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Os rapazes se sentaram no sofá da mesma forma que faziam quando eram mais novos e um deles aprontava algo. Bento batia um dos pés, inquieto. Diego curvou a cabeça e esfregou a têmpora, prenunciando uma crise de enxaqueca. Samuel continuava estalando os dedos mesmo que suas juntas agora se recusassem a estalar.Â
O homem levou menos que os quinze minutos anunciados para se vestir e voltar com seu andar cuidadoso pelo corredor, os minutos que levou pareciam horas intermináveis aos homens adultos sentados no sofá. Nenhum deles disse nada, todos sentiam que de um momento para o outro tinham voltado a ser garotos travessos na agonia de esperar as conversas difÃceis com o pai. Quando eram mandados sentar juntos no sofá nunca o que se seguia era bom.Â
Samu quebrou o silêncio num quase sussurro para os irmãos.Â
—Vocês têm certeza de que é ele mesmo?Â
—Você tem alguma dúvida?Â
Bento não queria soar grosso, o irmão levantou uma dúvida razoável.Â
O homem estava exatamente igual a última vez que o tinham visto, exceto pela ferida gigante que parecia uma aranha com muitas pernas em sua barriga, quando saiu com uma mochila nas costas para visitar a avó que nenhum deles conhecia e que recebia a visita do pai deles todo ano, nas quais nunca podiam acompanhá-lo. Entre aquela vez e o encontrarem dentro da casa semiabandonada havia se passado muito tempo, por que o pai continuaria igual?Â
E lá retornava o homem pelo corredor. Uma calça jeans e uma camiseta, como sempre. Havia jogado sobre o corpo uma blusa cinza de moletom um pouco puÃda e com muitas bolinhas formadas. Vinha penteando o cabelo com a mão direita embora fosse canhoto. Provavelmente porque o movimento faria gritar o ferimento do lado esquerdo.Â
Jogou-se na poltrona que ficava de costas para o corredor dos quartos, a poltrona dele, soltando um gemido com uma careta ao deixar o peso cair. Cruzou os braços diante do corpo como se esperasse que falassem algo que nenhum dos três sabia o que falar.Â
Diego tomou a frente, tentando se lembrar do pouco que sabia sobre pessoas que desapareciam e ressurgiam como mágica. Não era muito, então fez o que achou que era certo.Â
—O senhor se lembra do seu nome e de quem nós somos? Disse hesitante, pronunciando lentamente cada palavra.Â
O pai fez o gesto que todos eles conheciam, erguendo uma das sobrancelhas e tentando esconder o sorriso.Â
—Vamos ver, eu me lembro do meu nome, lembro que tenho três filhos, eu não sei por que não lembraria apesar de vocês estarem péssimos. O que aconteceu? Por que cortou o cabelo?Â
Bento se mexeu, desconfortável. Respondeu com um sacudir de ombros que podia significar “não sei ou não importaâ€Â
—O que é que eu tenho que fazer para receber algumas respostas dos meus filhos na minha casa? Bora gente, alguém por favor começa a me explicar o porquê vocês parecem tão...Â
—Velhos?Â
Foi Samuel quem respondeu. Ele sempre havia sido muito parecido com o pai no temperamento. Até tinha copiado para si o jeito impaciente de seu velho.Â
—Acho que é essa a palavra... O que aconteceu aqui que fez vocês três pareceram tão maltratados? Posso ajudar em alguma coisa?Â
Samuel se inclinou, querendo se levantar e andar pela sala e só não fazendo porque apesar do estranhamento que o deixava nervoso, sua curiosidade era maior.Â
—Normal quando você fica vinte anos sem ver alguém. No reencontro a pessoa parece mais velha mesmo, Sr. Alexandre. Por que você não parece mais velho?Â
O pai não ouviu a última parte, se tivesse ouvido exigiria respeito do filho do meio. Mas ainda estava processando a informação que havia recebido.Â
—Eu fiquei fora por pouco mais de duas semanas. Por que você disse vinte...Â
Ele parecia ter se esquecido dos filhos na sua frente, começou a conversar consigo mesmo, praticamente cochichar.Â
—Vinte anos... ela tinha dito que não ia... ela disse que não faria nenhuma diferença... eu perdi vinte... Que merda! Não dá para acreditar...Â
E então ergueu o rosto para seus filhos.Â
—Quem cuidou de vocês?Â
Os mais novos olharam para Diego.Â
—Eu me virei, os pirralhos foram para a casa da tia Lydia e do tio André.Â
—Como eles estão? Â
A pergunta era estranha, o pai não parecia estar processando a notÃcia da forma correta. Se alguém contasse que eu estava desaparecido a vinte anos, eu não acreditaria e faria um escarcéu, quebraria tudo. Pensou Bento, o pai respondeu como se ouvisse.Â
—Fazer escândalo não vai resolver nada na situação atual. Vocês podem me responder o que perguntei ou eu vou ter que me virar e descobrir sozinho?Â
Em seguida o pai fechou os olhos e esfregou a testa, respirando fundo de vez em quando. Samu começou a se levantar, quando o pai ficava assim, música costumava acalmá-lo, era quando ele dizia que estava difÃcil morar na própria cabeça, mas como não podia sair tinha que pelo menos expulsar os outros.Â
—Senta aÃ! Não precisa... já passa, só me respondam, por favor.Â
A voz estava bastante irritada.Â
Diego respondeu.Â
—Tia Lydia está bem, ela quem cuida aqui de casa para não cair aos pedaços... Tio Andre...Â
—Entendi. O coração?Â
Diego balançou a cabeça.Â
—Que pena, vou sentir a falta dele. Preciso que vocês me digam tudo que eu perdi de importante sobre vocês, um de cada vez porque minha cabeça está latejando forte. Bento, liga o rádio para o pai, não muito alto, por favor. Quando a gente acabar de conversar sobre vocês, vou contar algumas coisas sobre mim e porque fiquei fora tanto tempo. Bentinho, por favor, fecha a cortina e abaixa um pouco o som. Não queremos que os vizinhos venham saber o que está acontecendo aqui.Â
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Foi um pouco nostálgico estarem os três sentados no sofá em ordem de chegada e com o pai deixando a poltrona que tinha ocupado para se sentar sobre a mesa de centro, podendo olhá-los nos olhos.Â
Era assim que fazia sempre que voltava das viagens misteriosas à casa da avó. Colocava os três meninos lado a lado no sofá e pedia para que contassem tudo que achassem importante nas duas semanas que passava fora. Poderiam falar sobre qualquer coisa, até sobre problemas da escola ou sobre coisas que aprontaram e nada poderia ser castigado, à s vezes o pai queria ficar mais perto dos meninos, então afastava a mesa de centro e se sentava no chão, convidando os filhos a fazerem o mesmo. Â
Se o assunto fosse particular, a conversa era levada ao quarto do pai para que permanecesse longe dos ouvidos curiosos dos irmãos, então depois pai e filho voltavam a sala para ouvir aos outros.Â
Era surreal que ele estivesse ali. Cada um deles pensou. Aquela sessão de conversa estava tempo demais atrasada e nenhum deles sabia como funcionaria.Â
Apenas Samu pareceu se dar conta de que o pai os chamava para conversar de uma forma diferente dessa vez. Nas conversas que tinham, eles falavam e o pai ouvia, só dava opinião quando solicitado, essa era a dinâmica e sempre tinha funcionado. Qualquer coisa que tenha desmoronado no meio do caminho tinha acontecido quando as conversas de retorno tinham parado, quando eles aos poucos se deram conta de que não haveria mais um retorno.Â
O pai, dessa vez tinha dito que depois de ouvi-los, ele falaria. Samuel era um homem agora, não achava que tinha necessidade de que o pai desaparecido a tanto tempo e para muitas pessoas morto o escutasse. Mas queria ouvir o que o pai teria a dizer e que coisas sobre ele haveria para contar. Â
Havia uma certa desconfiança no ar, um certo ressentimento que como não poderia ser direcionado ao pai, cada um deles sabia instintivamente que se pudesse o pai não teria passado um único dia distante, então direcionavam aos irmãos.Â
Nenhum dos três queria fazer um inventário de suas vidas diante dos outros. Julgavam e achavam que seriam julgados. A verdade é que em suas vidas adultas haviam se tornado desconhecidos que partilhavam o mesmo sobrenome. O sangue chama, diziam os antigos, mas não carregavam o mesmo sangue. Â
Diego era filho do primeiro casamento do pai, uma relação que terminou com a mãe os abandonando, indo procurar sua felicidade com um homem pelo qual se apaixonou. Ao menos era assim que o pai entendia. Alexandre nunca falava mal da primeira esposa diante do filho mais velho, o único com quem partilhava o DNA, preferia dizer que apenas ele, o marido havia sido trocado, o filho ainda estava na mente e no coração de mãe e deveria guardar um lugar em sua vida para ela, um dia a própria Luana poderia explicar o que tinha acontecido e por que tomou sua decisão, o filho deveria ouvir e perdoar.Â
Não era fácil. Como se faz para respeitar e entender alguém que você não conhece de jeito nenhum? Não tinha nem um ano e meio quando a mãe tinha ido embora.Â
Chegou a se encontrar com a mãe depois de adulto. Uma curiosidade que teve depois que o pai desapareceu. Uma conversa marcada em um café cuja decoração se assemelhava muito a sala de espera de um hospital de filmes futuristas. Tudo era branco, liso e curvilÃneo, do balcão ao piso. A luz era difusa e indireta em tons de neon, tudo pretendendo ser elegante e moderno e dando a sensação de ser frio, ao menos para ele.Â
Talvez se tivessem marcado em um lugar mais aconchegante a conversa não pareceria tão desprovida de calor. Duas pessoas que nunca haviam se visto, ao menos uma delas não se lembrava da outra, que nada tinham em comum exceto pelo sangue divido. Quase uma conversa com um corretor de seguros ou coisa parecida. Cordial, sem ataques ou cobranças, sem magoas, na verdade sem sentimento algum.Â
Quando criança sonhava com esse encontro, imaginava o que ela diria. Não estava realmente decepcionado, só surpreso que depois de anos ensaiando em sua mente o encontro, não houvesse quase nada a dizer.Â
Sentado no sofá em frente ao pai e tentando apagar a presença dos outros, pensava nessas coisas e procurava um jeito de falar sobre isso sem que parecesse dar grande importância, preferia se a audiência com o senhor daquela casa fosse a portas fechadas, só os dois. Â
Por ser o mais velho, era natural que fosse o primeiro e não se sentia nem um pouco à vontade com isso. É que vinte anos mudam muita coisa na vida de uma pessoa. No fundo tinha medo de que o pai, a pessoa em quem sempre mirava procurando aprovação, não gostasse da pessoa que tinha se tornado.Â
Sentado sobre a mesinha, o pai o encarava quase fixamente, a expressão séria no rosto. O braço esquerdo apoiado sobre o dorso, instintivamente protegendo o lado do corpo ferido. Então sorriu, estendeu a mão livre e segurou a mão do filho mais velho, como se soubesse tudo que se passava na mente do homem que um dia tinha sido seu garoto.Â
—Tudo bem, podemos conversar depois, quando você estiver confortável. Não temos pressa, não vou a lugar nenhum agora.Â
Alexandre se demorou olhando o rosto de cada um dos seus filhos. Só agora percebia o quanto haviam mudado e parecia que a vida não tinha sido muito gentil. Seus filhos pareciam tristes, cansados e assustados e não podia evitar o pensamento que se estivesse em casa cuidando dos garotos, nenhum deles teria a mesma cara que ostentavam hoje.Â
Não era difÃcil perceber que não estavam confortáveis com toda a situação. Quem poderia culpá-los? Ele mesmo não estava muito à vontade. Seus garotos o olhavam como a um estranho e de fato era isso o que era para eles, se pensasse bem tinha passado mais tempo fora da vida deles do que presente. Â
Sentiu uma onda de raiva crescer em sua alma. Vinte anos! Passou a mão direita pelo queixo, fazendo um barulho áspero na barba por fazer numa tentativa de não demonstrar aos rapazes que estava a um fio de perder o controle. Se eles não estivessem presentes, provavelmente já teria quebrado qualquer coisa ao alcance de sua mão. Reação emocional que não o ajudaria em nada e ainda assim era o que queria fazer. Mais tarde teria uma boa conversa com sua mãe. Por hora precisava se mostrar presente para seus filhos, tentar consertar as coisas.Â
—Nenhum de vocês quer falar comigo agora, não é?Â
Os rapazes permaneceram quietos. Um esperava que o outro se manifestasse, nenhum dos três admitiria, mas todos se sentiam acuados pela estranheza da situação. Nenhum deles entendia ou conseguia imaginar o que estava acontecendo.Â
—Vocês se importam se eu fumar?Â
O pai perguntou, fechando as mãos para que os rapazes não percebessem que tremia.Â
Os filhos se entreolharam. A pergunta incomodava. O pai sempre os respeitou e parecia se importar com a opinião deles, mesmo assim era estranho, como se fosse uma visita.Â
—A casa é sua, pai.Â
Foi Diego quem falou, os irmãos tinham assumido a postura de observadores. Apreciavam a cena como se estivessem alheios a tudo. Passivos. Seria melhor se tivesse ido sozinho e depois contasse o ocorrido aos irmãos, ao menos poderia conversar com o pai mais livremente.Â
Alexandre olhou de canto de olho para o filho mais velho. Mais uma vez criando a sensação de que sempre sabia o que se passava na cabeça de cada uma de suas crias.Â
—Que bom que estão todos juntos. Facilita uma porção de coisas... depois quero saber por que vocês parecem ter brigado. Bentinho, me arruma um cigarro por favor, eu não tenho um comigo.Â
O nome foi pronunciado como “Bentin†suprimindo a letra o, era como o pai o chamava desde que havia chegado naquele lar. Bento achou estranho que o pai lhe pedisse um cigarro com tanta certeza, quando viajou ele ainda nem pensava em fumar. Â
Pegou o maço de marca barata no bolso da camisa através da gola destruÃda do blusão com alguma dificuldade. Depois apanhou o isqueiro no bolso dianteiro da calça que estava franzida na cintura sob um cinto craquelado. Bento sabia que o pai reparava, esperou algum comentário que não veio. O pai baixou um pouco a cabeça, concentrando-se em ajeitar o cigarro amassado e torto com uma das mãos, tremendo um pouco e usando a outra para segurar o isqueiro.Â
Todo o movimento durou alguns minutos, os olhos dos meninos grudados no pai que se atrapalhava um pouco.Â
—Que foi? —Alexandre perguntou ao notar que os filhos o observavam.Â
—O senhor não ia parar?Â
Respirou fundo antes de responder e Samuel notou pela primeira vez desde que o reconheceram que estava mais pálido do que se lembrava, as olheiras mais escuras do que deviam. Parecia mais magro também. Fosse o que fosse que tivesse acontecido enquanto estivera desaparecido, não haviam sido dias fáceis.Â
—Eu parei...vai ser só esse mesmo, só porque esse dia está ficando cada vez mais... Olha, eu não sei direito como começar essa conversa, vocês podem me ajudar com isso? Perguntem o que quiserem saber, eu não vou mais esconder nada de vocês.Â
Os três irmãos se entreolharam.Â
O pai era do tipo totalmente franco, sempre direto e que praticamente não sabia guardar segredos, era estranho que falasse sobre esconder coisas. Os três eram unanimes em pensar que aquele homem não tinha e não poderia esconder nada, mesmo se quisesse.Â
Foi Samuel quem quebrou o silêncio desconfortável e a sequência de olhares que não ajudavam a esclarecer muita coisa. Na infância tinha sido o mais próximo do pai, também foi o que mais se revoltou com o desaparecimento e o primeiro a sugerir que deviam considerar o pai como morto. Se não tinha voltado era porque estava morto. Seu pai jamais os abandonaria!Â
—Começa contando onde o senhor esteve esse tempo todo. Por que largou a gente, Seu Alexandre?Â
O rosto de Alexandre se contorceu como se o estomago doesse, na verdade doÃa mesmo, desde o momento em que tinha visto seus garotos sentia um desconforto fÃsico do qual não sabia a origem e que ficava mais forte aos poucos. Atribuiu a dorzinha chata ao nervoso da situação e tentou ignorar sua existência.Â
—Um pouco cruel você dizer isso, Samuel. Eu não larguei vocês! Eu fui cumprir minha obrigação como faço todo ano. Não pude voltar no dia certo por causa do ferimento, fiquei só dois ou três dias a mais do que costumo ficar, eu não sei o que aconteceu que fez esse tempo se alongar tanto e sinto muito ter demorado. Mas a espera de vocês foi bem maior que a minha. Repito, para mim foram só dois dias a mais.Â
Alexandre falava cada palavra pausadamente como falaria ao explicar aos meninos algo pela terceira vez e tentando se fazer entender sem ser mais grosso do que deveria. Parecia evidente que falava a verdade, embora fosse uma verdade impossÃvel, o tempo é o mesmo para todas as pessoas, o resto é coisa de filme.Â
—Por que o senhor continua igual?Â
Bento disse baixinho, quase para si mesmo.Â
—Porque foram só duas semanas, pouco mais de duas semanas. E porque eu não mudo muito faz um tempo. Isso não está dando muito certo, eu não sei como fazer e vocês também não tem como saber. Vou tentar do meu jeito, me interrompam quando quiserem. Algum de você tem algo mais importante para fazer hoje e vai precisar sair? Se foro caso, conversamos depois, eu preciso dos três aqui se for contar essa merda toda e pelo tempo necessário. Se eu começar nenhum de vocês vai embora até eu terminar, entenderam?Â
Os três concordaram com a cabeça. Diego tinha milhares de coisas a fazer, a loja estava aberta e na mão dos dois funcionários, mas desde o momento em que reconheceu o pai soube que não deixaria aquela casa até ter as explicações que merecia. Pediu licença e fez as ligações de que precisava e aconselhou os irmãos a fazerem o mesmo, nenhum dos dois se moveu.Â
O pai olhou desconfiado para a cena. Não reconhecia a postura do mais velho, em geral sempre tÃmido.Â
Quando retornou sentou-se no lugar de origem sentindo que essa voltinha tinha sido benéfica, todo o clima era estranho e essa quebra havia sido necessária, tirou um pouco da impressão mÃstica que a sala havia adquirido, fosse qual fosse a história que o pai contaria, tinha que ser tratada pelas vias racionais apesar das circunstâncias. Tudo tinha explicação na vida, só tinha que estar aberto a entender.Â
—Bem, vamos voltar ao inÃcio. A primeira coisa que eu tenho que dizer é que jamais deixaria vocês por tanto tempo, já me doÃa muito ter que ir pelo perÃodo obrigatório. Se eu os deixava por esses dias era porque tinha que ir, esses convites da avó de vocês são do tipo irrecusáveis.Â
Os três agora estavam com olhos fixos nele. Os aparelhos guardados nos bolsos. Atenção total, era o que queria. Respirou fundo ciente da pontada de dor no ferimento. Tinha que cuidar disso o quanto antes. Começou a contar a parte de sua história que seus meninos não conheciam.Â
—Vocês me perguntaram por que eu não mudei nada nos últimos vinte anos em que estive fora. Vocês eram pequenos e não reparavam em muita coisa da última vez que viajei, a verdade é que se fossem mais observadores teriam percebido que desde que vocês eram bebês, nunca me viram mudar. Eu não mudo nada desde que me tornei um adulto. Â
É uma caracterÃstica da minha gente. Da gente da sua avó. Depois de adultos nós mudamos tão lentamente que seria necessário observar por muito mais tempo do que vocês tiveram.Â
Eu sempre tentei me manter afastado dos assuntos de lá... não queria saber, não queria estar presente. Sua avó pode ser muito persuasiva quando quer e a gente acabou fazendo esse acordo. Duas semanas por ano eu volto para casa, participo do que ela quiser e depois volto para vocês. São as piores duas semanas de todo anos até agora, não gosto de ter que viajar até lá, não gosto de ficar lá, não consigo ser eu mesmo lá, mas esse é nosso acordo então eu vou. Duas semanas em troca de cinquenta feliz.Â
Esse ano aconteceu uma coisa diferente. Um dos nossos convidados para a festa quebrou o pacto dos visitantes. Como eu era o mais próximo, coube a mim cumprir a obrigação de todo o povo de lá, impedir que algo pior acontecesse com a pessoa mais importante do lugar, que no caso é a avó de vocês. Não sou muito bom nessas coisas de defesa, eu não sabia o que fazer exatamente, só que ela não podia ser atingida, então fiz o que podia. O resultado foi minha mãe não ser tocada e eu arrumar aquela ferida que vocês viram e que estavam doidos para perguntar.Â
Ela me disse para ficar um pouco mais, dar tempo a eles de cuidar do ferimento, já que eu o arrumei por causa dela. Uma semana, quinze dias, que mal faria? Eu realmente não estava nada bem, perdi muito sangue. Não tinha condições de vir embora, então fiquei até conseguiu viajar de volta.Â
 Quando me senti melhor avisei que tinha que voltar e mesmo minha mãe protestando, me deixou vir. Eu não poderia vir se ela não me desse permissão e esse é sempre meu medo quando vou até lá, que ela não me permita sair quando eu quiser. Ela diz que não faria isso, que vai honrar a palavra dela enquanto eu honrar a minha, mas pelo visto já tivemos uma quebra de contrato, depois eu vejo com ela sobre isso.Â
—Onde é a casa da vovó? — Questionou Bento.Â
—Isso é meio complicado de responder. Quando viajo, saio daqui e sigo em um ônibus para o interior, de lá sigo a pé até um local especÃfico dentro do parque nacional, um ponto que só pode ser encontrado por quem sabe onde é. A coisa é que tenho que estar lá no dia certo. Levo quase dois dias de viagem para chegar.Â
—Então é bem longeÂ
Diego quem disse, bom saber que estava interessado.Â
—Não exatamente. Esse é só o meio mais conveniente para mim quando vou para lá porque não tenho nenhuma pressa de chegar e assim tenho quase dois dias para tentar me convencer de que não é tão ruim. Tem outros meios, outras formas. A questão é só a janela do tempo mesmo. Se você estiver lá no momento que o brilho sumir no horizonte, você chega à casa da sua avó, se não, vai ter que esperar o próximo ano ou procurar outros caminhos. Eu consigo ir fora da data, mas não gosto e prefiro o jeito tradicional. Vou com os estrangeiros, saio com eles... é melhor assim.Â
—Por isso a gente nunca foi lá? Por que é difÃcil chegar?Â
—Não, se fosse esse o caso eu levaria vocês. Tem mais a ver com o fato da sua avó ser bastante difÃcil, por falta de palavra melhor. Têm coisas que vocês não precisam passar. Conversas sobre legitimidade, sobre herança e obrigações que vocês não precisam ouvir. Dona Liana perdeu os privilégios de conviver com os netos no dia em que me disse que não considerava vocês como parte da famÃlia dela, que era melhor que não existissem na minha vida, só que ela se enganou porque vocês três são as melhores coisas que me aconteceram.Â
Os dois mais jovens entenderam que aquela parte era direcionada a eles já que nenhum dos dois tinha laços de sangue com Alexandre. Samuel era filho da segunda esposa do pai, Samanta. Quando se conheceram ele tinha mais ou menos seis meses, nunca conheceu outro pai e o nome que constava em seu registro era o de Alexandre. A pior briga entre eles tinha acontecido justamente porque Samu dissera que o homem nem era seu pai, coisa de adolescente revoltado, tinha sido pouco antes da última viagem e Samuel ainda se pegava pensando naquela discussão e ficando envergonhado, mesmo depois de tantos anos.Â
Bento veio depois. Uma amiga de Sam estava num mal momento. Tinha esse menino pequeno, praticamente recém-nascido e não tinha condições mentais e financeiras de cuidar dele. Sam e Ale decidiram ficar com o menino, adotando legalmente depois de um ano, quando souberam que a tal amiga não voltaria, tinha tirado a própria vida num lugar distante dali, doente e sem tratamento. Bento sempre soube que era adotado, mas descobriu sobre a mãe há poucos anos, quando tinha começado a tentar esquecer. Â
Alexandre anotou mentalmente que depois conversaria com o menorzinho a sós quando terminassem ali. Continuou o que tinha a dizer.Â
—Não é culpa de vocês, ela sempre foi assim. Ela chama de ser prática e de certo modo ela tem os motivos dela... se não fosse por vocês é possÃvel que eu já tivesse voltado de vez... é tudo o que ela quer, que eu nunca mais saia de lá que segundo o que ela acredita é meu dever.Â
—Onde é lá?Â
Samuel cortou, com seu jeito impaciente, claramente aborrecido com a conversa, talvez desejando que Alexandre fosse mais claro no que dizia, até agora não dera grandes informações.Â
—Nós chamamos de Al Dahim, mas aqui fora tem um monte de nomes que as pessoas usam. É um lugar afastado, não fica exatamente em um lugar definido no mapa, o gps não vai levar alguém até lá...para chegar você tem que saber aonde quer ir e tem que saber como ir, claro que tem suas exceções, no passado algumas pessoas chegavam até lá sem querer, hoje é mais raro. Â
É uma sociedade interessante, acho que vocês gostariam de conhecer...Â
—Pai, eu não quero ser desrespeitoso com o senhor, mas essa conversa além de absurda não está esclarecendo nada, o senhor deve estar confuso...Â
Alexandre encarou o filho mais velho com o rosto sério, depois correu os olhos pelos outros dois, Samuel mantinha uma postura defensiva enquanto Bento se ocupava em roer as unhas já muito curtas até que sangrassem. Â
—Diego, você está olhando para um homem que em vinte anos fora não ganhou uma única ruga ou fio de cabelo branco, se você se levantar e procurar o álbum creme com as fotos de infância de vocês, vai encontrar a única foto da sua mãe que tem nessa casa. Você, ela e eu, se fizer isso vai perceber que a pessoa da foto ainda está idêntica depois de quase quarenta anos, você poderia ter notado isso sozinho, mas somos assim, só enxergamos o que queremos. Tem coragem de dizer que a parte absurda dessa história é o lugar de onde venho ser diferente, sério?Â
Cada palavra foi pronunciada levando o tempo que precisava. Quando tomou a decisão de contar a eles já esperava que os filhos fossem apresentar alguma resistência.Â
Não houve resposta ao questionamento, ou ele acreditava ou tinha se sentido invalidado, Alexandre achou que pendia mais para a segunda opção. Estava cansado, com dor de cabeça e sentindo tudo muito barulhento, isso o deixava sem paciência e estava se esforçando para não magoar ainda mais nenhum dos rapazes, esperava que o primogênito entendesse.Â
—O que eu quero dizer é que não tem nada de absurdo nessa história, basta querer ver. Os sinais estavam sempre ali, nem sei como nenhum de vocês nunca chegou à s conclusões certas antes.Â
—Eu achava que o senhor tinha crescido na zona leste...Â
—E foi exatamente isso, Samuel. Eu tinha treze anos quando fugi de casa, fiquei uns tempos nas ruas, acabei sendo preso e o policial preferiu me levar para a igreja em vez da delegacia. Tive sorte porque o padre me deixou ficar por ali. Morei naquele orfanato até completar dezoito. Consegui estudar graças ao Padre Lucio. Vocês já sabiam dessa parte. O que eu nunca contei foi que o padre me reconheceu como o herdeiro do trono de Al Dahim porque era um de nossos aliados fora, os que mostram como seguir o caminho dos desesperados e que ele deveria ter me mandado de volta, mas entendeu que eu não queria voltar. Ele arriscou se indispor com A Senhora, a avó de vocês e ainda bem que ela nunca soube, poderia ser bem complicado para o Padre se chegasse a saber.Â
—Ela é tão ruim assim? —Bentinho perguntou quase para si mesmo, o dedo ainda na boca, a unha entre os dentes sendo arrancada.Â
—Não. Ela tem o modo dela de pensar. A gente discorda em muita coisa, mas ela não é uma pessoa ruim...só tem muitas obrigações e precisa pensar no que é melhor para o povo dela. Nosso povo. Estou a tanto tempo aqui que à s vezes esqueço que aquela é minha gente e minha responsabilidade também.Â
Bentinho agora apoiava os pés ainda calçados na beira do sofá, tinha se encolhido todo procurando uma posição confortável. Ao menos ele entre os três parecia se esforçar para sentir à vontade em casa. Ainda assim Alexandre desviou o olhar da atrocidade de colocar os pés no sofá claro e ainda calçado, se Samanta estivesse ali surtaria com a visão.Â
—Vocês me olhando assim até me assustam, que foi?Â
Os três rapazes, como Ale se referia aos filhos, estavam com olhos fixos nele como se vissem um fantasma. A palidez do rosto que aumentara chamava a atenção, a mancha vermelho-vivo que aumentava fibra a fibra no agasalho, chamou muito mais. Alexandre não parecia sentir, mas seguiu o olhar dos filhos e encontrou a nódoa. Então viu as coisas saÃrem do lugar onde deveriam estar, chão virou teto e teto virou chão. Apagou. Â
Não deve ter levado mais que alguns segundos. Os meninos o estavam colocando no sofá quando acordou. Quase insistiu para ser deixado de lado. Estava bem. Seu pensamento estava no aborrecimento de perder o moletom de que mais gostava.Â
—Chama a ambulância, faz alguma coisa útil.Â
—Me ajuda aqui, ele é pesado.Â
—Peguei, segura, não solta.Â
—Gente, ele acordou.Â
Os garotos estavam apavorados, teve que se deixar deitar no sofá mesmo que já se sentisse melhor, não esperava por isso uma hora dessas. Aquela droga de ferida se recusava a fechar e já era tarde para pensar em pontos. Se achasse um tubo de supercola em casa, daria um jeito ele mesmo.Â
—Esquece ambulância!Â
Disse em alto e com um pouco mais de urgência do que pretendia. Queria que sentissem que não era necessário, ficou parecendo que estava com medo ou coisa do tipo. Fez sinal para que se sentassem, as posições se inverteram, os filhos se sentaram sobre a mesinha de centro, o pai agora estava deitado no sofá.Â
—Samuel, desliga isso! Esquece ambulância e esquece hospital!Â
E vendo a confusão nos olhos dos garotos continuou.Â
—Eu estou fora há vinte anos, não tenho documento para hospital e não tenho como explicar essa droga. Se for para o hospital vão acabar chamando a polÃcia. Esquece hospital, a gente cuida, só fazer um curativo... deixa apertado...vai dar certo.Â
Diego se moveu em direção a porta, havia uma farmácia não muito longe dali. Não perguntou nada, apenas foi e quando voltou vinte minutos depois tinha todo um arsenal de produtos para curativos, antissépticos, gaze, esparadrapo e uma espécie de cinta de papel elástico que Alexandre nunca tinha visto. Jogou tudo na mão de Samu, dizendo que o irmão tinha mais jeito com essas coisas. Â
Bento se sentou no braço do sofá, perto da cabeça do pai, alternando entre roer os cotocos das unhas e esfregar as mãos no jeans encardido. Atrapalhando a movimentação e irritando um pouco os irmãos.Â
Curativo feito, percebeu que tinha fome, já eram quase quatro da tarde. Â
—Diego, tem algum dinheiro com você? Se puder, compra algo para a gente comer e assim que eu puder te pago. Nesse momento eu estou na mesma situação que um indigente...Â
O filho concordou com a cabeça, amarelado e evitando olhar na direção do pai, parecendo aliviado em sair. Nojinho de sangue, mesmo depois de crescido?... Tem coisa que não muda...Â
Quando voltou, comeram em silêncio. Claramente nenhum deles tinha vontade de continuar a conversa, não naquele dia. Depois saberiam mais, talvez percebessem coisas que tinham passado desapercebido enquanto cresciam, agora precisavam de tempo para digerir.Â
Os meninos arrumaram desculpas para irem embora, Diego queria que Alexandre fosse com ele, mas o pai foi bastante enfático ao dizer que dormiria em sua própria casa. Se tivesse algum problema prometia ligar, não costumava quebrar suas promessas.Â
Na varanda conversaram se despedindo de jeito atrapalhado. Bento ficando mais agitado conforme o momento de ir chegava. O pai assistindo enquanto os meninos se despediam, não mais tão formalmente como na chegada. Havia muita mágoa entre eles... Que tinha acontecido enquanto estava fora?Â
—Você tem onde dormir?Â
Diego perguntou para Bento, um pouco rÃspido. A intensão era boa, levaria o irmão para onde ele quisesse ir, se estivesse sem abrigo deixaria um hotel pago. Para sua casa não podia levá-lo, a última vez quase lhe custara o casamento.Â
—Ele vai passar a noite aqui comigo. Bora, passa para dentro que o pai vai trancar a casa.Â
Bento olhou de volta para a porta e depois para o irmão. Sorriu pela primeira vez no dia, sempre se movendo aos pulos, agitado. Parecia tão mais novo quando sorria. Os olhos azuis eram muito grandes, infantis. Passou pelo pai saltitando. Â
Alexandre respondeu sem que Diego vocalizasse a pergunta, coisa comum na casa, em alguns dias o pai simplesmente sabia o que diriam antes de dizerem.Â
—Não se preocupe, nós precisamos conversar e ele não vai fugir. De manhã vai estar bem aqui. Eu agradeceria se vocês dois voltassem amanhã para continuar a conversa. Na hora que vocês preferirem, não quero atrapalhar. Ah, acho que amanhã vou começar a poder me organizar e vocês vão ter que me ajudar com umas coisas chatinhas, mas isso é assunto para amanhã.Â
Alexandre fechou a porta, passando a chave em seguida. Não seria necessário, a porta estaria bem fechada mesmo sem a precaução, mas queria que o filho visse a porta sendo trancada, que sossegasse, sabendo que o que estava lá fora não conseguiria alcançá-lo e sabendo que o que estava dentro estava protegido e não iria a lugar algum sem que ele mesmo permitisse.Â