Sentado no canto de seu próprio quarto numa poltroninha desconfortável que Samanta trouxe de sua casa de solteira, pensava nessas coisas antigas e em outras para tentar superar a voz de dor do filho e não escutar os pedidos para fazer parar.Â
Pensava também no caminho do desespero.Â
Cruze a estrada árdua e estreita e terá sorte em tudo o que seu coração desejar. Era isso o que a canção dizia?Â
Se tinha uma coisa que seu garoto precisava era se sentir com sorte.Â
Seria justo deixar que ele passasse por tudo aquilo? Já não tinha sofrido o suficiente?Â
A escolha deveria ser dele, como eram as escolhas de todos os desesperados que trilhavam esse caminho, até porque era uma estrada que só poderia ser percorrida até o fim por alguém que não tivesse nada a perder, pelo menos havia sido isto que Alexandre apreendera na sua vez.Â
Quando recebeu a notÃcia da doença do bebê tinha prometido dar um jeito.Â
 Procurou a antiga canção que indicava o caminho em seus livros velhos, um especÃfico que herdou do padre Lucio.Â
“Um homem sem nada a perder subiu uma montanha qualquer.Â
Pensava em se atirar do alto, pensava em nunca voltar.Â
Com seu coração machucado, seus pés doloridos de tanto andar.Â
Um homem desesperado procura um caminho pelo qual se guiar.Â
Não desista, bom homem. Mantenha sua esperança. Â
Mergulhe na nevoa e não pare para descansarÂ
Com o sol a suas costas, sem nunca se virar.Â
Só mais alguns passos, é preciso caminhar.Â
Se persistir ira nos encontrar.Â
Cruze a estrada árdua e estreita.Â
Atravesse a bruma e terá sorte em tudo o que seu coração desejar.â€Â
Não dizia muita coisa, mas o básico estava ali.Â
Subir ao alto de uma montanha qualquer antes do anoitecer, virar na direção contraria a do sol, caminhar reto nessa direção e não parar por nada, mergulhar na nevoa e continuar andando até estar na floresta da borda, se a reconhecesse, ou até saber que estava em casa.Â
Muitas pessoas achariam que seria vergonhoso o filho da Senhora fazer esse caminho, era para estrangeiros que haviam perdido tudo, não para a casa antiga de Al Dahim, mas ele se sentia estrangeiro, após tanto tempo fugindo, se fosse pela porta da frente ela poderia se negar a ajudá-lo, ou fazer o que era preciso desde que ele ficasse, prisioneiro em sua própria casa sem nunca mais ver as pessoas que amava.Â
 Precisava de ajuda, pelo bebê, não por si mesmo. Não se importava se tivesse que se humilhar para isso. O caminho do desesperado era o certo, não podia ficar parado vendo seu filho definhar e não fazer nada.Â
Quando partiu não tinha ideia de como seria. O maior contato que tinha tido com o caminho havia sido quando se escondia na floresta e viu um homem muito magro e sujo além da barreira. Â
O homem não o viu, estava envolto na névoa. Não estava se aproximando da barreira a ponto de atravessá-la e ser resgatado, estava como que circundando rente a ela.Â
Alexandre tentou chamar a atenção do homem, mas ele não podia vê-lo. Tinha que tomar a decisão de ir chamar alguém e perdê-lo de vista ou fazer o que pudesse.Â
Não pensou muito, dissipou a névoa e se deixou ser visto pelo homem. Era pouco mais velho que ele, quase um garoto. O estrangeiro se deixou amparar pelo menino de dez anos que encontrou naquela floresta que não estava ali até então. Depois de levá-lo aos curandeiros, Alexandre esperou do lado de fora da sala de reuniões até que a mãe pudesse recebê-lo.Â
Algum sermão sobre não interferir no caminho do desespero, mesmo que ele estivesse próximo e moribundo. Cada um devia trilhar seu caminho sozinho ou morrer tentando. Passada a bronca ela elogiou o fato de ter conseguido dissipar a névoa e servido de farol ao homem. Era impressionante na idade dele, um dia seria um grande Senhor para aquele povo.Â
Quando decidiu ir não disse nada a esposa. Só que voltaria com a solução que Diego precisava. Ela devia ter se sentido desamparada, natural que tivesse aberto seu coração para outro pouco depois. Na mente dela ele se tornou não confiável em caso de crises.Â
Escolheu o morro onde havia uma antena de transmissão que podia ser visto da janela dos fundos de sua casa, talvez assim fosse mais fácil se lembrar pelo que fazia aquilo. Chegou pouco antes do pôr do sol, respirou duas ou três vezes antes de entrar na barreira.Â
Não estava preparado para a névoa.Â
Ao menos essa tinha sido a experiência dele. Os gritos, o choro, o silêncio ao redor, a imagem de tudo o que já tinha feito de que se envergonhava, tudo o que você mais quisesse esquecer saltando da memória e sendo mostrado, revivido, assistido sem que pudesse ser modificado porque já tinha acontecido e o passado não pode ser refeito.Â
Entendia por que alguns se desviavam, seguir em frente era difÃcil. Olhar para o lado ou seguir outra direção seria se perder de si mesmo para sempre e ainda assim era o que mais queria fazer para não ter que ver o que via. Â
Entendia agora por que os colegas diziam que a floresta não era lugar que se visitasse sozinho, estava cheia de almas perdidas. Acreditava que alguém poderia caminhar naquele inferno branco por dias, morrer de sede, fome ou cansaço e continuar caminhando por toda eternidade sem perceber que sua luta terminou e era o grande perdedor.Â
Mantinha o filho como farol. Não cedeu ao desejo de dissipar a névoa, não tomou os atalhos que poderia por causa de seus dons. Não percebeu quando o cenário começou a mudar, quando o branco infinito e gasoso se misturou ao verde e marrom sólidos. Numa troca de passos se viu completamente na floresta ensolarada, com os pés feridos e os sapatos destruÃdos, as roupas velhas e rasgadas e arranhões onde quer que olhasse. Â
Não sabia de muito depois disso. Em sua próxima lembrança estava na casa de cura, pedia água e o curandeiro próximo mandava que fosse devagar. A mãe foi vê-lo, não se lembrava da conversa, lembrava do abraço e de algo sobre ele ser um louco incorrigÃvel. Não sabia em que momento tinha falado sobre o tipo de ajuda que precisava, mas tinha acontecido Era o único caçador ali, que soubesse. Â
Dois dias depois tinha o vidro azul com o remédio e o acordo de voltar a cada ano para abrir os portões durante a Festa. Três dias depois estava com a famÃlia novamente. Não tinha ideia de quanto demorou, só que o bebê parecia mais debilitado e que depois que tomou seja lá o que estivesse no vidrinho parecia ter ressurgido dos mortos.Â
Não diria nada ao filho sobre o caminho do desesperado, não podia arriscar tanto.Â
Deixou que os pensamentos corressem livres de novo. Bento havia adormecido e parecia não precisar dele naquele momento.Â