Era hora de se despedirem, só precisava de algumas horas na velha biblioteca para garantir que não deixaria que seus meninos perdessem um único dia de suas vidas.Â
Era a primeira vez que via algum desgaste no seu lugar favorito na terra natal. A queda da barreira não passava desapercebida. Tirando os mortos que ainda estavam queimando no extremo do povoado, também havia uma certa degradação em tudo e traumas em quase todos. Reconstruir o povoado seria uma tarefa dura. Restaurar a inocência do seu povo seria quase impossÃvel, ao menos para a geração que presenciou a dissipação da bruma. Em termos de incertezas, haviam voltado para o estágio que deviam ter ocupado quando a Primeira os deixou, passando as chaves a seu herdeiro.Â
Desconfiava que teriam um aumento nas tentativas dos desesperados. Muitos lugares em que a barreira chegou a desaparecer completamente permitiu que as pessoas do outro lado vissem o povoado de casas de pedras brancas e as pessoas da névoa. Alguns achariam que era sonho ou impressão, outros tentariam encontrá-los. Devia haver um modo de garantir a segurança dessas pessoas.Â
Seus filhos esperavam junto com Liana. Tinham ganhado presentes de pessoas do povo. Cada um carregava uma bolsa feita pelo tio avô cheia dessas lembranças que tinham recebido. As pessoas não se importavam muito se algum deles podia ou não abrir portas, só se importavam com o fato de que eram os filhos do Senhor que tinha retornado quando eles precisavam.Â
Alexandre os encontrou bastante ansiosos. Alguns dias haviam passado desde a chegada deles e Diego principalmente tinha um pouco de pressa. Em casa, a esposa e o filho que estava por vir o esperavam. Mesmo que o lugar do pai fosse agradável e que o tratassem bem, não era seu lugar. Imaginava que era assim que o pai se sentia nas viagens anuais que fazia.Â
O Senhor os abraçou, segurando para não deixar que vissem o quanto aquele momento era doloroso. Tinha medo de não os ver mais, mas não deixaria que soubessem. Cada um tinha sua própria vida e não se permitiria manipulá-los por seus sentimentos.Â
Quando perguntou se estavam prontos, recebeu uma resposta positiva, abraços já tinham sido dados, palavras já tinham sido trocadas. Não tinham mais o que fazer ali.Â
Alexandre abriu a passagem para que os três pudessem sair. Samuel parou antes de entrar no túnel. Â
Alexandre perdeu o sorriso que até então tinha sustentado, achava que eles já soubessem.Â
—Eu não posso. É parte da coisa com a função, eu não posso sair daqui. Â
—Então a gente nunca mais vai ver o senhor?Â
—Depende mais de vocês do que de mim agora. Sempre vão ser bem-vindos nas festas, pode trazer Clara e o neném se quiser. Quando quiserem, eu abro uma passagem para vocês... Tem o espelho em casa, se me chamarem eu sempre vou correr para a frente daquela coisa para falar com vocês... A gente dá um jeito...Â
Diego foi o primeiro a passar, seguido de Samuel. Bento foi logo depois.Â
Adiantou um passo, tocou nas costas do irmão mais próximo que olhou para trás.Â
—Acho que eu quero ficar.Â
—Lá fora eu só fiz merda. Nunca gostei muito da minha vida ali. Também acho que ele vai precisar de ajuda aqui, viu a zona que está esse lugar? Samu... eu acho que eu sou mais daqui do que de lá...Â
Samuel entendia. Depois de tanto tempo assistindo à  destruição do irmão, queria mais é vê-lo bem, tornando-se quem sempre deveria ter sido. Samuel o abraçou e fez com que girasse o corpo o colocando em direção a entrada e não a saÃda.Â
—Vai lá, eu falo para o Diego. Nos vemos assim que der, tá bom?Â
Bento riu. Correu de volta, quando saiu se jogou para Alexandre. Dessa vez ele não conseguiu conter as lágrimas. Estava se tornando um pouquinho emotivo.Â
No alto do morro, Diego e Samu desceram do ônibus no inÃcio da manhã, antes que o dia clareasse, naquele momento em que não é dia e nem noite.Â
Lá embaixo os primeiros trabalhadores iam apressados para o ponto de ônibus começar a vida. Pararam um pouco, observando as luzes coloridas nas casas. Sentindo o frio da madrugada um pouco úmida.Â
No pé do morro, nenhuma das casas se distinguia pela cor da luz em sua varanda constantemente acesa. Nenhum dos dois poderia dizer qual era a casa em que tinham crescido. O fim de uma era.Â
Desceram o morro sem conversar. Cada um tinha sua própria porção de coisas para processar sozinho.Â
Clara os recebeu sentada na varanda. Â
Abraçou o marido com o rosto um pouco inchado, Tinha chorado pouco antes.Â
Havia voltado a dois dias, imaginando que o marido e a famÃlia chegariam ali primeiro.Â
Tinha visto quando a luz mudou de cor. Imaginou que as piores coisas teriam acontecido, estava esperando amanhecer para ir embora e tentar decidir o que faria. Â
Diego contou tudo o que podia. Pouco depois do sol acordar, os três decidiram que já era hora de ir embora. Não havia mais nada para eles naquela casa. Voltariam depois para pegar o que era importante. Em breve venderiam a propriedade, dividiriam os livros, fechariam as contas. O espelho, já tinham decidido, ficaria com Diego.Â
Não havia mais por que manter todas essas coisas no lugar. O dono daquela casa nunca mais voltaria.Â