Entrou em seu apartamento, tirou os sapatos e ajeitou na sapateira ao lado da porta, colocou a bolsa sobre o aparador sem querer guardá-la no lugar certo. A porta foi trancada apenas com uma volta na chave, pensou melhor e passou o trinco e a corrente.Â
Era um apartamento simples. Sem luxo, embora tudo que houvesse ali fosse de primeira qualidade. Passava muito pouco tempo na própria casa para ter se preocupado em deixar ao seu estilo. O escritório era sua cara, a casa apenas funcional.Â
Tudo era extremamente organizado, ela fazia questão de que estivesse. As coisas funcionavam melhor dentro de sua cabeça se parecessem em ordem do lado de fora.Â
Jogou-se no sofá, olhando o dia que já ia alto lá fora.Â
Não havia cortinas, para ela o dia tinha que começar junto com o nascer do sol. Apenas aquela noite tinha sido diferente, quando havia recebido notÃcias dele. Tinha que ver com seus próprios olhos. A oportunidade só havia surgido quando a velha bateu à porta. Â
Tirou a blusa vermelha de couro e a colocou no aparador atrás do sofá, pegando em seguida um porta-retrato. Os olhos azuis da foto eram idênticos aos seus. Fez uma caricia no rosto gravado em papel fotográfico. A foto foi devolvida para seu local de origem já que era a única que tinha.Â
Sentia borboletas no estomago, como uma colegial prestes a encontrar o namorado.Â
A espera estava acabando! Finalmente aquilo para o que nasceu se cumpriria. O pai ficaria orgulhoso se visse tudo o que ela havia sido capaz de construir. Mas o pai estava morto e isso já tinha muito tempo.Â
Tinha investido o dinheiro que ele havia deixado e seu jeito de procurar pelo filho perdido para criar sua organização que era quase uma irmandade. O dinheiro tinha sido transformado em diversas empresas que empregavam os seus e com as crianças que encontrava no caminho tinha criado uma verdadeira força ao seu redor. Pessoas incrÃveis que só esperavam por sua chance e não conseguiam se adaptar. Tinha criado um mundo só para eles onde pudessem se sentir à vontade entre os seus e prometido que os levaria até o lugar que lhes pertencia e era exatamente o que estava prestes a fazer.Â
 Correu o mundo reunindo os artefatos de que precisaria, conheceu e aliciou muitos dos que assim como ela tinham perdido o direito a sua terra. Formou um verdadeiro exército de pessoas fiéis e dispostas a tudo por ela, ou melhor, uma famÃlia. Eles triunfariam, conquistariam seu lugar de direito e ela seria sua rainha, eles, seu povo corajoso e todos viveriam para sempre.Â
Ela mostrou um mundo criado para que o pai pudesse voltar para seu lugar e tudo o que ele conseguiu dizer era que estava em delÃrio, que isso nunca se tornaria realidade e nem devia e que quando ela conhecesse o irmão, entenderia que as coisas não eram exatamente como ela tinha imaginado por causa das histórias que ele contava.Â
Papai já estava no hospital há algum tempo, o câncer que tinha começado no pulmão também destruiu a mente que tinha sido brilhante pouco tempo antes, já não falava coisa com coisa e não conseguia apreciar os sacrifÃcios que ela fazia por ele. Â
Estava bastante debilitado por causa de uma quimioterapia que não funcionaria para o seu tipo de tumor, andava tendo dificuldades para comer e apesar de ter sido a vida toda corpulento, emagrecia a olhos vistos.Â
Não tinha sido difÃcil segurar o travesseiro diante do rosto dele, papai não tinha mais forças para lutar. Nem sair sem ser vista depois de fazer o que precisava pelo próprio bem do pai que amava tanto, as pessoas viam o que queriam e a moça, delicada de cabelos dourados e doces olhos azuis jamais poderia fazer aquilo. Quem pudesse desconfiar esqueceria que a tinha visto. Ao menos o esforço para aprender com o pai tinha valido a pena.Â
Pegou a foto do aparador novamente. Tinha demorado mais que o previsto e quase, quase tinha dado tudo como perdido, mas agora estava tão perto, falou para a foto ter paciência, em breve iria para seu lugar de direito e estariam juntos novamente. Era tudo o que mais desejava.Â
Dormir de dia era coisa de gente preguiçosa, mas nessa manhã ela se permitiria para compensar a noite. Mais tarde reuniria os seus para discutirem a boa nova. Por enquanto descansaria e se prepararia. Abraçou a foto e se ajeitou. A última coisa em sua mente foi o rostinho da foto sorrindo para ela. Era assim que sempre se lembrava dele.Â