Crises de vomito, gemidos e súplicas para que fizesse a dor passar, sabia o que ele sentia pois ouvia os gritos de sua mente, que a boca e a garganta enrijecida não poderiam soltar. Cada fibra do corpo tencionada, já tinha entregado o balde ao filho quatro vezes. Todo o quarto cheirava a suor azedo.Â
Quase doÃa nele, se pudesse dividir a dor para torná-la suportável o faria, mas isso não era algo que ele pudesse fazer.Â
Lutava contra a tentação de ligar o rádio para manter a voz do filho fora de sua cabeça. Escutaria tudo o que fosse preciso porque sentia que de certo modo tudo pelo que o filho passava fosse sua culpa. Se tivesse mais coragem, se não obedecesse ou baixasse a cabeça, o que poderia acontecer além de se tornar um exilado? Deveria ter ficado na casa que escolheu, não se deixar obrigar ao lugar que lhe impunham!Â
Agora ao menos conseguia se focar na voz do filho e ignorar todas as outras até que se tornassem apenas um chiado desagradável ao fundo, como interferência numa rádio mal sintonizada. Durante muito tempo seria impossÃvel.Â
Até deixar Al Dahim não sabia o quanto o mundo poderia ser barulhento. Ouvia as vozes de outras pessoas em sua cabeça, mas o lugar de onde viera era pequeno, com pouca gente e a maioria não pensava assim tão alto.Â
Passava a maior parte do tempo que tinha disponÃvel longe de outras pessoas, na biblioteca ou escondido da floresta da borda onde a maioria das pessoas de lá evitavam a todo custo ir por causa das mortes e dos sequestros que aconteciam entre sua gente antes da barreira ser erguida. Os mais velhos diziam que era povoada de fantasmas que nem sabiam que eram fantasmas, gente que estava ali quando a terra deles foi elevada e gente que tentava chegar a eles e não suportava o caminho do desespero. Para Alexandre era só uma floresta com seus animais e céus claros, livres de pensamentos intrusos de outras pessoas que nunca pediam permissão para entrar em sua cabeça.Â
Naquela época o barulho era constante e não sabia da música. Não havia muita música exceto nos dias da Festa, e eram os melhores dias, mesmo que o lugar ficasse tão lotado que era praticamente impossÃvel andar sem esbarrar em alguém.Â
Gente vinha de toda parte. Quem tinha ouvido falar deles por tradições de famÃlia, quem vinha tirar a prova se a lenda era verdadeira, os filhos de estrangeiros nascidos ali e mandados viver com os pais por acordo firmado antes de seus nascimentos.Â
Quando uma sociedade é isolada como Al Dahim foi tanto tempo antes, uma coisa curiosa tende a acontecer e havia acontecido com eles, a taxa de natalidade cai de maneira assustadora. Por isso a Festa fora criada.Â
Sete dias em que os portões ficavam abertos, em que a névoa se tornava menos espessa e permitia a passagem dos estrangeiros. Aqueles que conseguissem gerar filhos durante as festividades teriam o direito de escolher uma dádiva. Vencer uma guerra, herdar uma fortuna, se tornar um rei, o que quisessem. Â
Durante o tempo em que durassem as festividades, nenhum estrangeiro seria morto ou ferido, nem mesmo julgados por suas faltas desde que a Senhora e sua linhagem não fossem feridos. Qualquer assunto dessa natureza só poderia ser tratado se a Festa estivesse oficialmente terminada, o que fazia com que alguns crimes já tivessem saÃdo impunes no passado, agora os portões só tornavam a abrir após verificado se não havia danos a punir.Â
Os estrangeiros costumavam respeitar as regras. Ninguém que procura uma dádiva quer não viver suficiente para usufruir dela.Â
Nos dias de festa as lições eram suspensas. Podia ficar com as outras cinco crianças de idades variadas, todos filhos de estrangeiros cujos pais não exigiram sua criação. Duas meninas, quatro meninos contando com ele, o único que havia nascido de gente dali mesmo, único com sangue que remontava ao povo antigo. Isso fazia dele um estranho entre os iguais. Â
Durante a festa as castas eram esquecidas, todos eram iguais, ninguém trabalhava, nem mesmo a Senhora e uma pessoa do povo comum poderia festejar com um membro do conselho sem nenhum receio, poderia falar o que quisesse, poderia até brigar. Era um momento esperado por todos.Â
Quando saiu para o mundo comum vinte milhões de vozes o atingiram ao mesmo tempo. Era difÃcil até respirar, tamanho o barulho do lado de dentro de sua cabeça. Descobriu que as pessoas pensavam alto para poderem se escutar no som intenso da cidade que nunca parava. Descobriu também que poderia deixar o barulho dos outros do lado de fora se deixasse o barulho urbano maior e mais alto dominar. Quase enlouqueceu com tanto barulho fora e dentro até chegar ao orfanato.Â
Na época do orfanato descobriu que a música conseguia expulsar as vozes. Foi o padre quem lhe deu de presente no primeiro natal um rádio que ele deixava no gabinete de trabalho e que podia ouvir a qualquer hora quando ficava muito difÃcil. A coisa não funcionava mais, mas ainda estava na prateleira atrás da mesa de trabalho, como lembrança de dias felizes.Â
Procurar pelo pai num lugar tão grande não foi fácil e Alexandre desistiu da ideia antes de completar um ano no novo mundo. Não encontraria e se encontrasse nada garantia que estava sendo esperado. Não sabia nada sobre ele, nem que nome usava agora ou se sabia de sua existência.Â