Dani desembarcou quase ao mesmo tempo em que Alexandre chegou para buscá-la. Ela quase se lançou aos ombros do padrinho quando o viu ali, enterrando seu rosto na altura do peito dele. Já não chorava, mas os olhos inchados mostravam que havia chorado o bastante durante as últimas quase vinte duas horas de voo.Â
Conversaram um pouco, amenidades do tipo que se fala quando se quer evitar algum assunto maior. O voo foi bom? Sidney era tão bonita quanto parecia? Muitas aranhas mutantes apareciam em casa? Dani não fazia a pergunta que estava na sua mente pois sabia que o padrinho seria franco, o conhecia bem. Não sabia se queria a resposta franca, queria uma resposta que fizesse a dor doer menos.Â
Quando chegaram a capela do cemitério escolhido, Dani foi cercada por Diego e Samuel. Alexandre se isolou do outro lado, no fundo da capela. Quase oculto no canto mais escuro. Â
Dezenas de ex-alunos, bons vizinhos, gente da igreja e velhos amigos tomaram a pequena capela para a última despedida de Lydia.Â
O isolamento tinha outros motivos além da tristeza natural pela perda. Muitas daquelas pessoas o conheciam, sabiam do desaparecimento e não esperavam vê-lo. Modificar o que tantas pessoas viam ao mesmo tempo exigia alguma concentração. Discretamente colocou os fones nos ouvidos e ligou qualquer música no celular emprestado de Diego. Não parecia correto, mas Lydia com certeza entenderia.Â
Só se colocou em evidência quando precisou levar o caixão da capela ao local de descanso. Ninguém reconheceu o mais jovem que segurava uma das alças, julgaram ser um sobrinho. Se tentassem conversar e comentassem sobre o rapaz estranho, cada uma se lembraria dele de uma maneira diferente. Não estava muito preocupado com detalhes.Â
O momento em que o caixão baixou foi demais para Alexandre. Significava que realmente havia acabado, nunca mais iria vê-la. Sem mais nenhum amigo a partir dali.Â
 Ele se afastou e ficou a certa distância, fora da multidão, encostado sob uma árvore. Deixou que os outros fizessem suas últimas homenagens e falassem palavras bonitas. Só observou sem se fixar em nada em especial.Â
Por algum motivo que desconhecia deixou que seus olhos se fixassem no rosto de uma mulher próxima de outro enterro que acontecia. Por um momento a moça também o olhou para em seguida desviar o olhar. Nada de mais, não fosse a sensação de que a cena era familiar embora fosse inédita. Tinha a impressão de a conhecer de algum lugar, não podia se lembrar de onde. Deixou a sensação de lado e continuou a não pensar em nada. Não pensou mais na moça pelo resto do dia.Â
Foram os últimos a deixar o lugar. Insistiram para que Dani ficasse com eles. Ela queria ir à  casa da infância. Não tinha muito tempo e queria organizar as coisas da mãe logo. Escolher lembranças, doar o resto. Fazer com que o lar se tornasse apenas um imóvel vazio. Â
Os rapazes e Clara se ofereceram para ajudar. Não era algo que Alexandre quisesse fazer, não estava em seus melhores dias e não poderia deixar de sentir o que as coisas guardavam. Sentia que se os acompanhassem em algum momento poderia chorar e se recusava a fazer isso diante dos filhos.Â
Afastou-se um pouco da famÃlia e sem dizer nada a ninguém deixou que seus pés e suas pernas começassem a trabalhar.Â
Caminhar tinha o poder terapêutico que qualquer outra coisa jamais teria. Você manda que seus pés se coloquem em movimento e eles seguem, mas como são cegos só sabem seguir sob as instruções precisas do cérebro e dos olhos. Quando estes estão ocupados com suas próprias coisas, os pés tendem a seguir por lugares que já pisaram. Era seu caso naquele momento.Â
A caminhada fez com que as lembranças e magoas ficassem relegadas a um segundo plano, os olhos se admiravam do quanto uma cidade pode mudar em um espaço como vinte anos. Já não podia garantir que sabia andar por aàsem orientação. Quando havia apanhado a mochila e seguido em direção a rodoviária, tinha até um certo orgulho em dizer que não importava onde fosse deixado, sempre saberia voltar para casa pois conhecia bem sua cidade. Afinal, ela havia se formado sob seu olhar. Não havia rua ou canto que ele não tivesse visto nascer.Â
Agora parecia um migrante recém-chegado, admirado com o tamanho, o barulho e a grandiosidade da cidade em que escolheu viver.Â
O barulho constante das buzinas tinha a vantagem de se transformar num zumbido de colmeia que abafava o barulho que vinha da cabeça das pessoas apressadas, cada qual gritando mais que a outra em sua própria mente provavelmente porque não se sentiam ouvidas da boca para fora. O barulho enlouquecedor somado acabava virando ruido branco e permitindo que escutasse um pouco de si mesmo. Abençoado seja o barulho incessante das grandes cidades! Quando tivesse tempo estudaria se mudar para perto de uma daquelas avenidas infernais.Â
De tanto caminhar acabou chegando a um lugar que reconhecia. A paisagem se tornou menos urbana, as ruas ficaram mais arborizadas e tudo em volta adquiriu uma feição de subúrbio residencial onde as crianças ainda podiam brincar na rua sossegadas.Â
As mesmas ruas poeirentas que costumava percorrer diariamente quando se tornou adulto, quase idênticas até no aspecto das casas, tirando uma ou outra que foi transformada em uma dessas arquiteturas modernas que deixa tudo com aspecto quadrado de caixa com buracos.Â
Quase podia se ver cumprimentando os vizinhos, seus conhecidos que na maioria das vezes lhe eram simpáticos, esquecendo até de tudo que aprontava por ali enquanto crescia.Â
 Permitiu que os pés continuassem o bom trabalho que vinham fazendo até então enquanto a mente se deixava levar pela sensação nostálgica. Â
Acabou chegando aonde imaginou quando percebeu onde estava. Deteve-se alguns instantes parado nos degraus sob a grande porta. Havia sido reformada, a pintura externa estava em dia e a rampa para deficientes não existia na última vez que havia pisado ali, mais ou menos na época da morte do padre que o havia acolhido nem sabia quanto tempo antes, mas era ela e estava praticamente idêntica ao dia em que um policial preocupado o arrastou porta adentro e pediu ao religioso que tomasse conta do “órfão†fujão. A igrejinha do padre Lucio.Â
Hesitou um pouco antes de decidir entrar. Não era um homem de religião. Não podia dizer que era descrente, de tudo o que sabia e que já tinha visto não tinha o direito de duvidar que coisas impossÃveis à s vezes aconteciam, só não conseguia gastar tempo conversando com figuras de gesso ou pensando em entidades superiores, mesmo que a sombra dos Deuses de sua gente ainda pairasse em seu inconsciente e regesse alguns de seus atos, era mais pela força do que tinha aprendido do que pela crença pessoal.Â
A igreja ainda era a mesma que aprendeu a frequentar todo domingo por incentivo do padre junto com as outras crianças do orfanato. Mesmo que estivesse acostumado a outras crenças e não pudesse se apegar a estas, não era bom que os companheiros de orfanato achassem que era diferente. Acabou gostando daquele compromisso. Era uma disciplina que achava necessária. Acostumado que estava a uma rotina rÃgida e cheia de afazeres, escola, catequese e missa aos domingos não parecia assim tão duro.Â
Não havia missa à quela hora. O salão quase vazio, apenas duas senhoras que rezavam e um casal que passeava como se visitasse um museu. Sentou-se em um banco próximo a saÃda lateral e observou enquanto a moça arrastava delicadamente o namorado para olhar de perto uma Nossa Senhora das Graças, esculpida em madeira e muito antiga.Â
Lembrava-se da imagem, se ainda fosse a mesma é claro. Tinha colocado um bilhete em uma rachadura na parte de baixo. Nada muito importante, seu nome e a data em que estava. Tinha pensado em retornar e resgatar o pedacinho de papel no dia em que voltasse definitivamente para casa. Era só algo que provava que ele tinha realmente passado por ali, numa época em que andava acreditando que tinha se perdido na nevoa e que tudo o que vivia era uma projeção criada em seus últimos momentos antes de desaparecer.Â
O rapaz percebeu que ele observava, num gesto protetor envolveu a moça e a guiou para longe dos olhos do estranho que encarava. O estranho continuou encarando o mesmo lugar, não era a moça que o interessava. Era a santa. Será que o bilhete ainda estaria ali?Â
Alguém se sentou ao seu lado.Â
Um padre, mais jovem do que Lucio era quando o conheceu, uma calvÃcie precoce já estendia seus dedos sobre a cabeça do sacerdote, deixando entradas que eram mal disfarçadas. Os óculos de armação invisÃvel completavam o visual, alguém que não queria ser visto como tão sério. Devia ser um lÃder de jovens ou coisa parecida, tentando não parecer tão desligado do mundo natural como as pessoas imaginavam que os padres eram. As pessoas se enganavam bem a esse respeito e nem sempre porque o sacerdote as levasse a pensar assim. Â
—Tempos difÃceis, meu filho?Â
Alexandre tentou sorrir, parecia a mesma conversa que tinha tido quando era criança e entrou no lugar pela primeira vez.Â
—Um pouco sim. Só estou dando um tempo, colocando a cabeça no lugar antes de voltar para casa...Â
O padre parecia curioso com o visitante novo em sua paróquia. O examinou algum tempo e Alexandre esperava receber uma palavra de evangelização ou uma sugestão de confissão para aliviar o coração. Não esperava pelo que recebeu.Â
—Você parece preocupado, posso fazer algo por você, meu filho?Â
—Eu só estou um pouco cansado, o senhor não precisa se preocupar...Â
—Cansaço leva a desespero... Já ouviu falar do caminho do homem desesperado?Â
Alexandre piscou um par de vezes tentando ter certeza de que não cochilava e sonhava. Aquilo parecia piada. Sua aparência deveria estar péssima para que o padre quisesse ensiná-lo o caminho do desesperado...não pode evitar o sorriso. Que bom que ainda existiam... os padres que ensinavam o caminho, por alguma razão Alexandre tinha quase certeza de que estavam em extinção.Â
—Obrigado, padre. Esse caminho eu conheço bem... já trilhei. É só cansaço mesmo. Vou para casa agora e se um dia conhecer alguém que precise saber sobre esse caminho, eu mando vir diretamente falar com o senhor.Â
—Então é real? Eu ouvi falar, mas nunca estive lá...Â
—Tão real quanto possÃvel. —Levantou-se e estendeu a mão ao sacerdote que a segurou e balançou como um gesto automático. —Preciso ir agora. Obrigado de novo.Â
Saiu enquanto os olhos do jovem sacerdote ainda queimavam em suas costas. Lá fora o céu já adquiria o tom alaranjado que prenuncia o fim de um dia. Sua visão favorita e a cor preferida de Lydia. Deixou que os pés trabalhassem um pouco mais, voltava mais consciente do caminho do que quando ia. Refletindo sobre tudo o que havia vivido desde o dia em que voltou para a casinha com luz azul na varanda.Â
Chegou em casa quando a noite já estava escura. O carro do filho mais velho estava estacionado em frente. As luzes estavam todas acessas e as pessoas dentro de casa silenciosas. Sentiu um aperto no coração conforme se aproximava da porta. Não sabia se acelerava o passo para chegar logo ou se começava a caminhar em câmera lenta para adiar fosse lá que noticia o esperasse atrás da porta.Â