Enquanto subia pelo caminho de terra que já se tornara seu velho conhecido, parava de quando em quando para verificar se a medalha do santinho ainda estava sob a camisa. Podia sentir o metal morno contra a pele, mas o costume de verificar se tornou uma espécie de tique com os anos.Â
Encontrou com Igor pouco antes de chegar à fronteira de sua casa com o lugar em que estava. O companheiro teve que gritar para tirá-lo dos próprios pensamentos. O mundo comum costumava ser um pouco perturbador à s vezes, quando as pessoas gritavam mais alto, principalmente perto de grandes cidades. Tinham escolhido aquele ponto de encontro pela praticidade. Â
Igor pediu para atrasar a volta em dois dias, queria estar no mundo comum no dia do aniversário da filha. Uma senhora de noventa e seis anos que ele costumava visitar sempre que tinha alguma folga. Ela não sabia quem ele era, há muito tempo que as lembranças tinham ido embora e à s vezes o confundia com um filho ou sobrinho ou até namorado que tivesse tido ao longo da vida, mas ainda era a única filha dele e mesmo de longe cuidaria dela.Â
Belter tinha suas próprias questões para pensar. Uma em especial o atormentava faz tempo. A bolsa nas costas estava um pouco pesada, carregada com as roupas que tinha usado no lugar comum e alguns livros que levaria para o pai. As roupas que usavam estavam desconfortáveis. Não sabia como Igor escolhia a jaqueta de couro sempre e parecia bem com isso.Â
Quando chegaram à barreira, fez a medalha surgir de sob o tecido e fez a oração que o pai ensinou para ativar a chave escondida no objeto. Era sempre bonito ver a passagem se formando. O cheiro de verde os atingiu, mostrando que realmente estavam indo para casa.Â
A essa hora alguém deveria ter corrido ao pai e dito que eles estavam voltando, o homem grisalho e forte pararia o que estivesse fazendo e estaria no fim da passagem ou viria logo ao encontro deles quando terminassem de atravessar, era o que sempre acontecia.Â
Os dois irmãozinhos foram mais rápidos. Rebeldes como o pai, abandonaram as aulas e deixaram o professor gritando para correrem ao encontro de sua pessoa favorita.Â
Maison escalou o corpo do irmão até que ele a pegasse no colo e Malike, um pouco mais quieto que a irmã, fez questão de apanhar a bolsa quase maior que ele para mostrar o quanto tinha crescido e ficado forte nos meses de ausência de Belter.Â
O pai veio em seguida. Tomando delicadamente a bolsa do caçula e carregando ele mesmo, abraçando o filho que voltava e tirando a garotinha de seus braços para devolvê-la ao chão.Â
—Filha, Belter deve estar cansado...Â
Repreendeu rindo quando Maison tentou voltar a ser carregada pelo irmão. Passando ele mesmo um braço em torno dos ombros do filho depois de cumprimentar e mandar que as crianças fizessem o mesmo a Igor.Â
Assim que devolveram os pestinhas a um professor nervoso e temendo ser repreendido por deixar as crianças soltas, Elohi arrastou o filho consigo para seu gabinete particular na casa-forte, onde trabalhava.Â
Deixou que o filho fechasse a porta como tinha se tornado seu costume para não trancar alguém por acidente.Â
Tinha preparado previamente uma pequena refeição para o filho, frutas e pão. Belter comeu em silêncio, procurando em si as palavras que precisava para pedir a permissão de que precisava ao pai e se esquecendo de contar o que tinha se passado na viagem. Nada demais na verdade, o mesmo de sempre. Dois resgates, alguns oferecimentos de verdade e uma reunião com a pessoa que estava administrando as empresas que Belter tinha herdado da mãe e permitiam que o trabalho continuasse.Â
Estar calado depois de dias cansativos não era nenhuma surpresa. Estar quieto, sem gestos expansivos e sem bater os pés era uma bandeira que seu pai saberia reconhecer a quilômetros.Â
—Bento, você está ouvindo?Â
O pai tinha falado algo sobre a seca do último ano e como tinham resolvido. Ele sabia por que ouvira as palavras ao longe, não estava com a cabeça nisso.Â
O pai ainda o chamava da mesma forma, não se acostumava com o novo nome, mas era discreto. Belter respirou fundo e se virou para encarar o pai, não sabia se era uma boa hora, mas sua coragem não aumentaria se esperasse mais.Â
Não sabia como começar, como colocar em palavras. Imagens funcionavam melhor quando queria transmitir mensagens ao pai. Sentado na cadeira feita de palha trançada ao lado do Senhor, baixou os olhos antes de estender a mão pedindo a do pai.Â
Elohi viu as pessoas que Bento tinha visto dentro da barreira, as imagens passaram em desfile e terminaram com o homem do acidente.Â
—De novo ele? Você tem que tirar isso da cabeça, Bentinho! Não!Â
O pai tinha perdido um pouco a compostura, erguera o tom de voz só um pouco. Belter entendia. Seria sua terceira tentativa e quase tinha morrido na segunda. O pai quase tinha ido atrás dele na névoa e largado tudo o que necessitava de sua presença, até os gêmeos.Â
Belter acenou com a cabeça, concordando e permanecendo calado. Brincando um pouco com a comida.Â
—Por que ele é tão importante para você?Â
Bento deu de ombros, pensando antes de responder para só depois encarar o pai novamente.Â
—Ele está a tanto tempo lá, não parece certo...Â
—Não é, mas ele tem que seguir em frente sozinho. Você sabe disso, filho.Â
—Eu fico pensando se eu não conseguisse... Eu quase não consegui...Â
A última parte veio em um sussurro, carregada de um pouco de vergonha. Tinha ido sem falar para ninguém, assim que voltou de uma viagem. Igor quem tinha avisado ao pai.Â
O coração de Elohi ficou apertado. Quando tinha sido a vez de Bento, pensou em ir ele mesmo atrás do filho.Â
—Vai! Se precisa mesmo... Vai sabendo que eu vou atrás se achar que está demorando muito. Me promete que se ele não reagir, você o larga lá e volta para gente? Â
—Eu volto! Se não der certo, procuro ele novamente o ano que vêm...Â
—Você precisa mesmo tirar isso da cabeça. Quando?Â
—Não, filho! Hoje não. Me deixa acostumar com a ideia?Â
Belter baixou ainda mais a cabeça, fazendo um aceno leve, conversando consigo mesmo.Â
Elohi concordou. Era tempo bastante para que o filho se lembrasse de quem realmente era e estivesse bem. Arrependeu-se de ter deixado, mas era tarde demais para retirar. Esperava que não tivesse jogado o filho para se perder novamente.Â
Estar dentro da névoa não era agradável. Toda angústia surgia novamente. Tinha que encarar seus novos traumas agora, de pessoas que não pode salvar, o passado quase não incomodava mais, o problema era mais o futuro que era incerto e causava ansiedade. Era esse o truque que a névoa tinha usado que o fizera parar. Da outra vez o pai tinha acendido um milhão de tochas de fogo verde, fazendo com que soubesse a direção. Quase tinha se juntado ao homem do acidente como o pai o chamava.Â
Tinha a sensação de que se não conseguisse fazê-lo seguir, não poderia seguir também. Às vezes era difÃcil deixar alguém para trás. Encontrou outros, apesar de ter um foco fixo. Não podia deixá-los também. Como deixaria? Eram pessoas tentando encontrar seu caminho.Â
O problema com a névoa era que não dava para saber que direção estavam seguindo. Olhou em volta e não encontrou o brilho esverdeado nem qualquer tocha que servisse de norte. Devia estar bem no meio e já havia uma fila de gente andando atrás dele. Passou por sua cabeça que ele servia como a tocha dessas pessoas, se perdesse seu caminho faria com que eles tivessem se perdido uma segunda vez, como lidar com esse tipo de peso.Â
O pai tinha feito bem fazendo com que descansasse, o caminho do desespero era árduo, mesmo que fosse sua terceira vez e desconfiava que não seria a última. Já tinha deixado outros dois que não puderam se mover para trás. Um homem que se sentia responsável por deixar a mãe doente e ter que trabalhar e outro que abandonou uma moça grávida e nunca conheceu a criança. Depois voltaria para resgatá-los. Esse trabalho não ia acabar nunca!Â
O coração pulou uma batida quando o avistou de longe, como alguém que espera o namorado e o vê descer do ônibus. O homem do acidente, na mesma posição que o deixou anos antes, ainda olhando sem acreditar e sem poder mudar o que tinha acontecido.Â
Bento se aproximou dele, deixando os outros perdidos esperando um pouco. Sentou-se ao seu lado novamente, como já tinha feito duas vezes até ali. Não falou nada, só apreciou a cena de destruição por algum tempo. Começou a achar que tinha sido um erro voltar por causa dele. Ele nunca tinha sequer percebido que tentava ajudar.Â
Começou a bater as mãos na calça, tentando eliminar uma sujeira imaginária. A neblina era um tanto asséptica, nunca tinha encontrado uma folha seca ou grãozinho de terra dentro da barreira, mas o gesto já estava bastante enraizado para ser deixado de lado logo agora.Â
Os olhos do homem do acidente se moveram um pouco, captando o movimento. Será que ele finalmente o via?Â
Fez como era seu costume, puxou os joelhos até quase o peito e apoiou os braços neles, sentindo que podia ser visto ao menos na visão periférica do homem. Ficou ali com ele algum tempo e percebeu que os olhos mudavam do carro em frangalhos para ele sem que o homem quisesse.Â
—Por que você continua aqui?Â
A pergunta saiu sem que fosse muito pensada. Era curiosidade mesmo, por que se torturar até a mente quebrar por um acidente? E mesmo depois de tanto tempo continuar sem conseguir seguir. Â
—Eu matei aquelas crianças. Foi no dia em que tive um problema bobo no trabalho, sai nervoso, nem tinha tanto motivo... e estava atrasado... mandando mensagem para a esposa avisando que chegaria logo, nem vi o outro carro até ser tarde demais...Como posso ir embora e deixar assim?Â
—Eles já foram faz tempo, isso daà é uma imagem e você que criou. Vamos embora, não tem mais nada o que fazer aqui. Já sofreu suficiente.Â
—Você não entende! Fui eu quem matou aquelas crianças... eles gritaram por ajuda, eu fui embora. Como eu pude ir embora? Eu que deixei elas lá.Â
—Já tem bastante tempo, ficar aqui agora não vai resolver. Você precisa seguir em frente. Eles nunca iriam querer te ver penar por tanto tempo. Vem comigo!Â
—Eu acho que te conheço...você sempre passa aqui. Quando passa sempre está rasgado e de cabelo curto, mas ainda é você.Â
Bento olhou para as próprias mãos, então era assim que funcionava? Uma parte sua sempre estava zanzando dentro da barreira desde sua primeira visita. Por isso não podia deixar para lá, um pedaço dele não tinha ficado livre. Talvez conseguisse ficar inteiro novamente se conseguisse fazer com que o homem o seguisse.Â
Estendeu a mão como já tinha feito duas vezes antes.Â
—Vamos, eles não estão lá de verdade e com certeza já te perdoaram, só falta você seguir em frente.Â
—Fui eu quem matou eles...Â
Era inútil. Ele não estava pronto para deixar aquilo para trás. Tudo bem, tentaria novamente dali há algum tempo.Â
—Espero que fique bem um dia, amigão! Eu vou indo. Volto logo mais e manda lembranças quando me vir de cabelo raspado por aqui novamente.Â
Começou a se levantar. O gosto de derrota tomando conta de sua boca e garganta. Com vontade de bater no homem e arrastá-lo a força para fora daquele nevoeiro e sabendo que não havia nada que pudesse fazer. Começou a caminhar para longe, até que parou antes de cruzar os destroços dos dois carros para onde o homem olhava eternamente e voltou.Â
—Eles ficaram bem no fim das contas, sabe? Estão esperando lá fora para conversar.Â
Seria errado mentir assim para fazê-lo ir? Funcionária?Â
De certo modo era o que acreditava.Â
O homem o encarou, sabia que era mentira.Â
—Por que você se importa?Â
—Você merece seguir em frente, como todo mundo. Olha em volta, ninguém merece ficar no vazio tanto tempo... Vem comigo!Â
Não percebeu, mas acabou se colocando entre ele e a visão paralisante. O homem até tentou se desviar das pernas de Bento e acabou se fixando em seu rosto.Â
O homem acabou estendendo a mão para que Bento o ajudasse a levantar. Â
—Você parece precisar disso mais do que eu...Â
Era verdade, o homem estava em equilÃbrio com sua dor, Bento não.Â
O homem se juntou aos outros e seguiu Bento até o brilho esverdeado. Â
Bento deu o último passo e viu as sombras desaparecerem. Logo mais voltaria, tinha que ajudar os que deixou para trás. O último a desaparecer foi o homem que tinha feito com que entrasse novamente. Sussurrou um obrigado e sumiu no ar.Â
Bento respirou e voltou para casa, pensando se estaria completo um dia novamente.Â