A cada passo que davam a mão latejava e o sangue fluÃa através da feria aberta. Â
Tiveram que fazer o restante do caminho a pé, uma distância considerável que com o ferimento de Igor e o seu próprio parecia ainda maior já que avançavam lentamente. Começava a perder as esperanças de recuperar Bento com sua sanidade intacta. Se ao menos pudessem recuperar o corpo com a centelha de vida já ficaria feliz.Â
Diana andava a seu lado, tentando puxar conversa como se nada tivesse acontecido ou como se não entendesse a gravidade de seus próprios atos. Não tinha certeza se era dissimulada ou se realmente não compreendia o significado das coisas.Â
Ela perguntava pela quinta ou sexta vez. Alexandre mantinha os olhos baixos, sem encarar qualquer deles, numa falsa aparência de resignação. Estava na verdade tendo uma conversa séria consigo mesmo.Â
Até ali tinha se mantido limpo. Um homem precisa de um limite em sua vida para ter alguma paz quando se deita para dormir, uma risca no chão que se recusa a cruzar. Até ali ele havia respeitado a sua. Nunca causar a morte de alguém diretamente era a sua risca no chão, mas ele a atravessaria sem o menor remorso com aqueles três. Â
—Eu posso fazer a dor parar... e o sangramento também. Se continuar assim vai ficar perigoso... Me deixa tentar te ajudar!Â
Ele não respondia. Não responderia de jeito nenhum! A discussão entre ele e ele mesmo estava bastante acalorada e não seria prudente interromper a linha de argumento de nenhum dos dois.Â
—Elohi! Me deixa pelo menos parar o sangramento!Â
Queria a dor latejante e o sangramento em esguichos exatamente onde estavam, seria fácil demais se esquecer de como tinha acontecido se parasse, era a natureza que sempre cultivara.Â
A tentativa eterna de não deixar as sombras que tinha saÃrem para passear. Não se surpreenderia se um dia se tornasse alguém cruel e sem nenhum limite moral, nem se isso amaldiçoasse seu povo, talvez também nem se importasse com isso quando acontecesse. Se cruzasse à  risca no chão não teria nada que pudesse segurá-lo. Nem a lembrança dos filhos, já que agora eram homens e não restava nenhum exemplo a dar nem caráter a formar, o que estava feito não podia ser refeito. Por isso lutava consigo mesmo e quase via a parte sua que reconhecia perder feio para a que costumava manter trancada no porão, com as portas bem fechadas pois não poderia contê-la se um dia se soltasse.Â
Bruno se irritou com a mudez de Alexandre com Diana. Não gostava de vê-la triste nem que perdesse sua dignidade implorando pela atenção de quem não a merecia. A arma agora não repousava mais na cintura e sim na mão, pronta para ser usada se o sujeito aborrecesse em qualquer coisa a Diana ou se perdesse sua paciência. Â
Usou o cano da arma para empurrar o objeto da obsessão de Diana. Procurando ao mesmo tempo intimidar e satisfazer o desejo de mostrar que se ela deixasse, o corpo de Alexandre seria abandonado com um furo nas costas para ser devorado por animais ou encontrado depois que já estivesse apodrecido. Gostaria muito de ver a cena.Â
—Ela tá falando! Responde!Â
Alexandre se virou brevemente para encará-lo e continuou sua marcha, em seu próprio ritmo. A arma de Bruno permaneceu no ar algum tempo e o passo foi suspenso por alguns segundo, assim como o coração e o fluxo de sangue.Â
Não sabia explicar o que tinha sentido pelo segundo que os olhos quase negros do outro estiveram nos seus. Frio intenso? Com certeza! Dor? Não sabia, mas achava que de alguma forma sim, por um segundo, sem que chegasse a identificar. Também sentiu queimar.Â
A pior parte foi o que sentiu em sua cabeça. Já tinha conhecido medo, quando era criança e aprontava, tinha medo de apanhar como quase todo garoto, mas não daquele modo. Por aquele segundo se sentiu como um animal que tivesse caÃdo em uma armadilha da qual sabia que não podia escapar e que vê a sombra do predador se aproximando, congelando e perdendo qualquer capacidade de pensar. Â
Queria aquele homem morto! Pela primeira vez desde que saiu de casa dois dias antes sentiu que as coisas podiam não correr como esperavam. Parecia que a única forma de continuarem como estavam naquele momento era com o homem a sua frente morto. Â
Não disse nada do que pensou. Seguiu seu caminho se deixando atrasar um pouco, deixando que Igor tomasse seu lugar mais próximo do rapaz.Â
Pouco antes do pôr do sol, Alexandre estacou e se recusou a dar um passo a mais. Já há algum tempo pequenas espirais de neblina subiam do solo, sinalizando o que estava adiante. Os três que o seguiam não tinham percebido a proximidade perigosa com a barreira. A arrogância de quem julga saber tudo sobre o que deseja destruir é mesmo uma coisa bonitinha de se ver. Se desse um passo atrás e deixasse que os sequestradores seguissem adiante os veria entrando na névoa do caminho do desespero de onde imaginava que nenhum dos três pudesse sair.Â
Isso chegou a passar pela sua cabeça quando viu o que para ele era uma clara linha entre o mundo comum e a barreira se aproximar, depois seu outro eu argumentou que seria o mesmo que assassinato. Seria a mesma coisa que tinham feito com seu Bentinho. Não deveria haver problema algum nisso então. Por fim decidiu parar pouco antes e deixar que fizessem o que achassem melhor. Â
Bruno quase passou, sendo impedido por Igor que parecia ter entendido.Â
—Espera! Eu acho que chegamos.Â
Os dois olharam para Diana esperando uma confirmação que ela não podia dar já que nunca estivera diante da barreira antes, só havia passado por uma porta previamente aberta por outra pessoa.Â
Alexandre já tinha começado a fazer seu trabalho. Aquilo que tinha sido feito para fazer segundo diziam. Exigia alguma concentração, não tanto quanto a fenda que tinha tentado horas antes, mas ainda assim era mais fácil se pudesse não se distrair prestando atenção na conversinha dos outros presentes ali.Â
Quase gritou. Os três pararam de falar com a surpresa. Bruno se moveu, sendo novamente impedido por Igor que disse que Alexandre estava fazendo sua parte na coisa, podiam colaborar.Â
A coisa, como Igor chamou, era abrir uma passagem segura em meio ao muro de névoa que podia levar a loucura e morte. Se perguntassem não conseguiria explicar exatamente o que estava fazendo, o mais próximo da figura que conseguia chegar era quando pensava em Lydia tricotando coisinhas para Dani, tanto tempo antes, quando nem sabia se a filha seria um menino ou uma menina e por isso fazia tudo em tons de amarelo e verde.Â
Quando errava e percebia só depois, tinha que voltar casa por casa, desmanchando o que estava feito até uma casa antes do erro, depois reconstruir tudo de forma certa.Â
Era parecido, mas diferente. Como se procurasse os fios certos feitos de vapor de água condensado e os puxasse até que começassem a desfazer a trama. Ao contrário da maioria das coisas que fazia, essa era feita de olhos abertos, as vezes mexia sem perceber as mãos, como se realmente estivesse desmanchando a coisa com seus dedos. Tentava ignorar a dor causada pela mutilação recente porque toda vez que se lembrava de que tinha uma mão direita por causa das pontadas e ficava consciente de que ela não estava mais completa, os fios se reatavam e o trabalho aumentava.Â
Por fim começou a ver a névoa em sua direção se tornar mais transparente, e o cheiro de casa o atingiu novamente. Pôde ver o brilho verde ao longe. Era curioso que aquele sempre seria o ponto de entrada, não importava de que lugar do mundo abrisse a barreira. Essas era as esquisitices que acabava amando em casa. Tudo tinha seu próprio modo de ser, mesmo que não fosse condizente com a forma como as coisas deviam ser no resto do mundo.Â
Quando o céu sempre limpo e naquele horário, dourado, se abriu diante dele e dos três as suas costas que quase tinha esquecido enquanto trabalhava pode sentir a onda de maravilhamento que vinha deles. Dois deles nunca tinham visto o lugar que queriam chamar de seu. Â
Raramente a realidade condiz com o que se imagina, a imagem formada na sua mente tende a dar uma bela surra na realidade desbotadinha e sem graça da maioria das coisas. Seja lá o que os dois tinham imaginado de casa, a paisagem que se abriu diante deles era infinitamente melhor já que os dois gritavam mentalmente isso, como crianças que conhecem o mar pela primeira vez. Diana estava emocionada. De alguma forma, aquela tarde era a mais bonita que tinha visto mesmo já tendo ido ao lugar durante uma festa. Talvez fosse a sensação de que realmente seus sonhos realizavam.Â
Com o caminho aberto, Alexandre deu espaço para que os dois Homens passassem primeiro. A moça se colocou a seu lado, esperando que ele pegasse em sua mão e a guiasse pela passagem que brilhava como se cada gota de umidade na névoa banhada pelo sol de fim de tarde fosse feita de cristal. Ele não o fez. Tinha sido ela mesma quem disse antes que não gostava de mentiras.Â