Isra estava em ruÃnas, todas as suas
lojas haviam sido saqueadas, até mesmo as que vendiam estrume. Os habitantes
não saÃam de casa, escondiam as poucas mulheres que ainda não haviam sido
raptadas. Brigas, roubos e toda a sorte de coisas violentas aconteciam
diariamente por lá, mas isso nem sempre fora assim, antigamente ela era uma
cidade pacata, onde se era bom e fácil viver, mas isso ficou no passado, mais
especificamente na semana passada.
Sálvia, o grande deserto do reino de
Catônia, estava em alvoroço, cinco mil criminosos deixaram seu covil e
começaram a atacar o reino de maneira indiscriminada. Eles não mais atacavam na
surdina, preferiam ataques diretos e nenhum cidadão estava livre de ser
molestado. As duas cidades que sofreram os primeiros ataques foram Miraj e
Isra, pois ambas ficavam no deserto, bem próximas do covil. O problema
principal desses ataques foi que muitos dos criminosos tinham famÃlia nessas
cidades, esses trataram de defendê-las, houve desentendimento que acabou
gerando um desmembramento dos bandoleiros, diversas facções começaram a surgir.
Algumas adentraram em Catônia e foram atacar as cidades mais populosas, outras
ficaram nas duas pequenas cidades do deserto, umas para defender, outras para
atacar. A situação era tão turbulenta que não era tão simples definir os que
queriam defender e os que queriam atacar, pois existiam facções de defesa que
lutavam com outras de defesa, o mesmo acontecia com as de ataque. Em Miraj
ficaram seis facções para defendê-la, mas essas também queriam tomá-la, então
elas lutavam entre si, mas uniam-se quando o ataque era contra as de Isra, que,
mesmo sendo uma cidade menor, tinha ficado com oito facções, também inimigas e
aliadas entre si.
Em três dias todo o reino de Catônia
sofreu as consequências desses ataques, criminosos haviam se infiltrado em
todos os lugares. O rei Diógenes foi rápido em fazer a represália, ordenou que
seus cavaleiros caçassem e crucificassem o máximo de criminosos possÃvel e
deixou bem claro que se em cada rua do reino não houvesse pelo menos um
bandoleiro preso em uma cruz, ele prontamente colocaria um cavaleiro nas que
estivessem faltando. Em três dias a violência dos criminosos foi suplantada
pela dos cavaleiros, homens eram mortos como animais, não havia julgamento nem
investigações, os cavaleiros matavam como bem entendiam. Pouco tempo durou as
lutas, os bandoleiros, vendo que não podiam derrotar o exército real,
esconderam-se, mas os cavaleiros precisavam crucificar um homem em cada rua do
reino, então decidiram atacar os maridos das mulheres que desejavam, o acusavam
do que quer que seja e matavam-no, depois, como mostra de gentileza cavalheiresca,
tomavam a viúva para si. Donos de mercearia, bares e lojas em geral foram
crucificados também, acusados de cumplicidade para com os criminosos, seus
pertences foram tomados pela coroa.
Miraj sofreu as maiores
consequências. Todos os homens foram assassinados e todas as mulheres foram
levadas pelos cavaleiros, exceto as que os cavaleiros consideravam feias, essas
tiveram o mesmo fim que os homens. Uma parcela muito pequena dos habitantes da
cidade conseguiu fugir para Isra, onde os ataques ainda não tinham sido tão
grandes. Isra ainda sobrevivia, mesmo em ruÃnas, com seus habitantes escondidos
e com medo, ela ainda resistia, isso se deve muito ao fato dos cavaleiros terem
aplacado sua vontade de destruição em Miraj. Eles sabiam que Isra estava cheia
de bandoleiros que lutariam até a morte, então, decidiram não atacá-la mais,
pois não havia motivo para se colocarem em risco, já que tinham tomado mulheres
e riquezas suficientes para saciar o exército e o rei.
Em um porão escuro e purulento,
estavam um rapaz e um homem. O rapaz era loiro e aparentava ter uns quinze ou
dezesseis anos, sua perna estava enfaixada na altura da coxa, ele trajava uma
roupa esfarrapada e olhava fixamente para a chama de uma vela; o homem também
se vestia com trapos, seus cabelos eram longos e ele tinha uma grande barba
negra, estava afiando uma espada e praguejava.
— Por que você resmunga tanto? —
Perguntou o garoto.
— Porque nem todo mundo é retardado
que nem você e consegue se entreter olhando para uma vela — respondeu o homem
com rispidez.
— Não enche o saco — respondeu o
garoto, mas parando de olhar para a vela. — Eu estava entediado e não tem nada
muito melhor para fazer. Você mesmo está afiando tanto essa espada que é capaz
de cortar essa pedra de amolar.
— Pois é por isso que eu estou
resmungando. Não aguento mais esperar aquele velho.
— Eu também não aguento mais, mas
não tem muito que se fazer, ele avisou que ia demorar.
— Tenho certeza que já faz mais de
dez horas, acho que ele não volta mais, deve ter morrido.
— Não seja idiota, ele é o chefe da
cavalaria do rei. Ele não se deixaria ser derrotado por alguns bandoleiros
imbecis. Se ele encontrar algum cavaleiro, basta ele dizer que é Leon e está
disfarçado de camponês para uma missão do rei Diógenes.
— É exatamente aà que está o perigo.
Não sei se você sabe, mas o mundo não é um lugar tão correto como você imagina,
nossos cavaleiros não são tão nobres assim e nem todo mundo gosta daquele
velho.
— Como assim? O que você está
querendo dizer com isso?
— Estou querendo dizer que alguns
cavaleiros estão disputando o tÃtulo de chefe da cavalaria e que seria uma pena
se o velhaco do Leon morresse sem que ninguém suspeitasse do paradeiro dele.
— Você deve estar de brincadeira —
sugeriu o garoto assustado.
— Claro que não, eu mesmo enfiaria
um punhal nas costas daquele desgraçado se eu ganhasse pelo menos uma moeda de
ouro com isso, imagine o que alguém faria com ele para ganhar o tÃtulo de chefe
da cavalaria.
— Você é um crápula, Marcel — disse
o garoto com desprezo.
— Você que é um merdinha baba ovo.
Nem todo mundo é o queridinho dele como você, ele é um velho mandão e
asqueroso. Se não fosse por ele eu estaria em casa, mas eu soube que ele
insistiu em me colocar nessa missão suicida.
— Por que você diz isso? Nós só
estamos indo ajudar aquele cavaleiro, ficar no reino está me parecendo muito
mais perigoso.
— Você é burro de um jeito que me
entristece. Deixa eu explicar uma coisa para você, sabe essa cidade devastada
em que estamos? Ela era ótima. Eu vinha aqui toda semana, visitava todos os
bordéis e sempre era bem recebido pelos bandoleiros. Bastou apenas que Roderick
passasse aqui e tudo virou um inferno.
— Eu ainda acho que vocês todos
estão exagerando. Estamos falando de um homem, apenas isso.
— Para mim chega, você é burro demais,
Adrian. Vou sair antes que eu pegue a sua burrice. Vou dar uma volta.
— Nós não podemos — falou o garoto
se desesperando. — O mestre Leon mandou terminantemente que o esperássemos,
disse que poderÃamos morrer se saÃssemos. Ele vai voltar logo com uma rota de
fuga até Quendor.
— Sua mula, se é perigoso para nós,
é claro que é perigoso para ele também, têm grandes chances daquele velhote
estar estripado em uma esquina. Não suporto mais esperar, eu também tenho
contatos nessa cidade e não aguento mais nem um dia sem me deitar com uma
mulher. Vou ver se tem algum bordel funcionando e volto logo.
— Espera aÃ, você não tinha sido
castrado? — perguntou Adrian confuso.
— Por isso que eu digo que você é um
imbecil. Se eu chegasse no castelo dizendo que fugi e deixei todos os meus
aliados morrerem, é claro que o rei mandaria me enforcar, mas se eu dissesse
que fui torturado e castrado, tinha grandes chances de eu ser poupado e veja
só, deu certo. Agora eu preciso ir atrás de uma mulher.
— Isso não vai terminar bem, Marcel.
Você deve ficar — disse o garoto com autoridade.
— Prefere que eu fique e faça de
você a minha mulher? — perguntou Marcel ameaçadoramente.
— Pode ir, cuidado para não morrer —
respondeu rapidamente Adrian. Marcel nem havia esperado o garoto dizer nada e
já havia ido embora.
O tempo é curioso, quando estamos
esperando por algo ele passa devagar, quando esperamos por algo no escuro ele
passa muito devagar, mas quando esperamos por algo no escuro e sozinhos ele
praticamente para. Adrian estava com os nervos em frangalhos, parecia que já
estava sozinho há muitas horas, qualquer som assustava-o, o fato de gritos
serem ouvidos constantemente ao longe ajudava a deixá-lo assim. Parecia que ele
ia enlouquecer, estava a ponto de ir embora, mas o medo de sair sozinho daquele
porão era maior do que o de ficar lá. Enfim, ele ouviu o som da porta se
abrindo na parte de cima da casa, mas ele não sabia se ficava feliz ou ainda
mais assustado, afinal, não dava para saber quem tinha aberto.
Adrian
se escondeu atrás de um caixote, puxou uma adaga que ganhara de Leon para se
defender e esperou. Ele não sabia quem tinha entrado, mas sabia que não era
mais de uma pessoa, pois não havia som de muitos passos, na verdade o som dos
passos era forte e demorado, vinha um por vez, mas bem alto, como se o dono dos
passos estivesse pulando para fazer mais barulho. Não era Leon, disso Adrian
tinha certeza, o cavaleiro sabia ser bem silencioso, podia ser Marcel querendo
brincar com a cara dele, mas era bem mais provável que fosse outra pessoa, um
desconhecido e Adrian precisava se preparar para enfrentá-lo. Quanto mais os
passos se aproximavam, mais ele apertava a adaga, com força, rezando para que
não precisasse usá-la. Havia um corredor estreito com uma escada que ligava a
parte de cima da casa com o porão, Finalmente, ele podia ver uma sombra
descendo a escada, bem devagar, um passo de cada vez. Quando a figura surgiu, Ã
sua frente, ele teve um susto ainda maior.