O brilho do sol iluminava Sálvia, o maior deserto de Catônia. Milhares de dunas abrigavam duas pequenas cidades e um covil de bandoleiros. As cidades tinham pouco mais de dois mil habitantes cada, mas o covil era conhecido por ter mais de dez mil bandoleiros. Criminosos de todos os cantos do reino iam para lá aprender, eles recebiam cursos e formações na arte do banditismo. O rei, pouco, ou mesmo nada, se importava com o aumento da criminalidade na região. Ele tinha acordos com os bandidos, tratados sobre o quanto eles podiam roubar, de quem e qual era a parte da coroa na partilha. Sálvia era um lugar seguro para todo aquele que quisesse entrar para o crime, as duas pequenas cidades eram pacatas e nunca eram roubadas, pois uma das regras dos bandoleiros é: “não coma no lugar onde se caga”, ou “não se caga onde se come”; não sei bem qual o certo, ou mesmo se um difere do outro.
Era meio-dia e a sede dos bandoleiros estaria vazia, não fosse por Valentim, o líder do bando. Era dia de folga para os criminosos, menos para ele, que estava em sua sala, fazendo anotações sobre gastos, salários e planos para ataques futuros. Ele lia algumas informações entregues pelo rei, que continham plantas de alguns estabelecimentos e de algumas mansões que podiam ser assaltadas sem que os cavaleiros interferissem. Nos últimos meses, tudo estava indo bem, grandes roubos, dinheiro aos borbotões, dentro em pouco, talvez um ano ou dois, se tudo continuasse da mesma maneira, Valentim poderia se aposentar, pegar todo o dinheiro que juntou, comprar um navio e ir viver no extremo oriente, longe de toda a podridão de Catônia.
Valentim era um bom homem, mas não era tolo, era inteligente demais para isso. Desde muito novo ele conseguiu entender que tudo em Catônia girava em torno da corrupção, governos, comércios, guerras, tudo. Ele havia prometido que iria embora desse reino apodrecido e viveria rico como um rei em um lugar mais decente, para isso ele teria que arrumar um emprego, o mais honesto que conseguiu achar em todo o reino foi o de bandoleiro. Todos eram corruptos em Catônia, desde o padeiro que vendia comida estragada e traficava contrabando em seus pães, até a florista que vendia flores falsas e cultivava ervas proibidas em seu quintal, os criminosos pelo menos não fingiam ser uma coisa que não eram.
Por uma janela em sua sala, Valentim podia ver a estrada que levava até o covil, que só era chamado assim no sentido figurado, afinal ele não era uma cova, mas sim uma fortaleza suntuosa, com várias construções, prédios que serviam como salas de aula e treinamento, dormitórios e estábulos, formavam praticamente um baluarte. No início da manhã ele recebeu um recado informando que um cavaleiro havia entrado em Sálvia e estava gerando confusão. Aquilo era muito incomum, pois cavaleiros só iam à Sálvia para pedir propina, mas a desse mês já estava paga, só podia ser um mal entendido, ou então algum espertalhão querendo ganhar dinheiro extra, provavelmente era uma bobagem do tipo, nada que merecesse sua atenção pessoal. Valentim mandou Eduardo, seu mais próximo funcionário, averiguar do que se tratava, duas horas haviam passado e finalmente ele voltava, não vinha calmo como foi, mas sim desesperado, como se o próprio Diabo viesse atrás dele.
— Senhor — Disse Eduardo parando em frente à janela da sala de Valentim —, vim correndo o mais rápido que pude. Algo tem que ser feito a respeito desse homem.
— Atualize-me da situação — falou Valentim, finalmente mostrando um pouco de preocupação com a história —, é realmente grave?
— Chamá-la de grave seria um eufemismo — respondeu o bandido praticamente aos prantos —, o desgraçado já matou quinze homens e feriu quase três dezenas, todos bons bandoleiros, mas nenhum estava tentando roubá-lo.
— E por que diabos esse infeliz os matou? — Indagou o outro enquanto deduzia consigo algumas coisas que temia acontecerem cedo ou tarde.
— Ninguém sabe ao certo, mas os que sobreviveram a ele dizem que ele procura um tal de Sombra negra.
— Sombra negra, foi o que você disse?
— Sim! O senhor sabe do que se trata?
— Se eu sei do que se trata? Está me achando com cara de cheirador de ervas? Claro que eu não sei o que esse cão quer.
— E o que nós faremos? Ele é um cavaleiro, podem haver represálias se o matarmos.
— Não me importaria mais nem que ele fosse o filho do rei, isso não estava no nosso acordo. Essa história de cavaleiro louco não passa de um imbróglio para nos confundir, acho que isso é traição, o rei não pretende mais cumprir com seus acordos e está procurando uma desculpa para nos atacar, eu sabia que nosso pacto não duraria para sempre, mas me surpreende que ele queira encerrá-lo logo agora, depois de nós mandar planos que seriam lucrativos tanto para nós como para ele. Não quero mais saber desses joguetes do rei nem desse cavaleiro, mande Salvione matá-lo, depois mande entregar a cabeça ao castelo do rei, isso servirá de aviso para ele aprender que nós não nos importamos em acabar com o acordo!
— Isso será impossível, já que Salvione é quem está morto, ele foi o quinto bandoleiro que o homem matou.
— Até o Salvione? — disse Valentim sem esconder a surpresa — Meu Deus, esse cavaleiro é poderoso como um monstro, você tem certeza que é só um homem? Só há um jeito de detê-lo, envie Gegard, ele saberá o que fazer.
— Senhor… — disse Eduardo timidamente, sem conseguir concluir.
— O que foi? Diga logo de uma vez.
— Ele também matou Gegard!
— Isso é uma brincadeira? — perguntou Valentim desolado, tudo parecia um pesadelo.
— Não senhor, Gegard também foi assassinado. Ele foi varado em um golpe vertical e foi deixado no chão como um porco na sangria.
— Seu imbecil, por que não me disse isso logo de início, temos que fugir — concluiu Valentim. Não havia tempo para surpresas ou pesares, era o momento de agir e ficar ali esperando era comprar um ingresso no lugar mais importante para o cadafalso. — Nunca imaginei que Gegard pudesse morrer.
— Isso vai ser um problema, senhor.
— Claro que vai ser um problema, Gegard está morto.
— Não estava me referindo a isso, senhor.
— E você estava se referindo a quê?
— A fugir, senhor.
— E porque isso seria um problema?
— Alguns homens, mediante ameaças, é claro, disseram a ele que o senhor era o contratante deles e agora ele está vindo aqui, para buscar o senhor. Eu consegui escapar dele porque doze bandoleiros estavam atacando-o, mas creio que eles não vão aguentar por muito tempo.
— Bastardos! — praguejou Valentim, ele fechou os olhos e pensou por alguns instantes até que aparentou concluir algo que o assustou mais ainda. — Qual é o nome desse cavaleiro?
— Não lembro bem, acho que era Rick alguma coisa.
— Roderick? — sugeriu o outro.
— Isso, era esse o nome dele.
— Isso torna a situação um pouco mais perigosa, faz anos que não ouvia seu nome, mas esse, com toda a certeza, é o homem mais perigoso do mundo, no entanto, não se preocupe, eu tenho um plano. Prepare os cavalos, rápido!
— Sim, senhor — disse Eduardo enquanto corria para a estrebaria, deixando Valentim sozinho. Há seis anos ele fora eleito o líder dos bandoleiros, não porque ele fosse o mais forte, muito menos o mais bravo, mas sim porque ele era, sem sombra de dúvidas, o mais inteligente e sempre encontrava um meio de sobreviver. Por muitos séculos os bandoleiros passaram por períodos conturbados, líderes que os levavam para guerras, outros que chamavam a atenção das autoridades e alguns que só se importavam em patuscadas. Valentim assumiu o cargo em um momento que ninguém o queria, pois os líderes tinham pouco tempo de vida e muito trabalho, e a verdade é que bandoleiros gostavam de viver muito e trabalhar pouco.
Seis anos de prosperidades; seis anos de roubos e assaltos bem orquestrados; seis anos sem que nenhum bandoleiro morresse na prática do serviço; e tudo isso chegava ao fim por causa de um homem. Se bem que não era um simples homem, era a lenda viva, o último Roderick na face da Terra. Se um décimo do que as histórias contam for verdade, Valentim calculou que ele seria capaz de extinguir todo o covil. O bandoleiro estava triste porque seu sonho havia acabado, afinal, não dava tempo de ir pegar as suas economias e ele nunca mais poderia voltar para buscá-las, se Roderick realmente estava em sua procura, ele deveria fugir por toda a vida e nunca mais pisar os pés em Catônia novamente.
Eduardo estava voltando com os cavalos e Valentim já podia ver ao longe, com o sol por trás de sua silhueta, um magnífico cavalo negro, montado em seu lombo estava um ginete trajado de meia armadura, também negra, que mais se assemelhava com o ceifador de vidas, a própria encarnação da morte, do que a um ser humano, e era rápido. Valentim montou no cavalo ainda em movimento e iniciou a fuga junto a Eduardo. Os dois cavalos escolhidos pelo bandoleiro eram os mais rápidos de toda a região, mas, aparentemente, não tinham metade da velocidade do corcel negro, que não demoraria muito para alcançá-los. Era hora de pôr o plano em prática.
— Eduardo, pegue isto — disse Valentim passando um pergaminho para o outro. — Ouça bem o que eu tenho a dizer e você sobreviverá. Esse é o mapa para meu tesouro, você pode ficar com metade dele, basta que me leve a outra metade no extremo oriente, onde eu sempre disse que queria ir. Você deve parar e não deve enfrentá-lo, ou morrerá, quando ele perguntar, diga que eu sou o líder dos bandoleiros e ele irá me seguir, deixando-o em paz, entendeu?
— Senhor, eu não tenho coragem de parar, aquele homem me dá medo.
— Eu sei, mas é o único jeito, lembre-se do que eu te falei — disse Valentim antes de jogar uma boleadeira nos joelhos do cavalo de Eduardo, enrolando suas pernas e derrubando-o no deserto. Eduardo se assustou e até pensou em ficar com raiva, mas viu que não tinha esse direito, pois esse é um dos ensinamentos básicos dos bandoleiros: “O melhor jeito de dois homens fugirem de um ataque de leão, é se um derrubar o outro”.
Valentim sabia que não era um bom plano, mas era o único que podia ser aplicado naquela situação. Eduardo tinha sido um bom companheiro, quase um amigo, mas acreditar que ele levaria uma fortuna para o extremo oriente era o supremo exercício da inocência, a chance era de uma em um milhão, mas era uma e Valentim sabia calcular muito bem, ele tinha ciência de que um é um milhão de vezes maior que zero, e se Eduardo ficasse com o dinheiro todo para si não seria tão ruim, ele era um cara legal, se Valentim pudesse escolher uma pessoa para roubar todo o seu dinheiro ele escolheria Eduardo.
Roderick, segundo contam as lendas, é a única pessoa verdadeiramente nobre do mundo, sua honra e dignidade estão acima de qualquer coisa. Eduardo com certeza sobreviveria se não agisse como um tolo. O cavaleiro nunca mataria alguém indefeso, nem deixaria sua missão de lado, que, nesse momento, segundo deduziu Valentim, era capturar ou matar o chefe dos bandoleiros, para prender um bandido qualquer. Valentim admirava profundamente os Rodericks, tanto que inicialmente ele quis ser cavaleiro, mas, depois de descobrir que os maiores bandidos de Catônia eram os que usavam armadura e que cavaleiros como os Rodericks eram a exceção, ele desistiu e foi virar bandoleiro.
A primeira parte do plano foi feita, atrasar Roderick e, caso ele não tenha morrido, entregar o dinheiro a Eduardo, a segunda era puramente hipotética, era um tiro no escuro e tinha muita chance de dar errado. O que ele deveria fazer agora era apenas se distanciar o máximo possível, pois é claro que Roderick iria alcançá-lo. O cavalo dele era endemoniado, rápido como um guepardo com fogo no traseiro. Valentim conseguiu, distanciou-se o máximo possível, até que finalmente ele pôde ouvir o som do cavalo de Roderick se aproximando, era hora da segunda parte do plano.