50Â
Â
Três anos se passaram desde que os filhos do Senhor tinham cruzado a barreira de volta a seu mundo.Â
As coisas haviam mudado bastante em Al Dahin, como Alexandre tinha prometido.Â
Durante a reconstrução, estabeleceu que todas as pessoas que quisessem deveriam receber educação. Livros com receitas de remédios existiam em número suficiente, mas muitos do povo nunca tiveram a chance de aprender a lê-los. O pensamento de que os do povo não precisavam saber tinha que cair por terra. Para um lugar onde poucas crianças nasciam, não era justo perder qualquer delas por causa de febre ou de uma picada de aranha porque seus pais não sabiam o que fazer.Â
A importância das castas também deveria ser diminuÃda. Toda pessoa deveria ter uma chance de ser reconhecida por quem é e não por ter nascido com uma habilidade especÃfica. Essa deve ter sido a parte mais difÃcil e nunca foi totalmente aceita. Pensamentos enraizados não são facilmente derrubados.Â
Bentinho, quem imaginaria? Foi crucial para que Al Dahin se tornasse um lugar melhor para todos.Â
Foi facilmente aceito em meio ao povo, como se tivesse nascido ali.Â
Logo depois de chegar tinha ficado com o pai na casa do chefe dos protetores. Eros se mudou para a casa de guarda onde aqueles que se preparavam para servir viviam. Â
Depois tinha escolhido viver com o tio avô. A maluquice do tio combinava bem com seu jeito de ver o mundo e em boa parte das vezes o tio, mesmo confundido nomes e rostos e trocando fatos de tempos, se mostrava mais lucido e mais perspicaz que a maioria.Â
Tio Othis o chamava de Belter, sondando a mente bagunçada do tio da maneira que sabia não tinha sido capaz de descobrir se o confundia com um velho amigo ou se achava mesmo que esse era seu nome. As pessoas dali tinham adotado o nome, por acharam mais fácil que seu nome de batismo. Acabou se acostumando e até gostando do novo nome. Só o pai ainda o chamava pelo nome de infância e só quando estavam a sós. Bento agradecia por isso.Â
O filho de Alexandre tinha descoberto o que era bom em fazer. As pessoas naturalmente o procuravam quando queriam conversar. Suas habilidades de caçador não assustavam, pareciam mais ser o que faltava naquele lugar. Ele era bom em ouvir e em ajudar as pessoas a encontrarem soluções para seus problemas. Virou uma espécie de conselheiro do povo, mas ele queria mais.Â
Quando o pai acordou naquele dia após a queda da barreira, haviam conversado por muitas horas. Â
Alexandre tinha decidido que seu garoto tinha o direito de saber por que motivos tinha passado por tudo o que passara. Tinha direito de saber sobre a mãe, sobre ser seu filho de sangue, sobre tudo. Deixando de fora apenas o que parecia perturbador. Talvez um dia ele soubesse, não precisava ser naquele momento.Â
Ouvir sobre a mãe e sobre as razões de ter feito tudo que tinha feito o fez desejar continuar o trabalho dela. Era importante para as pessoas, era o correto.Â
Não falou nada ao pai sobre a ideia ou o desejo de conhecer os que estavam fora. Imaginou que ele saberia de qualquer maneira. Também tinha um pouco de medo de voltar a ser o mesmo peso de antes, de se tornar rapidamente o que tinha sido tão difÃcil de mudar.Â
Usou seu tempo para aprender a viver em seu novo mundo. Sem saber repetia os passos do pai quando chegou ao mundo comum. Tendo acesso a biblioteca, aprendendo rápido o idioma corrente e tendo de se esforçar para aprender o idioma antigo, leu tudo o que podia para entender o que deveria saber desde criança.Â
Dedicou seu tempo a aprender a se defender com os protetores. Cuidar de si mesmo parecia importante. Não queria dar trabalho para ninguém.Â
Aprendeu um pouco do que podia ser aprendido com os curandeiros, ao menos o básico. Tinha ânsia de ajudar o máximo que pudesse e sua natureza inquieta fazia com que a cada dia estivesse envolvido em uma atividade diferente. Ao fim de um ano poderiam dizer que tinha sido educado como um verdadeiro herdeiro do Senhor, mesmo não sendo.Â
Procurou dominar a arte de um caçador. Ainda era difÃcil não ouvir tudo ao mesmo tempo e se aprofundar na mente dos outros não era algo que fazia quando queria. Achava que nunca seria tão bom nisso quanto o pai, também não precisava ser. Já estava bom se conseguisse controlar a coisa para não ficar doente.Â
Então decidiu conversar com o pai sobre as coisas que queria e que pensava. De inÃcio o pai não consentiu. Claro que os seus que tinham sido enviados lá para fora deveriam ser cuidados, mas não precisava ser por Bento, nem precisava que ele se expusesse como queria.Â
Bento era bem mais paciente que o pai, continuou trabalhando em se tornar cada vez mais uma versão melhor dele mesmo.Â
No ano seguinte, quando o portão se abriu e pode falar ao pai como sempre tinha falado, pediu novamente. Â
Alexandre prometeu pensar. Ele era tão necessário ali, ajudava tanto, servia como um ponto seguro ao povo que antes de procurar o conselho ou um curandeiro, pediam a sua opinião. Sua ausência seria sentida.Â
No último dia de festa, Alexandre deu sua permissão. Pediu a corrente com o santinho que Bentinho nem se lembrava quem era para Liana. Transformou a corrente em uma chave que permitiria Bento voltar quando quisesse. Não exigiu, mas pediu que Bento voltasse com frequência, que vivesse nos dois mundos e servisse de guia a descendência deles que estava lá fora, podia trazê-los sempre que se sentisse seguro para isso.Â
Bento partiu poucos dias depois que o portão se fechou novamente. Voltou meses depois com um convidado. Cuidar deles lá fora era bem mais difÃcil do que cuidar dos de dentro. Gente ferrada costuma ficar na defensiva. Muitos precisavam de coisas do lado de lá e não queriam ir, só melhorar onde estavam. Bento não se sentia pronto para essa demanda.Â
Confessou isso depois de alguns dias do seu retorno, quando jantava com o pai.Â
 Alexandre tinha feito questão de fazer tudo ao contrário do que recomendavam. Em vez de morar na casa forte, com um séquito de protetores, tinha escolhido passar um tempo na casa de Eros, depois reformou a cabana onde tinha recebido as chaves e ficou por lá. A casa forte era seu local de trabalho, a cabana era onde vivia e conseguiu quase fazer um milagre, tornando a casinha caindo aos pedaços até bastante charmosa.Â
Usava roupas comuns do povo, ficava no meio dos seus, ergueu um barracão perto da casa forte que serviu como escola. Ele mesmo gastava algum tempo em educar as crianças. Outras pessoas assumiram a responsabilidade, se não fosse assim o Senhor não poderia cumprir com suas outras obrigações, mas sempre que podia passava por lá e via como estavam.Â
Incentivou que as pessoas sonhassem. Isso faltava por ali.Â
E ao fim desses três anos, acordou com a batida leve na janela. Ainda era madrugada. O céu estrelado mais brilhante que nunca. Se vestiu o mais rápido que pode e penteou os cabelos que haviam crescido até a altura dos ombros, fez duas tranças que atou na nuca com uma tira de tecido cru deixando alguns cachos soltos, como se usava em Al Dahin.Â
Abriu a janela e saiu por ela. Não tinha conseguido se livrar dos guardas que estavam sempre diante de sua casa. Não que eles o impediriam ou que fosse segredo para alguém que estava saindo, só não queria dividir o momento com nenhum deles.Â
Bento o esperava poucos metros à frente. Também tinha deixado o cabelo crescer, se misturando com os homens dali. A degradação fÃsica que o vÃcio tinha causado agora não passava de uma lembrança. Algumas cicatrizes se mantinham, isso era de se esperar. Ganhando peso e livre, parecia mais jovem do que era. Partilhava com seu povo a caracterÃstica do envelhecer lento, até então não sabia.Â
Não conversaram muito ao longo do caminho. Seguiram por ruazinhas e passagens entre as casas. Tinham que cruzar todo o povoado para chegar ao lago e ainda era cedo para falar livremente sem acordar a todos. Eles mereciam descanso, muitos trabalhavam até bem depois do sol se pôr. Â
Quando chegaram ao lugar que queriam, Alexandre se encostou por um momento na pedra grande que marcava o fim da floresta. Olhando para um ponto fixo, mexendo os pés na terra sem se dar conta. Bento sorriu, reconhecendo a impaciência do pai naquele homem que de algum modo parecia diferente.Â
—Tem certeza de que eles vêm?Â
Bento ergueu as mãos no ar pedindo paciência. Era cedo ainda, o pai sabia disso.Â
O dia clareava um pouco. Bento se distraiu olhando os primeiros raios de sol batendo no orvalho noturno sobre as folhas das árvores. Parecia que alguém tinha tido um trabalhão para prender pequenas joias em cada folha. Achava que nunca ia se acostumar com o quanto aquele lugar era bonito, nunca ia ser só mais um dia.Â
—Eles estão atrasados!Â
—Calma! Já devem estar a caminho. Relaxa, por favor!Â
—Eu não tenho muito tempo, Droga! Daqui a pouco tenho que trabalhar...Â
—Então vai. Pai, eles vão entender. Eu explico para eles...Â
—Eu não quero ir sem vê-los! Só não estou gostando da demora.Â
O sol refletiu na neblina, mostrando quatro sombras, uma bem pequena.Â
Alexandre se adiantou um pouco, quase entrando na nevoa para recebê-los.Â
Samuel, Diego, Clara e o menininho que ainda não conhecia vinham para a Festa. Era o meio que tinham encontrado para ainda serem uma famÃlia. As duas primeiras eles haviam perdido, coisas do trabalho novo de Samuel do qual ele gostava e não podia se ausentar por tanto tempo e o bebê de Diego, muito pequeno para uma viagem tão longa.Â
—Diz oi para o vovô, Lele.Â
O menininho olhava curioso para o avô por detrás das pernas da mãe. Parecia com o pai quando tinha essa idade. TÃmido, esperto e observador.Â
Alexandre se abaixou para olhá-lo de frente. Viu quando o menino deixou o seu lugar seguro atrás da mãe e se aproximou, parando por um minuto inteiro diante do avô estranho antes de decidir abraçá-lo.Â
Conversaram um pouco até que amanhecesse completamente e o chefe dos Protetores viesse buscar seu Senhor.Â
—Desculpe interromper, O conselho deseja uma última audiência antes que o senhor tome uma decisão.Â
—Um pouco tarde, não acha? Tudo bem, eu já vou... Pode dizer que não me encontrou? Só por um tempinho...Â
Eros sorriu. Esperava por isso. Seu garoto sempre tinha sido chegado em pequenas fugas.Â
Liana tinha se mudado para a casa de Eros pouco depois que a cabana de Alexandre tinha ficado pronta. Algumas pessoas se escandalizaram quando a relação dos dois se tornou pública. Alexandre ficou feliz por eles, não era como se o sentimento fosse um segredo assim tão bem guardado, o que tinha mudado era só a possibilidade que Liana havia ganhado de viver sua própria vida. Poucos Senhores de Al Dahin tinham tido esse privilégio. Somente aqueles que tinham firmado suas posições a esse respeito ou ela, cujo reinado não tinha sido tão longo a ponto de roubar toda a sua vida.Â
Era uma posição difÃcil de ocupar. Cada decisão pessoal se tornava uma luta. Cada passo tinha que ser conquistado. Todos os dias te lembravam de que você não importava, o que importava era o povo. Seria muito fácil se esquecer de quem é.Â
Alexandre aproveitou um pouco mais a companhia dos filhos, carregando o neto até chegarem à borda do povoado, quando o devolveu a mãe e assumiu sua postura de trabalho. Poderia ficar com eles novamente no dia seguinte, quando o portão fosse aberto e todos fossem iguais. Agora tinha que trabalhar, não era tão diferente de quando os deixava na escola ou com uma vizinha para poder ganhar a vida, só durava mais. A sensação era a mesma.Â
Só conseguiu se livrar do conselho no inÃcio da tarde. Até agora não entendia por que frisavam sempre que a decisão final sobre qualquer dos assuntos tratados sempre seriam dele se quando as tomava passavam tantas horas argumentando para fazê-lo mudar de ideia. Tinha sido assim sobre a escola, sobre o sistema de colaboração, sobre tudo e agora também.Â
Manteve sua posição, estava decidido. Rebateu cada argumento até que os mais velhos daquele lugar não pudessem mais manter sua oposição sem desafiá-lo. Vantagens de um lugar em que certas caracterÃsticas são obrigatórias em um lÃder, ninguém planejaria um golpe por não concordar com ele. Faria como quisesse no fim das contas.Â
Quando saiu da reunião interminável, demorou um pouco para ir ao lugar em que precisava. Rodou por aÃ, Eros sempre há alguma distância dele. Não tinha conseguido convencê-los ainda de que podia cuidar de si mesmo. Nesse ponto ninguém se importou de bater o pé. O Senhor teria um protetor e se reclamasse muito era capaz que lhe arranjassem um segundo. Â
O velho professor não era uma companhia ruim e sempre era bom ter alguém verdadeiro e capaz de dizer o que pensava por ainda te ver como o garoto que havia criado por perto. Que Eros o seguisse então!Â
Duas ruas antes, quando o protetor entendeu para onde iam, fez questão de acelerar o passo para parear com seu Senhor.Â
—Então, é hoje? Tem certeza disso?Â
—É um bom dia, como qualquer outro.Â
Respondeu dando de ombros e sem parar para a conversa, tinha certa pressa nisso. Se não fizesse logo tinha certeza de que dariam um jeito de impedi-lo. Era necessário.Â
—Elohi, com a festa chegando, o que garante que ele não vai fugir com outros estrangeiros...Â
—Nada. A palavra dele, se ele me der.Â
Já estavam a porta da construção de pedras grandes no extremo do povoado, construção criada pouco antes para abrigar guardas no pavimento térreo e escavada na rocha para a construção de um segundo pavimento no qual só se podia chegar com uma escada de cordas presa a uma parede.Â
A grade lá embaixo estava sempre trancada. O homem que ocupava o cômodo gradeado já tinha tentado escapar algumas vezes no inÃcio de sua estadia. Havia demorado um pouco para entender sua nova situação, depois se calou, mas ainda existia uma espécie de ranço por parte dos protetores jovens designados para cuidar dele.Â
Alexandre passava ali de vez em quando, geralmente quando seu dia acabava. Procurava saber se estava sendo tratado com alguma dignidade. Poucas vezes descia para vê-lo e nunca tinha falado com ele antes.Â
Dispensou os meninos que tinham a missão de manter o homem enjaulado exatamente onde estava, mandando que deixassem a construção. Podiam aproveitar os minutos de folga para assistirem à  preparação da festa.Â
Todos pensaram que aquilo parecia terrivelmente errado, nenhum questionou ou desobedeceu, só Eros permaneceu no andar térreo quando seu protegido jogou a escada de cordas, recomendando que não caÃsse. A descida era de cerca de três metros, mas uma queda dessa na posição certa poderia fazer com que quebrasse a coluna ou arrebentasse a cabeça. Ninguém precisava de um rei que caminhasse por ali como o fabricante de roupas seu parente.Â
A última parte não foi pronunciada, só pensada, claro o suficiente para que Alexandre ouvisse e finalizada por uma risada baixa de Eros quando teve certeza de que o outro tinha entendido.Â
O homem lá embaixo já tinha sido bastante forte, agora era magro. Perdera massa muscular pelo desuso. Não via a luz do sol a quase três anos e seus olhos tinham um brilho um pouco fantasmagórico por causa da iluminação que as lâmpadas a óleo permitiam. Não falava com ninguém desde a última tentativa de fuga e talvez não falasse agora.Â
Olhou em direção do visitante, como fazia sempre que Alexandre descia. Durante o perÃodo em que estivesse ali, o prisioneiro não tiraria os olhos dele e não responderia as perguntas. Alexandre teria que procurar se quisesse saber se estava sendo bem tratado dentro do que as condições permitiam.Â
Dessa vez, abriu a grade e entrou, fechando atrás de si. O prisioneiro sabia que mesmo não tendo usado uma chave a grade estava tão trancada como antes, então não se deu ao trabalho de tentar qualquer coisa. Â
—Oi, Igor.Â
Não houve resposta. Alexandre já esperava. Mexeu nos bolsos e tirou dali um maço de cigarros e um isqueiro. Samuel trouxe a seu pedido. Ele tinha parado, depois de três anos, quem realmente precisa daquilo? Mas imaginou que o prisioneiro apreciaria ou pelo menos se lembraria do dia em que as posições estavam invertidas.Â
Igor piscou algumas vezes como se saÃsse de um transe. Aceitou a oferta mais por familiaridade do que por necessidade. Tragou e observou a brasa queimando lentamente antes de devolver o isqueiro.Â
—A gente tem que resolver sua situação... Não tem motivo para continuar aqui, sabe?Â
Mais uma vez não ouve resposta. O homem continuava distraÃdo com a ponta incandescente do rolinho de papel em seus dedos. Alexandre continuou como se não percebesse a atitude do homem.Â
—Até onde consegui conversar, você só tem três opções. Claro que pode continuar aqui se quiser, mas nós não te queremos mais como prisioneiro então isso poderia ser um pouco estranho.Â
Alexandre não esperou uma resposta, mas ganhou a atenção com as últimas palavras.Â
—A primeira seria você ir embora, volta para o mundo comum e vive sua vida até que de um jeito de acabar com ela você mesmo, porque você sabe que o tempo não vai te ajudar muito nessa parte. E não seria o mundo que você se lembra. Â
Alexandre tinha demorado alguns meses, mas finalmente sabia a razão de toda a confusão dos quandos que o fez perder vinte anos com seus filhos. Tentava se convencer de que tinha sido melhor, os meninos podiam não ser fortes o bastante se a coisa tivesse acontecido quando ainda eram crianças. Não estava sendo muito bem-sucedido nessa tarefa.Â
Quando a primeira barreira se ergueu, Al Dahin se tornou um lugar separado no tempo e espaço. Ao abrir uma passagem fora da Festa, o porteiro tinha que ter em mente exatamente para quando e aonde queria ir. Nunca tinha sido um problema para Alexandre, Ele queria encontrar seus meninos duas semanas depois de os deixar, mas Liana não tinha o mesmo norte e não sabendo dessa regra, já que o filho sempre saia junto com os estrangeiros ao fim da Festa, acabou abrindo uma passagem para um tempo qualquer, pensando apenas no lugar. Tinha sido sorte não acabar na era paleolÃtica ou depois que a humanidade acabasse.Â
—Se decidir ir para casa... Eu não posso te mandar para o mesmo tempo que você já conhece. Eles têm medo de que vocês se organizem e o que aconteceu com Diana aqui se repita. Você vai estar em casa, mas vai ter que reconstruir sua vida.Â
O cigarro terminava. A bituca foi lançada ao chão num canto. Sem resposta, sem perguntas.Â
—A outra opção é você ficar por aqui. Decidir viver entre nós, aprender a viver como nós, escolher um modo de ganhar a vida. Enfim, ser um de nós. Mas você não pode sair. Vai ser o único direito que vamos te negar. Acho que você poderia tentar se tornar um protetor, eles levariam um tempo para te aceitar, acabaria acontecendo. Você seria bom nisso, acho que se adapta fácil...Â
Sem resposta novamente.Â
Alexandre se levantou do banco escavado na pedra, foi até a grade e parou pouco antes abrir.Â
—Pensa um pouco e manda me chamar quando tiver uma decisão. Até mais Igor.Â
—A terceira?Â
Alexandre se virou, olhando para o prisioneiro.Â
—Ah é. Achei que não Ãamos chegar nela. Sua terceira opção seria ajudar Bento a cuidar da sua gente. Ele quer continuar o trabalho da vida de Diana, acha justo. Só que ele não sabe como fazer, como encontrá-los e como pode ajudar. Â
—O filho da Diana?Â
—É, sim. Se quiser ajudá-lo, você vive aqui quando Bento estiver em casa e vai com ele quando viaja. Faz o que sempre fez para Diana. Cuida dele lá fora. Esse tipo de coisa.Â
—Como vai saber que eu não vou sumir na primeira oportunidade?Â
—Eu não vou. Na prática não vai ter nada que te obrigue a voltar, se quiser ir embora ninguém vai te caçar. Temos mais o que fazer por aqui... Confio que vai voltar por causa do Bento, a ideia foi dele e não minha e acho que poderia dar certo. Preso aqui você seria um desperdÃcio.Â
—Bruno vai receber a mesma proposta?Â
Bruno foi executado pouco depois do dia em que a barreira havia caÃdo. O julgamento veio antes do reconhecimento público da troca das chaves. Antes mesmo de apagarem a pira de seus mortos.Â
Alexandre deixou a cargo do conselho cuidar dessa decisão, nem mesmo aceitou proferir a sentença. Tinha rancor contra Bruno, até mesmo motivos para ter ódio e não queria que isso interferisse em seu destino.Â
Durante seu perÃodo de prisão, Bruno parecia contente. Sempre conversando com alguém que nem os guardas e nem seus juÃzes podiam ver. Diferente da imagem que tinha projetado nas horas em que Alexandre conviveu com ele. Essa devia ser sua forma verdadeira de agir, quando estava na companhia certa.Â
Liana chegou a procurar o filho, pedindo para que verificasse se o condenado era capaz de compreender o que aconteceria. Alexandre já havia pensado nisso, se o homem fosse doente não podia ser responsabilizado pelo que tinha feito. Mesmo se não fosse, Alexandre desconfiava que nem ele e nem Diana tinham ideia de quantos dos mais velhos e mais frágeis acabariam morrendo em sua aventura.Â
Foi a primeira vez que o caçador e o gigante de Diana realmente conversaram. Poucos minutos bastaram para entender que Bruno estava mais são talvez do que estivera em toda sua vida. A conversa constante e animada era com Diana, como já se podia imaginar, ele sabia que ela não responderia, fazia parte daquela chama verde e eterna agora. Ele só gostava de imaginar que ela podia ouvi-lo e que a encontraria em breve. Ele sabia da execução próxima, assim que a lua nova chegasse, até desejava que o dia chegasse logo. Estava tudo bem, já tinha aceitado. Sempre soube que terminaria com algo assim.Â
Alexandre não assistiu. Não queria e não precisava. Soube depois que o homem tinha agradecido ao tratamento que recebeu enquanto esperava seu dia, ninguém tinha sido injusto ou cruel com ele, não esperava por isso.Â
O silêncio de Alexandre já era a resposta suficiente para Igor.Â
—Por que eu não?Â
—Você não machucou ninguém. Consegui usar isso a seu favor, você não fez nada contra mim ou a minha famÃlia diretamente, não podia deixar que tivesse a mesma sentença que Bruno.Â
Igor sorriu pela primeira vez em anos.Â
—Sempre disse para o grandão controlar aquele gênio. Ele não era má pessoa, depois que você conhecia bem.Â
—Ninguém é. Eu preciso ir, quando decidir pede para um dos guardas me chamar. De qualquer forma você vai ser um homem livre em pouco tempo.Â
A grade foi aberta e assim permaneceu depois que Alexandre cruzou seu limite, já estava com um pé na escada quando Igor se levantou, indo até perto da grade, mas sem ultrapassá-la.Â
—Vai confiar em mim para cuidar do seu filho?Â
—Ele é adulto, sabe se cuidar sozinho. E ele quer sua ajuda. Acho que isso é suficiente.Â
—Elohi, eu não vou te decepcionar, nem ao Bento. Te mostro que mereço essa confiança.Â
Alexandre sorriu e subiu pela escada sem dizer nada. Não se deu ao trabalho de recolhê-la, Igor não fugiria. Pouco antes dos portões se abrirem mandaria buscá-lo. Seria sua primeira festa como um do povo, era bom que pudesse aproveitar como todo mundo.Â
Os dias de festa foram realmente felizes para Alexandre. Ter os meninos consigo ali fazia seu lugar no mundo parecer uma casa novamente. Despedir-se deles era difÃcil, mas tinha que ser.Â
Pouco depois que os estrangeiros partiram, Bento começou a se preparar para sua viagem. Um Igor magro e pálido merecia alguns dias para recuperar a saúde e aprender um pouco sobre o lugar que agora seria seu lar fixo, mesmo com as excursões ao mundo comum. Bento tinha alguma pressa e achava que Igor teria tempo quando voltassem, por isso tratou de cuidar de tudo o que era preciso. No dia da partida. Seu pai colocou a medalha de São Vitor que tinha servido de passe aos mais velhos no pescoço do filho mais novo. Â
O objeto era mais que um sinal de proteção, serviria de chave mais uma vez, quando fosse hora de Bento retornar, bastando que se aproximasse de qualquer ponto da barreira. Igor ganhou um parecido, feito com uma pedra branca que recebeu de Liana. Se algo acontecesse a Bento ele deveria voltar e dar notÃcias.Â
Ficou combinado que Bentinho nunca passaria mais de um ano fora. Seu trabalho era tão necessário entre os que estavam fora quanto os que estavam dentro e não era bom para ninguém que se ausentasse tanto.Â
Vê-lo partir deve ter doÃdo mais que os outros. Os mais velhos tinham sua própria vida fora, Bento tinha se adaptado tão bem ali... esperava que voltasse logo, era um pouco vazio sem nenhum deles.Â
Â
Bento sempre voltaria. Os mais velhos voltavam sempre que podiam no inÃcio. Depois a vida foi acontecendo, nem todo ano dava. Uma criança nova chegava, outra ficava gripada, um compromisso de trabalho, a viagem ser muito custosa, a idade chegar e não ser mais tão fácil fazer o caminho de volta. Tudo tornava difÃcil. Até que não vieram mais, os netos sumiram na mesma época e Alexandre concluiu que seus filhos estavam mortos e os netos talvez não se importassem a ponto de fazer a viagem. Â
Alexandre acabou entendendo que já devia esperar por isso, no momento que tinha descoberto que seria pai já devia ter entendido. O tempo de seus filhos, tirando Bento, seria diferente do seu e teria de assisti-los partir, talvez um dia os visse novamente. Era bom pensar assim. Precisava disso para continuar já que não tinha outra maneira.Â
Â
O reinado do Senhor Elohi foi um dos mais longos e prósperos que Al Dahin já tivera até então.Â
Seu nome entrou para a história e se tornou uma lenda ao lado da Primeira Senhora que lhes deu a barreira. Elohi ficou conhecido como o Reconstrutor e a Ponte entre mundos.Â
Até o fim dos seus dias, que foram muitos, pensava em si mesmo como Alexandre, nunca se acostumando totalmente com seu primeiro nome, mesmo sendo o que tinha usado por mais tempo.Â
Quando a famÃlia se tornou pequena demais e só restava Bento a sua descendência, encontrou uma boa companheira com quem viveu até que ela se fosse, alguns anos antes da vez dele se juntar as almas do fogo esverdeado.Â
Ela lhe deu três filhos, um deles não sobreviveu à primeira noite de sua vida, os gêmeos que vieram um ano depois eram fortes e foram cercados de cuidados desde o nascimento, vivendo com seus pais e não com um protetor designado como seria o costume.Â
A menina, Maison, se parecia com o pai, com a pele cor de caramelo, olhos negros e cabelos cacheados, o garoto, Malike, lembrava mais sua mãe, pele clara e cabelos negros com olhos dourados. Ambos herdaram do pai a capacidade de abrir portas e da mãe a habilidade em lidar com plantas medicinais. Elohi fez questão de se encarregar deles nos primeiros anos designando Belter, a quem ainda chamava de Bento, como tutor das crianças quando começaram a demandar mais tempo do que o pai poderia dispor.Â
Quando ficou claro que assim como o pai nenhuma porta ou cadeado poderia impedir as travessuras das crianças, exceto as que o próprio pai trancasse, foi evidente para o conselho que a educação dos meninos deveria ser voltada ao fim do destino que deveriam cumprir. Elohi usou de seu direito a última palavra. Não criaria os filhos apenas com um propósito maniqueÃsta de assumirem seu lugar quando chegasse a hora. Â
Chamou as crianças, explicou porque a questão de abrir portas era importante, disse que ninguém seria obrigado a nada, que seria bom que aprendessem tudo o que pudessem sobre sua gente e tantas outras que existiam no mundo porque saber nunca seria demais. Se um dia quisessem assumir o lugar do pai, estariam prontos, se escolhessem outros caminhos, o universo daria um jeito de fazer surgir outro herdeiro.Â
As crianças cresceram lindas e felizes, para Elohi era suficiente.Â
Quando os cachos de cabelos grossos começaram a mostrar os primeiros fios prateados, Malike já tinha decidido que seria o próximo Senhor após o pai. Maison seria sua protetora pois não havia ninguém melhor com uma espada em quem confiasse mais. Ela cumpriria o papel que desejava desde que Eros lhe dissera que mais cedo ou mais tarde teria que se aposentar, estava ficando velho e lento até para proteger o Senhor Elohi, não chegaria com forças suficientes ao reinado de qualquer dos gêmeos.Â
Muitos anos depois, quando uma doença misteriosa que nenhum curandeiro poderia resolver tornou a respiração de Elohi difÃcil, ele próprio decidiu que era a hora de passar as chaves para o filho mais jovem de todos que tivera. Queria fazer isso enquanto ainda podia ficar de pé e dar a seu povo uma cerimônia pública. Queria que o vissem com alguma dignidade em seu último dia como Senhor.Â
Na praça circular, em meio a todos que conheciam, Malike recebeu as chaves de seu pai em meio aos espirais de luz dourada e azul. Não havia ninguém que duvidada que o garoto era a escolha certa e que continuaria o excelente trabalho que o pai tinha feito até então.Â
Depois que o poder foi retirado dele em favor do filho, o declÃnio foi mais rápido do que imaginavam, como se a autoridade com que estava investido tivesse o poder de deter ou atrasar a doença e agora que já não a possuÃa, o mal decidira correr a galope na direção que desde o inÃcio apontava.Â
Era difÃcil falar ou comer sem parar para respirar, as costas doÃam como se recebesse mordidas. A pele se tornou amarelada e manchada, emagrecendo cada dia um pouquinho e sem nenhuma vontade de comer o que quer que fosse.Â
Quando ficou difÃcil caminhar sem amparo se restringiu ao quarto, praticamente vivendo das visitas que os três filhos presentes faziam todos os dias.Â
 A morte bateu a sua porta, num sonho agitado e bonito a seu modo, soube que não teria mais uma noite desse lado da vida. Mandou chamar os três filhos, não queria partir sozinho. Não podendo mais falar, fez com que soubessem que não deveriam chorar. Agradecia e se sentia honrado de ter ajudado a colocá-los no mundo, como tinha dito tanto tempo antes, no dia em que a barreira caiu e ninguém sabia o que aconteceria depois.Â
Ele não parecia estar com medo. Cada um dos filhos se aproximou e beijou suas mãos, segurando as lágrimas para atender ao pedido do pai.Â
Depois esperaram. O pai havia adormecido com ajuda de um chá preparado por Maison, ela tinha aprendido com a mãe, faria a dor ir embora e o momento ser mais fácil para Elohi.Â
Assistiram o peito subir e descer. Os gêmeos sem se moverem, Bento inquieto, caminhando de um lado para o outro e procurando algum objeto para tirar do lugar só para voltar a rearranjá-lo novamente.Â
Estava de costas quando a brisa veio. Não precisava olhar, sabia que a hora tinha chegado e não queria assistir. Dos três que estavam na sala, só ele notou as duas silhuetas surgirem entre eles, os menores não saberiam de todo modo, nunca tinham conhecido os donos daquelas formas. Quando a terceira silhueta apareceu, parecendo com o que havia sido um dia, abraçando as que já estavam ali, soube o que faziam e deixou que as lagrimas corressem por seu rosto, o pai entenderia. Estava feliz por ele e a dor finalmente tinha acabado.Â
Muitas outras coisas aconteceram em Al Dahin e o reinado de Malike estava praticamente em seu inÃcio. A história de Elohi ainda seria contada muitas vezes até aqui. Â
Â