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Os meninos chegaram quase juntos a porta da casinha de luz azul. O dia já findava, ambos tinham vivido seus turnos de trabalho normalmente sem contar a ninguém sobre o ressurgimento do pai desaparecido a tanto tempo. Como se tivessem combinado guardar segredo. A maioria das pessoas com quem conviviam não sabia muito sobre eles. Â
Samuel era mais dado à s amizades, sempre estava rodeado de pessoas. Era parecido com a mãe nesse quesito, mais sociável, apesar da tendência a grosseria quando as pessoas não falavam claramente. Não tinha paciência para enrolação, traço que acabou absorvendo do pai. Ainda assim evitava falar muito de si e de sua criação, como se pressentisse que as pessoas não entenderiam bem certas particularidades. Embora só pensasse nisso agora.Â
Diego era mais introspectivo, tinha poucos bons amigos e não se abria com facilidade com ninguém. Pensou em contar a esposa sobre a situação curiosa que envolvia sua famÃlia, mas Clara era mais prática, iria querer conhecer o sogro tão famoso e que até onde ela sabia deveria estar morto. Não achava que era um bom momento para esse tipo de encontro familiar e ainda assim era impossÃvel mentir para ela.Â
Escolheu o meio termo, tinha marcado com os irmãos de se encontrarem na casa vazia para resolver algumas coisas. Não era mentira, não era toda a verdade, ela não ficaria tão brava quando ele pudesse contar o que realmente tinha ido fazer ali e o livrava de discussões agora. Diego não gostava muito de confronto, tirava suas próprias conclusões sem precisar defender seus pontos. Â
Diego chegou primeiro, com uma diferença de poucos minutos, verificou se as portas do carro estavam trancadas como fizera na manhã do dia anterior. Clara dizia que aquilo era um princÃpio de TOC e ela devia estar certa. O conforto que repetir gestos tão simples gerava ... ela nunca entenderia. Prometeu a si mesmo que procuraria um médico logo mais, hoje não. Â
O tempo que gastou com seu ritual deu tempo ao irmão para alcançá-lo, os dois acabaram se encontrando na rampa do jardim e ficaram parados na varanda assistindo o céu escurecer sem saber se deviam bater ou entrar como se a casa fosse deles. O pai deve ter pressentido que estavam por perto, pois abriu e deixou que a luz da casa transbordasse para onde estavam. Â
Alexandre saiu e se juntou aos filhos antes de convidá-los a entrar. Apoiou o corpo na balaustrada da varanda. Não esperava que tivesse que convidá-los, não conseguia entender por que não se sentiam à  vontade naquele lugar que era tão deles quanto de si próprio.Â
—Tudo bem com vocês?Â
Diego chegou a sorrir. Quis falar, mas engoliu as palavras. Samuel se limitou a concordar com a cabeça.Â
—Bentinho está aÃ, pai?Â
Alexandre desviou o olhar e balançou a cabeça. Quando marcou o encontro não tinha se lembrado de que os dias que se seguiriam seriam um inferno. Não achava digno que os mais velhos vissem o caçula no estado em que estava. Durante a tarde, tinha se limitado a vomitar, suar, gemer e dormir, agora chorava por causa das dores. Demoraria um pouco até que se sentisse um ser humano inteiro ainda e queria preservar um pouco do que restava de seu orgulho. Tratou de isolar o quarto do resto da casa de modo que os filhos não escutassem o que se passasse lá dentro e saiu um pouco para respirar o ar da noite.Â
Tinha passado seu primeiro dia de volta da terra dos mortos enfurnado naquela casa, sentir um pouco de vento no rosto e respirar um ar que não estivesse tão viciado não lhe faria mal algum, quase pediu que fossem a um parque ou qualquer lugar fora de casa, do mesmo jeito que a ideia veio, se foi. Não podia deixar seu lar nesse momento.Â
Assim que se sentiu um pouco vivo, dirigiu-se para a porta e abriu para que os meninos entrassem. Os dois obedeceram como crianças bem-criadas, sem dizer uma palavra sequer.Â
A caixa foi tirada da estante novamente. Alexandre abriu e espalhou seu conteúdo sem o cuidado que teve pela manhã. Estava cansado e um pouco irritado, sem disposição para explicar muita coisa.Â
—Parte de quem eu sou estava o tempo todo nessa caixa. Preciso de documentos novos, tem como um de vocês dois me ajudar a resolver isso?Â
Não tinha certeza se os filhos o ouviam. Samuel analisava os cartões de identidade quase fascinado, prestando atenção a suas datas de emissão e não sabendo ainda se acreditava no que via. Diego tinha os olhos fixos no que Lydia chamava de coisa, a arma om inscrições estranhas no metal. Estendeu a mão e não teve coragem de tocá-la.Â
—Você se lembra disso, não é?Â
Ele concordou fracamente. Havia sido um ano antes do pai sumir.Â
Talvez pudesse dizer que Samanta era o ponto de equilÃbrio do pai, sem ela as coisas ficavam um pouco doidas e o pai ficava estranho, não falava coisa com coisa.Â
Quem poderia culpá-lo? Se perdesse a mulher que amava da maneira que o pai tinha perdido, talvez surtasse também.Â
Samanta entrou em sua vida quando tinha sete anos, ela e o pai trabalhavam na mesma escola, era quase inevitável que ele se apaixonasse.Â
Depois que sua mãe tinha ido embora, o pai tinha se envolvido numa sequência de relacionamentos desastrosos. Olhando como um homem de trinta e oito anos para a época antes de Samanta, achava que a bagunça que era a vida sentimental do pai se devia ao fato de que não tolerava ficar sozinho. Como se tivesse passado anos e anos só e agora não conseguisse mais pensar em si mesmo sem ter alguém a seu lado. Â
O pai já tinha lhe dito uma vez que não podia cuidar dele sozinho, talvez quando se metia com garotas erradas estivesse procurando alguém para dividir o fardo de ter um filho.Â
Samanta não era uma garota errada. Desde o princÃpio se preocupou de verdade com o pai e quando veio conhecer Diego, ele gostou dela na mesma hora. Pouco depois ela se mudou para a casa deles.Â
Quando ela morreu, o pai quase surtou.Â
Alguém invade a casa, uma jovem esposa volta do trabalho e surpreende o desgraçado no meio de um assalto. Um tiro, uma casa revirada e deixada à s pressas. Um pai que volta com três crianças que acabou de apanhar no colégio. O mais velho tem doze, o mais novo seis. Â
O pai encontra a porta aberta, manda o mais velho segurar os pequenos e ficar ali fora. O pai grita palavras que o mais velho não entende, não é só desespero em sua voz, tem muito de raiva também.Â
Depois veio a polÃcia. Os três meninos ficam na casa da tia que não é tia de verdade, mas eles não têm outros parentes. A polÃcia faz um monte de perguntas para o pai depois o libera, mas ele não se junta aos meninos na casa da tia e nem vai buscá-los. Â
Os adultos falam de coisas em código quando as crianças pequenas estão por perto. Tentam tomar ainda mais cuidado quando adolescentes estão presentes. Sua natureza quieta fez com que muitas vezes os tios não se dessem conta de que ele estava ali e falassem do pai de maneira velada que utilizavam. Ele compreendia tudo.Â
Pelo que diziam, o pai não deixou a porta de casa até que liberassem o lugar. Tinha limpado tudo assim que deixaram. Devia ter ido buscá-los e não apareceu. Tio André o encontrou sentado sozinho e no escuro no mesmo lugar que a esposa tinha morrido. Pediu que cuidasse das crianças pois ele não poderia, não sozinho, não sem Sam.Â
O tio tinha entendido o que o pai planejava, disse que se o pai não se levantasse e fosse buscar os meninos, assim que ele deixasse de respirar os largaria na rua. E que se lembrasse que nem todo orfanato era como aquele onde ambos haviam crescido, em alguns aconteciam coisas bem feias com crianças. Ele e Lydia ajudariam no que o pai precisasse, sempre estariam com ele como sempre tinha sido, mas se o pai desistisse de si mesmo eles desistiriam porque não criariam em sua casa os filhos de um covarde egoÃsta.Â
Isso deve ter acordado o pai para algo que não se dera conta até ali, na mesma noite foi buscar seus rapazes. Sentou-se com eles e conversou durante horas. Todos estavam assustados. Naquela primeira noite jogaram o colchão do pai no chão da sala e dormiram todos juntos.Â
Mas algo mudou no pai. Tornou-se mais irritado, mais impaciente e mais calado, tinha vezes que chegava do trabalho e ficava na cozinha. Preparava café, chamava Diego e ficavam conversando até ser tarde demais para o garoto estar acordado. Â
Em uma dessas vezes o pai pediu perdão porque Samanta tinha morrido por sua culpa. Â
Ele não disse Samanta, ele disse sua mãe. Desde que Sam entrou na vida deles ela tinha chamado o filho do parceiro num canto da casa e perguntado se ele deixava que ela fosse sua mãe porque gostava dele como filho. Â
Diego a chamava de Mam, mistura de mãe e Sam porque não gostava da palavra mãe e assim tinham um jeito só deles de se tratarem. Â
Quando ouviu o que o pai dizia, perguntou o porquê.Â
O pai disse que poderia e deveria ter impedido, era seu dever proteger a casa e tinha tentado reverter, mas era tarde. Se tivesse protegido a famÃlia como devia nada disso teria acontecido. Â
Já naquela idade sabia que nada disso tinha sentido, ninguém poderia fazer nada. Essas merdas aconteciam o tempo todo. Uma droga que fosse com eles, só não era culpa de ninguém.Â
Depois disso o pai ficou superprotetor. Quando saia com eles para o colégio fazia questão de trancar ele mesmo a porta, deu ordens para que os meninos nunca saÃssem da escola sem que ele estivesse no portão, se saÃssem mais cedo deveriam ligar para tia Lydia e se ela pudesse ir pegá-los, ficar na casa dela até que pudesse ir buscá-los.Â
Por um bom tempo ninguém ia a lugar nenhum se o pai não estivesse presente, nem a casa de algum amigo fazer tarefas escolares, nem no vizinho jogar videogame. Chegava a ficar agressivo se tentassem argumentar. Geralmente as discussões eram encerradas com o pai dando a última palavra e escapando para a porta dos fundos para fumar no quintal.Â
Antes de dormir sempre ouvia o pai trancando as portas e verificando se estavam realmente trancadas. Talvez sua mania de verificar as portas tantas vezes tivesse nascido ali.Â
Então o pai chamou Diego para conversar novamente, estava estranho, transtornado, parecia possuÃdo por algo que não era ele. Tinha sido quase quatro anos depois da morte de Sam, quando ele achava que o pai tinha melhorado e começava a soltá-los, até já deixava os dois menores passarem a noite na casa dos avós por parte de mãe. Â
Estavam sozinhos em casa. O pai tirou a caixa de pedra da estante como tinha feito essa noite e mostrou o seu conteúdo. Foi nessa noite que a luz da varanda foi trocada pela lâmpada azul.Â
O pai colocou a arma sobre a mesa e girou de modo que o cano ficasse apontado para si mesmo e o cabo para o filho. Mandou que pegasse nas mãos, sem virar ou mudar de posição. Mandou que observasse as inscrições ilegÃveis e disse que aquilo garantia que ela servisse para proteger a Diego e seus irmão, mas só ele deveria usar e só se a luz da varanda ficasse amarela, isso ia significar que o pai nunca ia voltar, porque ele achava que não tinha sido só um ladrão que tinha matado Samanta, achava que quem tinha feito aquilo queria uma coisa que não encontrou na casa porque o pai escondia suas coisas perigosas muito bem e que em algum momento viriam atrás dele e se isso acontecesse, o filho mais velho deveria cuidar para que os irmão não se ferissem. Na caixa de pedra encontrariam tudo o que precisassem e na gaveta da escrivaninha encontrariam um caderno que explicaria alguma coisa.Â
Depois recolheu os itens da caixa, tocou o rosto do filho e a conversa se apagou. O que se lembrava era do pai chamando pois já era hora de dormir e Diego tinha ficado ali na mesa da cozinha vendo o pai trabalhar e acabou pegando no sono. Ver a arma sobre a mesma mesa fez a lembrança voltar por inteiro e agora se perguntava quanto mais tinha esquecido de si mesmo até então.Â
—Da minha parte, é só isso. Ficar com esse peso nas costas te deixaria louco, então você se lembraria no momento certo.Â
—Foi por isso que eu nunca concordei em declarar o senhor morto! Eu sabia que se a luz ainda estava azul era por que o senhor ia voltar...Â
—Eu coloquei uma proteção na casa, nada de ruim consegue atingir vocês aqui dentro. Daà eu me perdi de vocês e vocês ficaram desprotegidos durante a vida toda. Tanto trabalho por nada!Â
—Mas a gente ficou bem...Â
—Ficaram? Teu irmão vai ficar bem, mas não estava. Bom, como eu já perguntei antes, qual dos dois vai me ajudar a refazer minha documentação? Eu preciso disso para logo então...Â
Diego se ofereceu. Poderia usar o dia seguinte, só precisava avisar a esposa que a essa altura já devia estar achando que ele tinha outra.Â
—Eu falo com ela quando voltarmos, tenho certeza de que vou gostar de conhecê-la, assim não te prejudico. Não é minha intenção tornar a vida de vocês mais difÃcil.Â
Diego ainda se surpreendia quando algo que pensava era respondido sem que precisasse verbalizar, não sabia se gostava do conceito.Â
Alexandre se virou para Samuel que até então permanecera quieto, passando e repassando as identidades e cartões bancários.Â
—Infelizmente não posso te deixar em paz ainda. Se eu vou estar fora, alguém tem que ficar aqui cuidando do seu irmão. Acho que amanhã vai ser um pouco melhor, ainda assim ele não pode ficar sozinho.Â
—Não sei se dá certo eu e o Bento aqui não...Â
—Eu não sei o que houve entre vocês dois, mas você tem que superar isso ao menos pelas horas que eu vou ficar fora amanhã, faça por mim se não pode fazer por ele, estou pedindo... não te peço nada já tem vinte anos.Â
O filho segurou para permanecer sério, faria de qualquer maneira, não conseguia simplesmente dar as costas a um pedido do velho.Â
Jantaram juntos. Diego, Samuel e Alexandre. Aos poucos a impressão estranha que se ergueu entre eles estava se desfazendo.Â
Alexandre queria sua famÃlia de volta da maneira que era na manhã em que os deixou na casa da amiga e partiu para a rodoviária. Sabia que nunca recuperaria e isso era o mais frustrante. Â
Queria uma explicação e talvez fosse cedo, mas já tinha perdido a vontade de esperar que se acalmasse. Já não queria esfriar a cabeça antes de conversar com sua Senhora de modo a não arriscar desrespeitá-la, talvez até quisesse muito fazer com que sentisse como ele se sentia.Â
Os meninos foram embora para suas próprias vidas e o deixaram sozinho na sala da casa que agora parecia estranhamente grande. Â
Ficou ali, sem acender as luzes exceto a da varanda que permanecia acessa a todo tempo, quase imperceptÃvel ao longo do dia e forte demais a noite. Â
Escorregou o corpo para o chão, um pouco desconfortável com tudo que se passou ao longo dos últimos dois dias. Pensando no quanto era estranho ter sua vida sob controle em um dia e no dia seguinte já estar tudo de pernas para o ar. Â
A ferida ao menos não sangrou neste dia, mas latejava como se tivesse o próprio coração. o peito batia meio fora do compasso, oprimido.Â
A cabeça ficava repassando os fatos dos últimos dias, não conseguia mais ignorar a sensação de perda que vinha se apossando dele. De um dia para o outro tinha perdido tudo o que amava e para o que vivia. Percebeu que até então não tinha tido tempo de reagir como devia.Â
Tinha raiva e vontade de destruir coisas importantes para os outros. Dizer tudo o que guardava desde sempre para não ofender, pela imposição que ele mesmo havia feito, pela tradição e modos que aprendeu e dos quais não conseguia se livrar mesmo depois de tanto tempo.Â
Algumas lágrimas se atreveram a descer pelo rosto e ele não tentou detê-las. Já que queriam, que corressem livremente!Â
Sentiu que apertava os dentes quase a ponto de trincarem, que as mãos e braços estavam tensos, sentia as unhas se enterrando nas palmas das mãos e mesmo no escuro sabia que os nós dos dedos ficavam brancos.Â
Ficou assim, sentado no tapete em meio a escuridão cortada só pela luz azul fantasmagórica que entrava pela fresta da cortina, atingindo uma linha de seu rosto, deixando que o peito se sacudisse e a gola da camisa enxarcasse. Com os joelhos dobrados encostados no tórax dificultando a respiração, deixando mais desconfortável e fazendo com que a ferida parecesse se rasgar.Â
 Queria sentir esse desconforto porque tudo era desconfortável no quadro que encontrou ao voltar para casa. Como se tudo o que antes fosse belo e brilhante estivesse um pouco sujo e corrompido, uma piada de mal gosto. Â
Nem se lembrava da última vez que tinha chorado. Não chorara ao ser abandonado com uma criança de colo sob sua responsabilidade, nem quando a mulher da sua vida tinha sido arrancada dele, até onde sabia nunca depois de adulto. Mas chorava agora, sozinho e no escuro porque não poderia se permitir a chorar de outro modo. Chorava como uma criança desamparada sem emitir nenhum som. Talvez só agora estivesse entendendo o quanto tinha perdido e que não poderia ser recuperado porque tempo é como um rio, nunca corre para trás.Â
Não saberia dizer quanto tempo ficou ali. Mesmo quando as lágrimas secaram por completo e os músculos começaram a queimar permaneceu imóvel. Ouviu a maçaneta de seu quarto se movendo algumas vezes e se lembrou que havia trancado a porta para resguardar o mais novo.Â
Levantou-se como pôde e foi andando estranho por causa da dormência libertar o menino.Â