A porta estava fechada sem tranca.Â
Samuel ocupava o sofá pequeno enquanto Diego e Clara estavam sentados lado a lado no sofá maior, de mãos dadas. A conversa, que era pouca e quase sussurrada cessou quando o viram passar pela porta. Â
Três pares de olhos fixos em seu rosto, querendo dizer muita coisa e não dizendo nada. Dani não estava com eles. Tinha escolhido ficar em um hotel, terminaria de cuidar das coisas da mãe no dia seguinte e voltaria para sua própria vida. Â
Por que estavam todos com aquelas caras? Mesmo com o funeral da manhã e o cansaço da tarde, aquelas expressões quase idênticas não tinham muito a ver com a enxurrada de merda que aqueles últimos dias tinham sido. Antes que perguntasse podia sentir a resposta.Â
Não esperou que Samuel terminasse. Apenas seguiu e procurou pelo resto da casa, primeiro só com o olhar, abrindo e tornando a fechar cada porta, depois chamando alto o nome do menor. Mesmo sabendo que não teria nenhuma resposta, continuou chamando até que o filho do meio o alcançasse na porta que dava para o quintal gramado nos fundos, até o quartinho de despejo apartado da casa foi verificado. Sabia, mas precisava ter certeza de que não se enganava.Â
—A gente tentou te dizer, ele é assim... fica uns dias bem e depois some. É o normal do Bentinho... Esse dia foi difÃcil para todo mundo, descansa e amanhã a gente vai nos lugares que ele costuma ir.Â
Alexandre encarou Samuel com mais raiva no olhar do que podia disfarçar. Que tipo de homem o garoto achava que ele era para deixar que um deles passasse a noite perdido sabe Deus onde enquanto dormia sossegado?Â
Não respondeu. Não queria dizer nada de que fosse se arrepender depois. Â
Bento tinha prometido. Não fugiria assim! Além de Alexandre ter a convicção de que seu menino não iria querer decepcioná-lo.Â
Entrou no quarto que Bento vinha ocupando, não havia nada ali. Paredes em branco. Só vestÃgios de sensações muito velhas de crianças, boa parte nem era de Bentinho. Ali seria inútil procurar qualquer indÃcio do filho. Precisava ao menos saber por onde começar a buscá-lo.Â
Fechou a porta do quarto das crianças, foi até seu próprio quarto. Trocaria de roupas e sairia atrás do garoto nem que fosse as cegas.Â
Sobre sua cama encontrou as roupas que seu caçula havia tomado emprestado na noite anterior. Limpas, passadas e dobradas. As roupas velhas e puÃdas com que tinha voltado ao lar haviam desaparecido.Â
Alexandre se sentou ao lado da pilha de roupas que o filho usava naquela manhã, tentando entender o que significava. Bento podia ser tudo o que os outros filhos vinham dizendo, mas não mentiria para ele! Não da maneira que conversaram pela manhã! Não depois de prometer que ficaria.Â
Estendeu a mão e tocou o moletom vermelho no alto da pilha, quase como uma caricia.Â
Foi invadido por um milhão de sentimentos contraditórios que não eram dele.Â
No momento seguinte não era mais ele mesmo e sim Bento naquelas últimas horas que havia passado em sua casa.Â
Estava bem até um pouco depois que Diego, a esposa e Samu saÃram, então foi invadido por uma angústia da qual não sabia o nome. Ficou parado por algum tempo diante da janela da sala, ao lado da mesa de trabalho do pai. Olhando a rua. O peito queimando. Achou que morreria, que o coração explodiria, que anos de abuso de si mesmo vinham agora cobrar o preço. Â
Correu para o quintal dos fundos, de repente só precisava de ar. Ali fora era mais fácil respirar. Achou que iria melhorar se ficasse ocupado, por isso decidira lavar roupa, tinha feito a mesma coisa no dia anterior, quase não havia o que lavar, exceto o que tinha no corpo. Â
Tirou a roupa ali mesmo no quintal e a jogou na máquina, ficando só de cuecas. Andando de um lado para o outro dentro de casa, não conseguindo ficar muito tempo quieto em parte alguma.Â
O corpo doÃa, o coração doÃa. Bento andava como um motor enguiçado, se movia, fazia barulho e não estava realmente funcionando.Â
Não sabia o que exatamente passava pela cabeça do filho, só conseguia ver as emoções, só sabia que era uma ideia obsessiva e que era dolorosa.Â
Pelas últimas horas em que andou fazendo tarefas em casa, deixando tudo organizado, Bento vertia lagrimas grossas pelo rosto, rangia e trincava os dentes e chegou a se agredir e arranhar. Então cedeu.Â
Colocou suas velhas roupas, deixou as do pai arrumadas, como se sentisse que qualquer coisa menos seria roubo. Não ousou cruzar a porta, abriu a janela do quarto do pai e saiu.Â
Alexandre se aproximou da janela ainda aberta e ela gritou para ele o que Bento sentia ao correr os dedos por seu trinco interno. Ele não queria ir, não queria quebrar a promessa, mas não conseguia evitar. DoÃa muito, o grito chamando era muito alto, se não atendesse morreria e ele teve medo.Â
Fechou a janela, jogou as roupas que vestia em um canto e colocou as que o filho tinha tido tanto cuidado em deixar em ordem, usando como um escudo e um radar que esperava que o guiasse a um Bento assustado e enfraquecido. Esperava conseguir alcançá-lo antes que fizesse algo ruim a si mesmo.Â
Passou pela sala percebendo a ansiedade dos outros dois filhos e da nora. Respirou fundo. Tinha urgência, mas também devia alguma explicação a famÃlia que estava presente.Â
—Eu vou atrás dele. Por favor fiquem dentro dessa casa. Eu volto com o seu irmão... Di, se eu demorar muito tudo o que você precisa saber está no caderno vermelho no meu armário. A gente já conversou sobre isso. Â
—O senhor sabe onde procurar ele? Â
—Não, pela cidade toda se for preciso, não importa!Â
—Eu vou com o senhor! Já fiz esse papel antes.Â
Alexandre pensou um pouco a respeito. Preferia os filhos juntos e seguros, tinha pensado em trancar a porta por fora, fazendo com que não conseguissem sair, mas não era a coisa mais inteligente a fazer, muita coisa podia se complicar se o fizesse. Rejeitar a proposta de Samuel poderia magoá-lo e realmente precisava de ajuda, ao menos para saber por onde começar.Â
Saiu e parou na varanda, respirando. Tentando ouvir a voz na mente do filho acima do barulho da multidão. Pouco depois Samuel apareceu calçado e agasalhado a seu lado. Alexandre segurou o pulso do filho por um momento, deixando que soubesse tudo o que tinha visto do dia de Bento. Samu apenas balançou a cabeça. Entendia, mas não via diferença entre aquilo e tantas outras vezes que tinha tentado ajudar o irmão. Rezou internamente para que encontrassem o irmão bem, não disse o que temia para não alarmar ainda mais o pai.Â
Caminharam em silencio por algum tempo. Samuel direcionando o caminho. Era o inÃcio de uma noite longa.Â