Valentim sentia-se estúpido por ter
levado Roderick até o mosteiro. O lugar era esquisito, isso é verdade, mas
partir disso para acreditar que ele era um antro de coisas sobrenaturais, já
era demais. É verdade que um pássaro gigante e toda aquela história do monge se
transformar foi muito esquisito, mas devia haver uma boa explicação para
aquilo. Seu velho mestre Baltos havia lhe ensinado que exímios embusteiros
conseguem nos fazer acreditar em qualquer coisa, pois existem truques que podem
enganar até o mais cético dos homens. Quanto mais ele ouvia Paulo dizendo sobre
demônios, mais ele pensava estar sendo enganado.
Paulo disse que em uma sacola, que
estava embaixo de sua cama, tinha uma carruagem para os levar ao mundo dos
demônios, mas dentro dela só havia velas, gizes e algumas ervas que Valentim
conhecia muito bem como de má procedência. O monge começou a riscar círculos,
estrelas e luas no chão com um pedaço de giz, o bandoleiro perguntava o que ele
estava fazendo, mas não obtinha resposta, o cavaleiro apenas olhava
atentamente. Depois de terminar o desenho no chão, Paulo acendeu mais algumas
velas e deu um pedaço de erva para os outros dois, e um copo cheio de uma
bebida arroxeada.
— Vocês têm que queimar essa erva em
uma das velas, se ajoelhar e fechar os olhos, tomem a bebida e eu entoarei o
cântico que nos levará ao reino dos demônios — disse o monge, mostrando-se
sério pela primeira vez desde que os tinha encontrado.
— Esqueça — disse o bandoleiro. —
Augusto, ele quer nos drogar, eu conheço essas ervas, eu mesmo já vendi muitas
para ele. Essa bebida, com certeza, é um álcool muito mal destilado, eu também
sei porque eu mesmo vendi para esse mosteiro. Isso tudo aqui é uma besteira,
vamos embora.
— Já chega Valentim — disse o monge
mostrando uma personalidade totalmente diferente da que havia apresentado até o
momento. — Desde que chegamos você tem se mostrado cético e irritante. Eu não
estou brincando, não dessa vez. Nosso poderoso colega precisa de ajuda e você
está sendo um estorvo desde que chegamos ao mosteiro. Sei que o sobrenatural
assusta a quem não está acostumado a encará-lo, mas acredite, é real. As ervas
são necessárias para afastarmos nossos espíritos dos corpos, a bebida é o
transporte, o cântico vai levá-los direto ao reino dos demônios.
— Besteira, isso só vai nos drogar,
depois, sabe-se lá o que você fará conosco — disse o bandoleiro enquanto
implorava com os olhos para que o cavaleiro fosse embora junto a ele, mas ele
acabou se decepcionando.
— Não, Valentim, eu confio nele —
disse o cavaleiro de forma resoluta, para desespero do bandoleiro. — Eu não sei
explicar bem o motivo, mas eu sei que posso confiar nesse garoto. Eu sinto isso
no âmago de meu ser.
Valentim não encontrou mais
argumentos para insistir, e talvez ele também não soubesse o motivo, mas,
curiosamente, parece que ele entendia que o monge merecia confiança, então ele
cedeu. Paulo começou a entoar o cântico enquanto o bandoleiro e o cavaleiro
ateavam fogo nas ervas, se ajoelhavam e fechavam os olhos. Uma fumaça arroxeada
começou a encher o recinto, Roderick inicialmente ficou nauseado, mas pouco a
pouco a náusea foi substituída por um leve torpor. Ele nunca tinha se sentido
assim antes, era como se todos os membros do seu corpo formigassem, ele sentia
seus pés, mas não conseguia sentir o contato com o solo, seus braços estavam
pesados e sua visão ficava cada vez mais turva. A última vez que ele sentiu
algo parecido foi quando seu finado pai, Aurélio, o forçou tanto em um treino
que Augusto ficara inerte ao chão, sem conseguir mover um único membro, mas
totalmente consciente. Paulo e Valentim cresciam e diminuíam aos olhos do
cavaleiro, eles se tornavam vermelho, dourado e até fosforesciam. Sua
consciência estava se perdendo aos poucos, mas algo o manteve racional, o cântico
de Paulo, era como se a única coisa que o mantivesse lúcido fosse aquele
cântico. Era como se a voz de um anjo o conduzisse para o céu, ele sentia que
estava seguindo a música.
O caminho era escuro, ou algo que se
assemelhava a isso, pois não tinha propriamente uma cor, visto que Roderick,
naquele momento, não possuía mais olhos, então não podia distinguir cores. Ele
também não possuía mais pernas, no entanto ele se aproximava cada vez mais do
cântico. Ele também não tinha mais braços, tronco, nem nada de seu corpo,
todavia ele sabia que não lhe faltava nada, que estava inteiro. Ele não tinha
mais corpo, mas toda a essência do seu ser ainda estava ali e a voz que ele
seguia parecia estar cada vez mais perto de levá-lo ao seu destino. Aos poucos
um cenário começava a se formar diante de Roderick.
Uma espécie de pântano cobria seus
pés, um frio lancinante castigava seu peito e seus olhos estavam incomodados
com uma forte luz à distância. Foi quando ele notou que novamente tinha um
corpo, não somente isso, ele também vestia a armadura de sua família. A alegria
de trajar o orgulho de seus antepassados invadiu seu peito e ele esqueceu-se
por completo do que estava fazendo ali, foi Valentim que veio tirá-lo de seu
estado de êxtase.
— Augusto — chamou o bandoleiro
puxando o cavaleiro pelo braço —, você está bem?
— Valentim — disse instintivamente o
outro por espanto. — Estou, estou bem sim, e você?
— Também, mas eu não consegui achar
Paulo. Onde diabos nós estamos? — disse ele aterrorizado.
— Sinto muito, Valentim, mas eu
também não sei — disse Roderick enquanto olhava ao redor. Eles estavam em um
pântano. Uma lama enegrecida cobria-os até a altura dos joelhos, nela havia
troncos apodrecidos e cipós esverdeados. Alguns olhos de bichos apareciam na
lama, mas logo voltavam a se esconder, em alguns pontos havia gigantescas
árvores mortas, sem nenhuma folha. No céu, tudo era escuridão, exceto por
algumas estrelas cadentes que apareciam constantemente e uma enorme lua. O
satélite estava cheio, mas não era o mesmo que eles viam todos os dias, eles
sabiam disso porque na Terra a lua não era vermelha, muito menos estava
destruída, essa estava partida em duas, com diversos de seus fragmentos
pairando ao seu redor. De todas as coisas esquisitas que eles estavam vendo, o que
mais os impressionou foi uma colossal parede de luz. Ela se erguia até um ponto
em que a vista não mais alcançava, ocupava todo o horizonte e não se podia ver
além dela. Os dois estavam atônitos encarando aquela grandiosa curiosidade,
quando, de repente, alguém gritou seus nomes.
— Augusto! Valentim! — Era Paulo,
chamando. Ele estava a algumas centenas de metros de distância, em algo
parecido com uma choupana. — Vocês vão demorar o dia todo? Venham logo.
— Onde nós estamos? — gritou o
bandoleiro enquanto tentava se aproximar, lutando contra a lama, sem conseguir
muito êxito. — E que merda de casebre é esse?
— Fale baixo — disse o monge —
estamos no reino dos demônios e o dono desse casebre é um deles. Ele está lá
dentro e pode ouvi-lo. Ele é um demônio muito perigoso e genioso, você não
deveria irritá-lo.
— Já estamos chegando — disse o
cavaleiro, ele estava tão apressado que levantou e colocou o bandoleiro nas
costas, chegou à choupana duas vezes mais rápido do que fosse esperá-lo se
arrastar na lama.
— Nossa Augusto, até a sua alma é de
cavaleiro — disse Paulo quando o outro chegou e botou o bandoleiro no chão.
— Como assim? — indagou Roderick.
— Nós não estamos mais em nossos
corpos, essa é a representação de nossas almas, e você meu amigo, veste a
armadura de um cavaleiro de alta estirpe.
— Isso é porque por dentro ele é o
mais nobre dos cavaleiros — disse Valentim enquanto piscava para Augusto. Eles
ainda não tinham contado para Paulo que o cavaleiro era um Roderick e o
bandoleiro preferia que isso continuasse assim, pois, embora o monge tivesse se
mostrado de confiança até aquele momento, ele também não tinha um pingo de
juízo, sabe-se lá o que ele faria se soubesse que estava andando com o mais
poderoso cavaleiro do mundo. Ele poderia espalhar, sair por aí gritando a
identidade do outro e isso geraria muita balbúrdia, o melhor é que ele
continuasse sem saber.
— Ah, ah, ah! Enquanto nosso
poderoso amigo tem a alma de um Roderick, você tem a de um cafetão — ambos
ficaram surpresos ao ouvi-lo dizer isso, mas aparentemente ele estava fazendo
uma comparação. Roderick trajava-se como o mais suntuoso e nobre dos
cavaleiros, já Valentim, vestia uma túnica de cetim branca, usava um turbante
dourado bem ofuscante, uma capa, também branca, cobria toda as suas costas, seu
pescoço estava cheio de cordões de prata e ouro e em cada dedo de sua mão havia
um anel de uma joia preciosa diferente. Até mesmo o cavaleiro riu da
comparação.
— Cafetão é a meretriz que te pariu,
seu lazarento — praguejou Valentim logo depois que passou o susto que teve ao
pensar que o monge havia descoberto a identidade do cavaleiro, mas ao perceber
que se tratava apenas de uma comparação bem capciosa e ele percebeu a ofensa
que lhe era dirigida. — Não que seja da sua conta, mas sou do oriente e lá essa
é uma vestimenta muito adequada.
— Soube que o meretrício é realmente
bem adequado por lá — ao dizer isso ele e o cavaleiro caíram na gargalhada.
Valentim nunca tinha visto Roderick nem ao menos sorrir de leve, ele sempre se
mostrou sisudo, mas parece que Paulo aos poucos conseguia fazer com que ele
mostrasse sentimentos. Ver os dois rindo sem parar enfureceu mais ainda o
bandoleiro.
— Já chega, parem de fazer tolices!
E você que está parecendo um... um... um…
— Rei! — sugeriu Roderick e não
podia ser mais preciso. Paulo não trajava mais a túnica de monge, mas sim uma
indumentária real. Coroa, capa e vestes de rei adornavam seu corpo.
— Isso, um rei — disse Valentim, que
ao perceber que isso não era uma ofensa, completou —, um rei dos bobos.
— Nossa, estou muito ofendido —
troçou Paulo, afetando-se ofendido. — Você tem talento para ofensas. “Rei dos
bobos”!. Meu Deus, de onde você tira tanta imaginação?
— Você vai ver quando eu arrancar
sua língua — falou o bandoleiro enquanto pulava em cima do outro para
agredi-lo, mas Roderick o segurou.
— Chega dessa brincadeira,
precisamos encontrar o demônio ao qual Paulo se referiu.
— Mas foi ele quem começou…
— Sem “mas”, Valentim, seja homem,
cresça e vamos logo resolver isso para que possamos terminar nossa missão — o
bandoleiro se aquietou, mas transbordava de ódio.
— Ele está dentro desse casebre,
aguardando a chegada de vocês dois.
— Como assim? — indagou Valentim,
assustando-se. — Ele já sabia que viríamos?
— Provavelmente, ele é um demônio
muito poderoso e nem eu conheço os limites do seu poder.
— Então ele pode nos levar até as
mulheres que deveriam estar sob minha proteção? — perguntou Roderick
esperançoso.
— Se ele não puder levar, ele poderá
nos dizer quem pode, mas tudo tem um valor, será que você está disposto a pagar
o que ele lhe pedir?
— Qualquer coisa!
— Calma aí. Qualquer coisa não,
devemos pensar bem antes de entrarmos — sugeriu Valentim, finalmente
acreditando na história do monge. O bandoleiro já ouvira muitas histórias sobre
demônios e, em todas elas, eles eram criaturas traiçoeiras, tentavam enganar
oferecendo seus serviços em troca de almas e nem sempre pagando adequadamente
pela oferta. Era preciso que eles pensassem bem antes de aceitar qualquer
proposta e Valentim até levantou alguma coisa inteligente, debalde. Roderick
entrou no casebre sem esperar, logo seguido por Paulo, o que deixou o
bandoleiro sozinho do lado de fora.
Valentim já esteve só muitas vezes
na vida e, em todas elas, ele soube encarar como um homem, mas, desta vez, ele
estava sozinho na entrada de um casebre apodrecido e sinistro, que serve de
morada para um demônio de verdade, no meio de um pântano cheio de criaturas
curiosas, em um reino esquisito e sombrio, não seria justo julgá-lo por ficar
com medo. Ele estava apavorado em ficar do lado de fora, mas também não estava
preparado para encontrar um demônio, uma criatura conhecida por ser cruel,
astuta, capaz de ganhar a alma de uma pessoa despreparada. Duas coisas fizeram
com que ele perdesse o medo de entrar, a primeira foi que ele não via mais
apenas olhos no pântano, alguns dentes, bem grandes por sinal, começavam a
surgir; a outra foi que não importava muito o que estivesse lá dentro, ele
estaria acompanhado de um Roderick.
A luz do casebre era bruxuleante, nele não havia
móveis e, nas paredes, podia-se ver diversos inscritos parecidos com os que
estavam desenhados nos quartos do mosteiro. O local não tinha muitos cômodos,
possuía apenas uma sala que estava vazia, um quarto aberto e um porão. Valentim
resolveu entrar no quarto, visto que ele já estava aberto. A iluminação era
muito ruim, mas ele já podia distinguir Paulo e Roderick, eles não estavam
sozinhos, havia uma companhia, aos poucos Valentim conseguiu ver melhor e se
surpreendeu incrivelmente. Ele nunca imaginaria algo daquele tipo.