“Não há dúvidas de que o que vou
contar é inverossímil, no entanto, peço que acreditem em mim, pois tudo depende
disso.”
“Como vocês sabem, tenho orgulho de
dizer que meu nome é Roderick, sou um cavaleiro, assim como meu pai já foi um
dia e o pai do meu pai também, esse ciclo continua até os tempos imemoráveis de
minha linhagem. Nossa ocupação é ancestral e somos bons nela, cinco homens
armados não seriam páreo nem mesmo contra as mulheres idosas de minha família.
Espada, escudo e armadura são as coisas que mais utilizamos em toda a nossa
vida, esses itens são extremamente necessários para que um dos nossos possa se
sentir vivo. Digo isso, não como um meio de enaltecer a mim ou aos meus
ancestrais, mas sim para ilustrar o quanto é assombroso o que lhes direi.”
“Já faz oito anos que sou o
principal guarda do harém real, nunca faltei a esse compromisso nem mesmo por
um dia, assim como nunca deixei que algo de ruim acontecesse às escolhidas do
rei, isto é, nunca havia deixado acontecer antes de ontem. Minhas capacidades e
minha seriedade são conhecidas em todo o reino, não há nenhum cidadão que
duvide que eu daria minha vida para proteger a dessas mulheres. Estou aqui
hoje, sendo ouvido, praticamente julgado, serei tachado como louco, mas não
mudarei meu depoimento. Não minto, nunca menti e nunca mentirei. Se mantenho
meu depoimento é porque ele é a mais pura verdade. O harém não foi atacado por
nenhum dos nossos reinos inimigos, dizê-lo é cultivar uma mentira que trará uma
guerra tola, haverá mortes de ambos os lados e a paz, que todos gozamos faz
muitos anos, se desvanecerá se a verdade não for ouvida.”
“Vossa Majestade, ouça-me. Eu, que
sou seu mais leal cavaleiro, que venho da família que mais prestou serviços a
sua, que em diversas vezes lhe provei a minha lealdade, estou em vossa frente
afirmando o que todos dizem ser tolice. Ouça a voz da verdade e deixe a
incredulidade se esvair do seu ser. Os seus servos já devem ter adiantado
grande parte do que tenho a dizer, mas, saídas da minha boca, palavras que soam
como mentiras ou loucuras, ganham apoio na verdade e passam a ressoar com o eco
da razão. Darei meu relato de tudo que aconteceu ontem.”
“Rendi o guarda da madrugada às seis
da manhã, no horário padrão, assumi o posto e me pus em alerta. O dia parecia
comum, como todos os outros que passei nesse serviço, mas algo começou a
acontecer. Como que por efeito de magia o céu começou a encarnar, de uma hora
para a outra, de avermelhado ficou plúmbeo, parecendo que traria uma
tempestade. Alguns animais que estavam nos arredores começaram a enlouquecer,
cães, gatos e cavalos passaram a emitir gemidos de pavor no meio da rua. Uma
rajada de vento, quente como o inferno há de ser, começou a vir de todos os
lados e adentrava em todos os espaços de minha armadura e de minhas vestes,
atingindo diretamente a minha pele. Empunhei minha espada, em uma vã tentativa
de me sentir seguro, e esperei o mal que haveria de surgir diante daquela
anomalia.”
“Uma sombra, negra como a noite sem
estrelas mais escura poderia ser, começou a adquirir uma forma humana,
grotesca, mas humana. Ela era grande, tinha três vezes a minha altura e duas
vezes a minha compleição. Brandi minha espada violentamente contra ela, mas era
inútil, por mais que eu a cortasse, logo ela voltava ao normal. Ela me atacou
com garras enegrecidas, tentei defender-me com meu escudo, mas ela
trespassou-o, não destruindo-o, mas atravessando-o, como se a criatura fosse
intangível. O golpe passou pelo escudo e acertou meu peito. Nesse momento, eu
senti como se ele atingisse a minha alma. Vejo que alguns de vocês mostram
olhares de deboche, mas insisto que foi assim que aconteceu, o golpe atingiu
minha alma, eu o senti. Repito quantas vezes forem necessárias. Entendam que eu
sei que muitos por dentro riem de mim, pois sei que não há homem corajoso o
suficiente para dizer que minto, mas minha intenção é fazer com que possam
realmente acreditar em meu testemunho.”
“Múltiplas vezes a monstruosidade me
atingiu e, embora fisicamente não aparentasse estar ferido, eu sentia que minha
alma fora retalhada, o que me fez ficar totalmente inerte. Meus braços, pernas
e todas as outras partes do meu corpo não obedeciam aos meus comandos, por mais
que eu tentasse, elas não se moviam, ainda assim, eu permanecia consciente.
Essa era a pior coisa. Eu enxergava tudo, mas nada podia fazer. Passados alguns
momentos daquele terror, a sombra se multiplicou. Para ser mais exato, ela se
dividiu. A enorme sombra de seis metros fragmentou-se em algumas dezenas de
pequenas sombras. Cada uma delas começou a levar as mulheres. As coitadas
choravam e esperneavam, desesperadas, como se o próprio Diabo as estivesse
levando, e talvez fosse ele mesmo. Duas delas se agarraram a mim e imploraram
por ajuda. Eu, desesperadamente, tentei auxiliá-las, debalde. O que quer que
aquela sombra maldita tenha feito comigo, deu certo. Fiquei imóvel enquanto as
criaturas levavam as mulheres de mim. Aquela covardia me enfureceu
sobremaneira. Tentei, alucinadamente, me mover. Meus olhos inflaram e todo meu
corpo vibrou com o esforço. As sombras, vendo meus impulsos infrutíferos,
gargalharam enquanto continuavam a arrastar as mulheres apavoradas. O gargalhar
delas era estridente e tenebroso, tenho certeza que era proveniente do
inferno.”
“Não posso explicar com palavras o
ódio que senti daquela diabrura, não havia espaço para medo, apenas para a
cólera. Quanto mais furibundo eu ficava, mais as sombras riam de mim. Minha ira
foi tão grande que serviu de disposição. Dela eu consegui forças para me mover.
Com todas as energias que tinha, eu empunhei mais uma vez minha espada e desferi
um golpe em uma das criaturas que estavam próximas a mim. Ele desceu com
velocidade e precisão, dessa vez a espada não deixou a criatura incólume. Muito
pelo contrário, dividiu-a em dois, seus pedaços caíram para os lados e
esvaíram-se ao solo. Dei um grito de fúria e triunfo que consternou as
criaturas, elas pareceram aterrorizadas com o fato de eu poder me mover e
atingi-las, tão logo me viram destruir uma das sombras e gritar, resolveram se
apressar, desapareceram em um rodamoinho de trevas, levando consigo as vossas
concubinas, meu rei. Depois disso, o esforço demasiado que empreguei para me
movimentar quase acabou por me fazer desmaiar, mas eu não podia ceder à
fraqueza, não enquanto elas estavam em perigo. Desesperadamente eu procurei por
elas nos arredores, mas nada encontrei, nem mesmo uma mínima pista. Tão
misteriosamente como apareceu, aquela sombra negra se esvaiu, juntamente com
vossas mulheres”
“Vossa Majestade, peço
encarecidamente que encare esse meu relato como a mais pura verdade e, juntamente
a ele, receba o meu juramento de que vou trazer vossas mulheres de volta, não
me importa que tipo de diabo tenha feito isso, ou o que eu precisarei fazer
para trazê-las. Irei buscá-las nem que eu precise ir para os confins do inferno
ou do firmamento, nem que para isso eu dedique toda a minha vida. Sei que para
Vossa Majestade pouco ou nada interessa se o que eu digo é verdade,
interessa-se apenas por suas amadas mulheres de volta. Confie em mim para
trazê-las, pois enquanto eu não reparar meu erro, me considero maldito a seus
olhos, meus antepassados e descendentes também respondem por minha falta, por
causa dela devo ser execrado em praça pública, ominosos serão aqueles que
ousarem falar comigo, esse mancha em minha reputação só será removida com o extermínio
da criatura e com a restituição das vítimas. Caso eu falhe, viverei até o fim
de meus tempos como um leproso e todos os homens e mulheres do vosso reino
devem ter repúdio de mim.”
“Vosso silêncio é para mim um
consentimento, saio agora e só volto quando minha missão estiver completa.”