O homem que fazia seus documentos estava morto já havia alguns anos. Natural que estivesse, já não era tão jovem quando o conheceu e em sua última visita já tinha idade avançada. Pena, era um bom homem e trabalhava direito.Â
Carlos havia assumido os negócios do pai. Alexandre não era o único cliente fixo. A informação prestada sem que fosse solicitada poderia levantar perguntas, mas tanto cliente quanto prestador de serviços sabiam ser bastante discretos e na verdade Alexandre não se interessava muito sobre quem os outros clientes poderiam ser. Toda pessoa nascida em sua terra seria como ele. Existiam outras terras, outras histórias e outros motivos. A clientela deveria ser mais fiel e mais numerosa do que imaginava.Â
Carlos evoluiu o negócio do pai, aliando tecnologia, algum acesso privilegiado a bancos de dados do governo e um pouco de audácia. Não inventava identidades e nomes como o velho Dias fazia, criava identidades novas com nomes e perfis de pessoas desaparecidas em cidades distantes que se parecessem fisicamente com o cliente. Nome de pai e mãe entre falecidos sem famÃlia. Se um dia alguém perguntasse era só um homônimo. Â
E como ninguém hoje em dia existe sem um bom rastro digital, a nova vida vinha com perfis em redes sociais, contas de e-mail, fotos nas redes, tudo perfeitamente criado para parecer ter o tempo certo. Ele até se preocupava em criar fotos que dessem veracidade ao caso, da infância e de amigos postadas em dia das crianças e feriados. Â
Nem todos que usavam seus serviços eram pessoas que demoravam a envelhecer, alguns eram só pessoas comuns tentando recomeçar a vida em um lugar distante. O que ele oferecia era a chance de tornar essa nova vida real o suficiente para que não precisasse ser abandonada novamente, desde que o cliente pudesse pagar o que ele pedia, muito mais do que o pai costumava cobrar. Â
Desde o momento em que entrou na loja, uma mistura de papelaria e relojoaria que parecia ter parado no tempo, Carlos fixou os olhos em Alexandre de uma maneira incomum.Â
Aquele era o cliente de quem o pai falava. O velho sempre contava do rapaz de pele morena, olhos e cabelos escuros que aparecia de vez em quando. Principalmente, falava do que ele podia fazer e de já ter trocado serviços pelo pagamento da identidade criada. Era o que pretendia fazer.Â
Quando Alexandre perguntou pelo velho Dias, Carlos não hesitou em responder:Â
—Deus levou faz alguns anos, mas eu sei por que você está aqui, meu querido. Crio a vida mais real e palpável que você já usou desde que você me faça um favorzinho, nada demais para você...Â
—Eu ando sem tempo ultimamente, tenho que colocar as coisas em ordem, se for rápido posso ver o que faço. Se não der, você vai aceitar o pagamento tradicional?Â
—Não posso recusar trabalho de cliente fiel. Eu prefiro se puder me ajudar com meu probleminha. O caso é o seguinte, minha esposa acabou mexendo no meu celular e vendo umas conversas minhas com amigas, entendeu tudo errado e meio que está transformando minha vida em um inferno, diz que vai embora e tudo. Faz ela esquecer e sua vida nova fica pronta o quanto antes.Â
Alexandre apertou um pouco os olhos encarando o criador de identidades. Estava difÃcil isolar as vozes, mas conseguia captar duas que estavam mais próximas, ambas quase gritando.Â
Carlos que sorria esperando sua resposta e gritava o quanto era um babaca com a moça que escolheu para esposa. Aquele não era seu primeiro vacilo e não seria o último. Relação fadada a acabar. A outra voz estridente era do filho a seu lado praticamente implorando para que recusasse. O pedido não era direito, poderiam procurar outra pessoa para resolver os documentos do pai, devia haver outros...Â
—Consegue resolver meu caso em quantos dias?Â
—Resolve o meu probleminha e pode vir buscar seus documentos amanhã mesmo, o resto entrego em duas semanas, é um pouco mais complicado...Â
—Tudo bem. Me dá uma foto e o nome da sua esposa por escrito. Amanhã passamos aqui. Â
Apertou a mão do vendedor e saiu sem dizer mais nada, ouvindo o filho segui-lo e recriminá-lo por aceitar a proposta. Quando chegassem ao carro explicaria que faria estritamente o que o homem pedira, a esposa esqueceria de tudo o que tinha lido no aparelho, mas o sentimento de frustração com o relacionamento seria mantido intacto em seu lugar. Nos próximos dias ela pararia de falar sobre divórcio, pararia de acusá-lo sobre a traição e até tentaria mais uma vez ter fé na barca furada que o relacionamento era.Â
Alexandre tiraria da casa mental da mulher tudo o que se relacionava a lembrança da traição descoberta, mas como não era um ladrão e sim um caçador e tinha sua própria moral como guia, deixaria um presente no lugar de que ela precisaria logo mais. Deixaria uma pequena ideia de coragem e autossuficiência, no próximo vacilo de Carlos ela não teria poréns a rever, levantaria e sairia sem sofrimento algum e seria bastante feliz sozinha ou com outro que escolhesse.Â
Ou não explicaria nada. Nunca tinha prestado contas de seus negócios a ninguém, nem a esposa. Por que diabos teria que convencer os filhos de que o que decidia era o que achava correto?Â
Estava irritado e preferia se calar por hora para não descontar em Diego. Ao entrar no carro do filho só conseguia pensar que seria mais uma noite em que dormiria pouco ou quase nada.Â
No caminho começou a sentir uma agonia estranha. Lydia não saia de seu pensamento. Talvez estivesse chamando ou precisando de ajuda. Talvez fosse só ele esgotado, tentando se adaptar as mudanças indesejadas e deixando sua mente voltar ao que conhecia como lugares comuns de sua vida. Lydia estava lá há muito tempo, talvez por isso pensava tanto na velha amiga.Â
A ferida gritava. Pelo menos não sangrava desde a tarde em que havia voltado. Estava uma coisa feia de ver. Úmida, ramificada, vermelha, amarelada, com bordas saltadas, dolorida e quente.Â
 Estava um pouco febril e não sabia se era por causa do cansaço ou se tinha a ver com aquele maldito talho aberto e quase se arrependia de não ter deixado que os curandeiros de seu povo cuidassem do caso. Pensando claramente veria que dois dias a mais haviam custado vinte anos, se esperasse mais, quanto tempo teria perdido?Â
Recostou-se e fechou os olhos com os braços cruzados diante do corpo sob o cinto de segurança numa tentativa de proteger um pouco a ferida do atrito. Â
Assim que pegasse seus documentos novos iria tratar de ir ao médico. Diria que caiu sobre um vergalhão solto em casa ou qualquer besteira assim, faria com que acreditassem se fosse preciso.Â
Quando chegasse em casa, pediria a um dos meninos que ligasse para Lydia. Só para conversar e ter certeza de que estava bem. Já sabia que ela o chamaria de velho carente. Não esperava menos dela.Â