Valentim e Roderick seguiam em silêncio, o cavaleiro havia ajudado o bandoleiro a recuperar sua montaria que ele havia abandonado na fuga, cada um levava seu próprio cavalo pela rédea, pois a estrada era acidentada, galopar poderia fazer com que os cavalos se machucassem. O caminho entre Sálvia e Quendor pela rota dos bandoleiros era repleto de pedregulhos. Nele havia algumas árvores enegrecidas que apareciam esporadicamente, arbustos secos abrigavam lagartos por toda a trilha, duas montanhas gêmeas cercavam a estrada, tornando assim o percurso uma reta.
O bandoleiro seguia pensando sobre tudo o que Roderick havia lhe dito, não fosse ele o maior cavaleiro do mundo, a pessoa mais temida da terra, é certo que Valentim teria rido, mas a seriedade com que ele contou tudo não deixava sombra de dúvidas, aquilo era verdade, ou, pelo menos, o cavaleiro assim acreditava. Valentim já ouviu diversos homens delirando sob o efeito de ervas alucinógenas, embora sãos, eles contavam loucuras. Essa era a explicação mais correta sobre o que tinha acontecido com Roderick, era isso ou ele havia enlouquecido.
— Senhor Roderick — tratou o bandoleiro de começar um diálogo —, sobre aquilo que me contou, tem certeza que foi exatamente daquele jeito?
— Mestre salteador, minha memória é muito boa, fui o mais fidedigno possível em meu relato.
— Bom, quanto a ele, eu tenho algo a perguntar e espero que você não se ofenda.
— Eu também espero que não me ofenda, ou então…
— Temos que parar com isso agora — interrompeu Valentim. — Senhor Roderick, eu sei muito bem que não somos amigos, é bem capaz que me tenha repulsa, mas, por enquanto, somos aliados, precisamos achar essas mulheres e para isso eu tenho que fazer algumas perguntas ao senhor e também devemos fazer algumas coisas que podem não lhe agradar — Roderick respondeu a isso ficando em silêncio, matutando consigo durante alguns minutos.
— Tudo bem, mestre salteador — disse Roderick quebrando o silêncio —, pode me perguntar qualquer coisa, nesse momento minha missão é mais importante do que meu brio.
— Ótimo — concordou o outro. — A primeira coisa que devemos fazer é acabar com essas formalidades entre nós, pode parar com essa merda de senhor bandoleiro, assaltante ou qualquer coisa do tipo, meu nome é Valentim, pode me chamar apenas disso. Sair por aí me chamando de criminoso pode complicar a nossa missão.
— Tudo bem, senh... Valentim... — corrigiu-se o cavaleiro, fazendo um esforço monumental para fazê-lo — Tudo bem, Valentim.
— Ótimo, eu também te chamarei apenas pelo nome, ou pensarão que eu sou seu escravo ou coisa do tipo. Tudo bem, Roderick? — o cavaleiro consentiu forçosamente com a cabeça. — Você não pode sair por aí dizendo que é um cavaleiro de Catônia, muita gente tem algo contra vosso reino e não seria bom procurarmos confusão enquanto estamos atrás de informações.
— Isso já é demais — enfureceu-se Roderick —, por motivo nenhum renegarei o meu título de cavaleiro.
— Não estou pedindo para você renegá-lo, quero apenas que se apresente como Roderick, não precisa sair por aí espalhando que é um cavaleiro. Se perguntarem pode dizer, mas não precisa dizer se não for perguntado, tudo bem?
— Sim — respondeu Roderick desoladamente.
— A sua armadura e seu escudo, teremos que abandoná-los — nem bem Valentim terminou de dizer isso, Roderick puxou sua espada.
— Essa armadura está na minha família há gerações, ela nunca recebeu um golpe de espada e tem mais história para contar do que todos os menestréis do mundo juntos. Encoste nela, e não mais encostará em nada.
— Roderick, se acalme, por favor — falou cautelosamente Valentim. — Veja bem, eu sou um bandoleiro, meus amigos são bandoleiros, somos criminosos, já você, é um cavaleiro, um representante da lei. Se você realmente quiser a minha ajuda, precisa agir como se fosse uma pessoa normal e pessoas normais não andam por aí com corcéis negros e armadura. Iremos atrás de informações entre bandidos e plebeus, pessoas que não gostam de cavaleiros, se você continuar a se vestir e portar como um, nós nunca acharemos as mulheres.
— Você é um miserável. Sim, seu desgraçado, eu concordo em tirar minha armadura, mas não posso abandoná-la, é uma herança inestimável.
— Tudo bem, aqui no começo de Quendor tem uma cidade onde tenho alguns amigos de confiança, podemos deixar com eles.
— De confiança como o que te traiu e roubou seu posto? — a pergunta fez Valentim refletir.
— Tem razão, eles não são de confiança, mas tem um jeito. Em Viseu existe um ferreiro chamado Biorn, podemos pedir para ele polir sua armadura, pagamos a ele um valor exorbitante e diremos que pagaremos a outra metade quando voltarmos. A esperança de ganhar bastante dinheiro fará com que ele guarde a armadura até voltarmos.
— Tem certeza que esse é um bom plano?
— Absoluta. Dinheiro é sempre o meio mais fácil de fazer uma pessoa colaborar, e você, meu amigo, tem dinheiro o bastante para fazer todo o reino colaborar.
— Se algo acontecer à minha armadura, você será o responsável.
— Sem problemas, eu me responsabilizo. Agora que já discutimos os acertos sobre a convivência, precisamos conversar sobre a sua história daquela sombra.
— Eu já disse tudo que havia para ser dito, mas se precisar que eu repita algo, repetirei.
— Entenda, eu acredito que você tenha contado tudo, o que quero saber é o que veio antes da história. Veja bem, primeiro saiba que eu não estou te julgando, eu mesmo já fiz isso várias vezes, alguns homens, depois de usarem ervas alucinógenas, têm delírios. Você tem certeza que estava sóbrio quando foi trabalhar naquele dia?
— Senhor bando... Digo... Valentim, você acabou de dizer que já usou essas ervas, certo? Você alguma vez teve um desses delírios?
— Sim, foi hilário — disse alegremente o bandoleiro —, primeiro meu cavalo começou a falar comigo, disse que algumas vacas queriam me matar; depois realmente surgiram algumas vacas voando e disseram que o cavalo era meu verdadeiro inimigo e eu era o rei da Vacopia; então as vacas começaram a lutar com o cavalo, mas ele era muito poderoso, então eu tive que decidir quem eu ajudaria, eu escolhi as vacas e juntos matamos o cavalo, antes de morrer ele me disse que me amava e pedia perdão.
— Isso é sério? — duvidou o outro.
— Esquisito, não é? — sugeriu Valentim.
— Sim, é muito esquisito e não é engraçado, mas não é nesse ponto que eu quero chegar. O que eu quero te perguntar é: quando você acordou, no dia seguinte, você pensava que seu delírio tinha acontecido verdadeiramente?
— Claro que não — disse Valentim prontamente.
— Pois é isso que me faz acreditar que tudo foi real. Eu não bebo, nem uso ervas alucinógenas, mas realmente passou pela minha cabeça que alguém poderia ter-me feito inalar alguma fumaça tóxica, ou algo do tipo que me fizesse ter um delírio. O que me fez descartar essa hipótese foi o fato de tudo ter sido muito real. Eu não me sentia tonto, minhas faculdades mentais estavam normais, o terror era real, as sensações eram verdadeiras demais e, quando tudo acabou, não pensei por nenhum momento que o que tinha acontecido havia sido um delírio. Valentim, eu não acredito em feitiçaria, muito menos em diabruras, mas sei bem o que vi e senti, sei que não foi um delírio, então eu estava errado, alguma feitiçaria deve existir e eu tenho que matar o responsável por essa monstruosidade.
— Você falando assim até me convence, mas espero que entenda que ainda é muito difícil de acreditar sem ter visto com meus próprios olhos. Partiremos do pressuposto que não foi pesadelo o que você viveu. Aqui em Quendor existe um grande mosteiro em cima de uma montanha, eu costumava traficar bebida e ervas para eles. Existem lendas de que eles conseguem se comunicar com demônios, não sei se é verdade, eu mesmo nunca acreditei, mas esse é com certeza o lugar certo para procurar informações sobre sombras diabólicas. Vamos primeiro passar na cidade para comprarmos suprimentos e guardar sua armadura.
Roderick consentiu com a cabeça e eles continuaram o resto da viagem em silêncio. Valentim ia mais atrás, analisando o cavaleiro, ele aparentava ter cerca de um metro e noventa, tinha os cabelos castanho-escuros e usava um cavanhaque curto, sua armadura era negra e tinha o brasão de sua família no peitoral e na sua capa, que era branca. O bandoleiro sempre admirou as histórias da família Roderick e nunca havia imaginado que um dia participaria de uma, ele não queria admitir, mas, verdadeiramente, estava mais interessado na aventura do que no dinheiro. Ele estava muito feliz em poder conversar com um Roderick e poder ajudá-lo, isso era muito melhor do que acumular dinheiro junto a criminosos em um deserto fedorento.
As montanhas começavam a ficar para trás, a estrada se expandia e algumas árvores, que formavam uma pequena floresta, começavam a aparecer, ao longe já era possível ver a cidade. O caminho estava menos acidentado e já era mais fácil andar a cavalo, os dois montaram e seguiram trotando calmamente. A poucos quilômetros de Viseu, os dois viram uma cena inusitada. Três homens espancavam um quarto, este tentava fugir desesperadamente, mas sempre era impedido pelos outros, que lhe batiam com pauladas e pontapés.
— Olhe aquilo, Valentim — disse Roderick. — Devem ser assaltantes, precisamos ajudar.
— Por quê? — indagou Valentim. — Eles parecem estar indo muito bem sozinhos.
— Eu não estava me referindo a eles.
— Oh, desculpe, ossos do ofício! — disse o bandoleiro finalmente entendendo o que o outro havia dito. — Como eu poderei ajudá-lo? Não sou um bom combatente, eles estão em maior número e parecem bem fortes.
Roderick olhou para Valentim com desprezo, virou o rosto e galopou em direção aos homens brigando. O bandoleiro não sabia explicar bem o que havia sentido, mas era como se o olhar de repulsa de Roderick o tivesse magoado. Valentim não tinha ideia do porquê, no entanto ele sentia-se mal em desapontar o cavaleiro, ele não queria que Roderick o visse como um covarde, então ele também galopou em direção à contenda para ajudar, pela primeira vez em sua vida, a vítima.