feito, a tia também e a mãe, todos ligados a educação. Não seria professor e não sabia o que faria. Às vezes achava que tinha escolhido errado e que uma hora acabaria largando tudo e dando uma virada na carreira, escolheria outra coisa, se prepararia e simplesmente trocaria de vida. Â
Já tinha pensado até em oferecer sociedade ao irmão mais velho na loja de eletrônicos que Diego mantinha, mas tinham se afastado tanto que não conseguia iniciar essa conversa.Â
Escolheu entrar de uma vez. Acendeu a luz na cara do irmão adormecido que reclamou um pouco. Não seria suficiente para acordá-lo, já tinha passado por aquilo antes e sabia a coreografia.Â
Arrancou as cobertas e jogou em um canto com mais violência do que desejava empregar. Â
Bento acordou assustado, reclamando baixo que havia dormido pouca coisa antes.Â
—Termina de dormir depois. O pai mandou eu cuidar de você e esse cômodo não tem grade na janela. Vai para a sala e se quiser leva a coberta. Dorme lá, onde eu posso ficar de olho em você e fazer alguma coisa de útil no computador. Quando o pai chegar vai te encontrar bem onde deixou, entendeu!Â
Bento não respondeu. A sua vontade era a de mandar o irmão ir a merda, mas se calava por que de certo modo o irmão achava que tinha direito de tratá-lo assim.Â
Já tinha vacilado muito com Samuel.Â
Até o fim da adolescência era seu melhor amigo, dividiam o quarto tanto em casa quanto na casa de tia Lydia. Se não fossem diferentes fisicamente pensariam que eram gêmeos, aonde um ia o outro sempre estava.Â
Então chegaram outras amizades de sua parte. Andar com o irmão não era mais tão legal, queria andar com outra turma, Samu se sentiu deixado de lado.Â
Foi quando começou a beber nas festinhas e praças onde ficava a noite enquanto o irmão estava no cursinho. Depois começou com a maconha para relaxar, esquecer e silenciar. Se tivesse parado por aà achava que nada demais teria acontecido, poderia seguir sua vida normalmente, mas não tinha parado e como precisava de mais para suportar e não queria ficar para trás em relação aos amigos, aceitou o desafio.Â
Depois da primeira pedra, tudo o mais perdeu a importância, era a primeira vez que tudo parecia quieto, sufocado na explosão dentro dos ouvidos e as cores pareciam mais vivas e brilhantes e as luzes mais claras. Â
Tinha sido nessa época que tinha começado a se esquecer de voltar para casa. Sumia por um, dois, oito dias e não era capaz de dizer onde estava ou o que exatamente tinha feito nesse tempo, quando se lembrava voltava. Ainda moravam com a tia. Ela nunca o mandou embora, os irmãos tinham pressionado para que saÃsse por vontade própria, até hoje a tia o acolhia quando precisava.Â
Um dia, pouco depois de arrumar o que tinha e sair sem saber direito para onde, quando estava com colegas e todos estavam na fissura e ninguém tinha sequer um centavo no bolso para um cigarro solto, viram de longe um playboyzinho no ponto do ônibus. Â
Por que não? Era um cara que com certeza teria do mais que eles. Os três chegaram de surpresa, rua vazia, o ônibus ainda ia demorar.Â
Os colegas foram mais agressivos do que deveriam, deram alguns tapas no rapaz. Não chegaram a machucar, mas é claro que ofendia. Â
Roubaram a bolsa e a carteira, gritaram e ameaçaram. Bento não fez nada disso e não tentou impedir. Tinha outras coisas na cabeça, a vontade que esmagava a garganta e deixava difÃcil respirar.Â
Não reconheceu o rapaz bem-vestido e com jeito de inteligente, seu irmão adotivo, seu melhor amigo.Â
Quando reconheceu, procurou na carteira roubada os documentos e o passe do ônibus, pensando que não seria seguro voltar de tão longe para casa tarde da noite. Devolveu ao irmão que pegou sem dizer uma palavra e não agradeceu, só o encarou com os olhos apertados, como fazia quando estava contendo a raiva ou envergonhado. Naquela hora Bento não sabia qual dos dois sentimentos predominava.Â
Depois daquela noite, Samuel falou muito pouco com ele, só quando era realmente obrigado e evitava qualquer contato.Â
 Tinha um monte de coisas que mudaria em sua vida, uma lista imensa de arrependimentos que gostaria de mudar, mas se oferecessem a chance de mudar uma única coisa, ele nem pensaria a respeito, pediria para ter deixado o irmão em paz naquela noite.Â
Fez como o irmão ordenou.Â
Foi para o sofá, torcendo para o pai voltar logo e livrá-los do peso da companhia um do outro.Â
Era quase meio-dia quando Samuel deu uma pausa no trabalho e se sentou ao lado de Bento no sofá. Não tinham trocado mais nem uma palavra até então.Â
Samuel percebeu que o irmão suava e parecia adoecido. A garrafa de água o acompanhando aonde fosse. Â
—Ficando... melhor agora que ontem.Â
Alguém poderia arrancar pedaços do silêncio entre eles com uma pá de tão denso.Â
Bento pensava que se quisesse mesmo recuperar sua vida, como o pai dizia, tinha que começar a dar seus passos nessa direção. Reuniu a coragem que não teve em mais de dez anos para fazer algo que não devia precisar ser feito. Respirou fundo duas ou três vezes, fazendo sem querer que o irmão parasse a leitura que fazia para encará-lo.Â
—Tá, vamos lá! Eu nunca te pedi desculpas por aquele dia do assalto. Eu nunca te pedi desculpas por um monte de coisas, mas aquele dia foi... Me desculpe por ter sido cuzão com você naquele dia e em todas as ocasiões em que você se lembre de eu ter sido cuzão.Â
Samuel, demorou um pouco para responder.Â
—Isso não importa. Esquece!Â
—Não! Eu vou mudar e preciso fazer isso.Â
—Igual você mudou da última vez? Fui eu quem dirigiu durante três horas para te deixar na clÃnica, lembra? Sua mudança não durou uma semana...Â
—Dessa vez vai ser de verdade. O pai falou que vai dar certo porque ele tirou de mim o que fazia não conseguir...Â
—Como se o pai pudesse fazer alguma coisa que a gente não tivesse tentado. Você é que tem que fazer alguma coisa, ninguém vai te ajudar com isso até você fazer sua parte e você não vai fazer. Acredita mesmo que o pai fez alguma coisa que arrancou de você a vontade de usar essa merda?Â
—Eu não tinha certeza, mas eu vi a moça no espelho e...Â
—Tinha uma moça no espelho, o pai disse que era nossa avó, ela é bem bonita...Â
O jeito que Samuel o olhou o incomodou para valer.Â
Samuel respirou fundo para não soar tão rÃspido quanto achou que soaria.Â
—Nosso pai não anda bem. Não sei o que houve com ele nesse tempo que ficou longe, o que eu sei é que ele não está falando coisa com coisa, anda perturbado e inventando umas coisas estranhas e você...Â
—Eu sou o drogado idiota que fritou o cérebro com crack e agora não diferencia realidade de brisa!Â
—Eu não ia falar desse jeito, mas é. Você usa, confunde suas sinapses e vê coisas. Só não envolve ele nisso, o pai já tem os próprios problemas para lidar.Â
—Eu não pedi nada, ele quem ofereceu. Só para você saber, eu não uso nada a quatro dias, quase livre e nem estou com vontade.Â
—Parabéns, mais dez e você quebra seu recorde.Â
—Pensa o que quiser! Eu sei o que vi e acredito em tudo o que ele me contou.Â
Samuel não respondeu, não queria perder tempo com conversas que não levariam a lugar algum.Â
O que queria era café, tinha saÃdo de casa atrasado e não teve tempo de preparar nem de passar em algum canto para comprar. Não podia sair para comprar porque não podia deixar o irmão sozinho e duvidava que tivesse algum em casa por causa da desintoxicação.Â
Bento falou e foi para a cozinha sem esperar resposta. Curioso, Samuel foi atrás do irmão tentando entender do que ele estava falando.Â
—Café. O pai não cortou porque ele não fica sem e se tem eu posso tomar, ele disse que não faz diferença. Em compensação levou meus cigarros. Não sei se pegou para ele para não ter que ir comprar cedo ou se o cigarro entrou no pacote das coisas que parei. Nem quero. Só procurei por hábito mesmo. Â
Samuel ficou observando enquanto o irmão trabalhava. Não tinha percebido que tinha falado alto.Â