Adrian estava em choque, ele nunca vira tantas pessoas serem assassinadas na sua frente antes. Ele já se julgava morto e demorou muito para perceber que Marcel não o estava esfaqueando, mas sim cortando as amarras que o prendiam.
— O que seria de vocês dois se não fosse por mim? — disse Marcel depois de libertar Adrian e remover a mordaça da boca dele.
— Você não vai mais nos trair? — perguntou o garoto se enchendo de esperança.
— Claro que não, seu merdinha. Realmente eu ia abandonar vocês em Isra, mas acabei descobrindo com meus contatos que o velhote tinha contratado o Saul. Todo mundo conhece a fama de traidor imundo que o Saul tem, dizem que ele já traiu até a própria mãe por um pedaço de pão podre. Só mesmo o velhote do Leon que não conhece quase nada dos bandoleiros para contratar justo o salafrário do Saul. Eu sabia que se eu não viesse socorrê-los logo vocês estariam em uma vala. Por sorte, eu cheguei a tempo.
— Eu realmente pensei que você fosse nos trair.
— Eu posso não gostar do Leon, mas eu não posso deixar que ele morra. É meio que uma dÃvida que eu tenho. Agora vamos deixar a conversa para outra hora. Vá cuidar dos ferimentos do velho, enquanto isso, eu vou revistar esses caras para ver se acho algo que nos ajude na viagem.
Adrian foi prestar auxÃlio a Leon e Marcel foi revistar os cadáveres, um eufemismo barato para furtar defuntos. Depois de juntar uma bela sacola de dinheiro e bebida, Marcel escolheu três dos melhores cavalos e chamou Adrian para buscarem outro lugar para acampar, pois não seria bom passar o resto da noite com os cadáveres.
Caminhavam em silêncio, Marcel ia um pouco mais à frente, levando dois cavalos pela rédea, Adrian ia mais atrás, levando apenas um cavalo que carregava Leon, ainda desacordado, ele tomava cuidado para não derrubar o velho cavaleiro. O garoto estava confuso, nos poucos dias que teve para conhecer Marcel ele deduzira que o cavaleiro era um crápula, uma pessoa que não ajudaria nada nem ninguém que não fosse ele mesmo, mas, mesmo assim, ele se arriscara para salvar ele e o Leon. Era muito esquisito, ele precisava de uma explicação.
— Marcel — chamou o rapaz.
— O que é, moleque? — respondeu o outro sem nem ao menos se virar.
— Por que você veio nos ajudar?
— Eu já disse que tenho uma dÃvida, não posso deixar esse desgraçado morrer.
— Então você deve sua vida ao Leon?
— Não que isso seja da sua conta, mas não é a ele quem eu devo.
— Como assim? — perguntou Adrian acelerando o passo para ficar lado a lado com Marcel.
— Você se faz de idiota? Eu acabei de dizer que não é da sua conta — disse o cavaleiro com ferocidade.
Marcel aparentava estar muito irritado com a história e seguia praguejando. Depois de caminharem algumas milhas, encontraram outra clareira para repousar o resto da noite. Marcel continuava irritado, como se estivesse se lembrando de algo que o aborrecia sobremaneira. Ele começou a tomar a bebida que tinha roubado dos bandoleiros. Adrian acomodou Leon com algumas cobertas e foi sentar-se perto de onde Marcel estava bebendo.
— O que você quer aqui, seu merdinha? Vai cuidar do velhote e me deixa em paz — praguejou Marcel depois de tomar um trago.
— Eu já o coloquei para descansar. Perdi meu sono, posso ficar aqui e beber um pouco com você?
— Por mim tudo bem, pode beber essa porcaria. Tive que gastar a bebida do rei Dioniso que eu tinha roubado da velha burra com aqueles bastardos, agora tenho que tomar esse lixo que eles tinham.
— E por que você deu essa bebida para eles, se ela era tão importante?
— Porque é muito mais fácil matar uns imbecis embriagados do que se eles estiverem sóbrios e a bebida do rei Dioniso embebeda no primeiro trago. Pensa, garoto.
— Mas eu vi você beber também, porque você não se embriagou?
— Eu estava bebendo água, eu só tinha uma garrafa com aquela bebida dos deuses.
— Eu não sei se acho isso muito legal — disse o garoto fazendo careta. — Você não acha que o que você fez foi covardia?
— E o que você esperava? Que eu os chamasse para um duelo e lutasse bravamente contra oito bandoleiros? Veja o que aconteceu com o velhote e aprenda com isso. Leon podia muito bem ter derrotado aqueles oito canalhas, ele pode ser velho, mas não foi escolhido como chefe da cavalaria por acaso, ele é muito habilidoso com uma espada nas mãos, mas ele é tão cego pelo código de cavaleiros que isso acaba virando a sua fraqueza. Bandoleiros atacam de forma traiçoeira e só podem ser combatidos com a mesma arma. O mundo não é justo, garoto, ser esperto é muito mais importante do que ser forte.
— Isso não me parece ser o pensamento de um cavaleiro, pelo menos não foi assim que o senhor Leon me disse que um cavaleiro deve agir.
— Cavaleiros desse tipo não existem mais, depois que Dioniso morreu e Diógenes assumiu o trono, as coisas mudaram, todos os que seguiam o código à risca estão mortos. Hoje em dia, na cavalaria, ou você fica esperto, ou morre.
— Mas o Leon segue o código da cavalaria e é recompensado com isso, ele é o chefe de todos os cavaleiros.
— Besteira! — disse Marcel. — Ele não é chefe de merda nenhuma. Esse cargo só é dele porque ele sabe treinar muito bem um cavaleiro para combate, mas depois disso, todo o treinamento ideológico e moral é passado pelo rei. O rei estimula a nos unirmos aos bandoleiros, é ele quem nos manda extorquir pequenos donos de negócios e toda a sorte de coisas ruins. E sabe o que o Leon fala a respeito disso? Nada. Isso porque ele é covarde demais para enfrentar o rei, ele tem medo de perder a merda do cargo dele e por isso ele é conivente com as merdas que o rei manda. Ele pode até não fazer com as próprias mãos, mas ele treina homens para servir a Diógenes, então ele é culpado por todas as merdas que eles andam fazendo. Então não me venha com essa merda de código dos cavaleiros, ele só serve para limpar merda da bunda.
— Eu nunca ouvi tanto a palavra merda em tão pouco tempo — disse Adrian e tomou um trago da bebida, ele se engasgou e quase vomitou, mas conseguiu segurar.
— Ah, ah, ah! — ria Marcel sem conseguir conter-se. — Você me lembrou de um velho amigo meu. Ele acreditava em todas as baboseiras que o Leon pregava, era extremamente inocente e não conseguia tomar uma bebida sem quase regurgitar.
— Essas ideologias não são tão ruins, você é até amigo de alguém com esse pensamento. Onde está esse seu amigo?
— Ele morreu, há muitos anos — respondeu Marcel, parando subitamente de sorrir e tomando um enorme gole de bebida.
— Eu sinto muito, Marcel — prestou condolências, o rapaz. — Qual era o nome dele?
— Seu nome era Laerte, ele era o filho de Leon — respondeu Marcel secando uma garrafa de bebida e abrindo outra em seguida.
— Filho de Leon? Ele nunca me disse que teve um filho.
— Isso não me surpreende, depois do que ele fez, qualquer um teria vergonha de admitir que já foi pai — falou Marcel mostrando muita irritação.
— Que história é essa? Explica-me melhor. Faz horas que você fica fazendo essas afirmações oblÃquas, mas não explica nada.
— São histórias muito antigas, garoto, deixe para lá.
— Eu gosto de histórias antigas.
— Mas essa é um tabu, é um segredo de Catônia, uma pessoa pode até perder a cabeça por contá-la ou até mesmo por ouvi-la.
— Você não me parece o tipo de homem que não conta uma história porque ela é proibida. Além do mais, não estamos mais em Catônia e só há nós dois aqui, ninguém mais vai ouvir essa história. Você deveria contar, me parece que está engasgada com ela há muito tempo, dá para ver a raiva estampada em seu rosto. Contar para alguém pode ajudar a amenizar — Marcel ouviu o garoto, mas permaneceu em silêncio, tomou mais alguns goles de bebida, pensou por alguns segundos, até que aparentemente tomou uma resolução.
— Você não é tão imbecil quanto aparenta, talvez um dia você vire um homem de verdade. Tudo bem, eu vou falar, mas o que eu vou te contar agora não pode ser repetido para ninguém, nem mesmo para o Leon. É alta traição contar e até mesmo ouvir isso que vou falar. Você está me entendendo?
— Sim, senhor!
— Não é muito importante para a história, mas vou começar falando um pouco sobre a minha trajetória como cavaleiro. Na época do rei Dioniso, ser cavaleiro era sinônimo de honra, glória e poder, e meu sonho sempre foi ser um. Minha mãe morreu quando eu era muito novo, meu pai não era um homem abastado, mas ele era honrado e respeitado, morávamos no interior, longe da capital do reino, tÃnhamos uma pequena fazenda com alguns animais. Meu pai era um obcecado pelo rei Dioniso, adorava-o como a um Deus, seu maior orgulho seria me ver como um de seus cavaleiros. Ele vendeu mais da metade de seus animais, pegou empréstimos com vários usurários, tudo para pagar minha armadura, minha espada, meu escudo e minha viagem para a capital. Foi com tristeza e felicidade no coração que ele me viu partir. Tristeza por ver ir embora seu filho único, mas felicidade por ter a esperança de que eu me tornaria um cavaleiro do rei Dioniso. Chegando à capital, fui direto ao centro de treinamento da cavalaria para ter a maior decepção da minha vida. Já naquele perÃodo, Leon era o chefe da cavalaria, quando eu disse a ele que queria me tornar um cavaleiro, ele me respondeu que era impossÃvel, pois apenas homens de famÃlia nobre podiam virar cavaleiros, o máximo que eu poderia ser era um soldado. Inicialmente eu fiquei muito triste, mas eu era jovem, estava na capital, podia ter um emprego de soldado e estava com o dinheiro que meu pai havia me dado para sobreviver nos primeiros meses nos bolsos. Nesse momento eu pensei que ser cavaleiro não era tão importante, me inscrevi como soldado, o treinamento começaria na semana seguinte. Aluguei um quarto em uma estalagem, mandei uma carta para meu pai informando que não poderia ser cavaleiro, mas que seria um soldado do rei, profissão tão nobre quanto a outra e ainda a serviço do seu amado Dioniso. Eu tinha uma semana antes do treinamento para soldado começar, bastante dinheiro e a capital era cheia de tentações, gastei muito com bebidas, mulheres e apostas, mas depois de seis dias eu tive que parar…
— O que houve? — indagou Adrian, incentivando o outro a continuar, já que depois de dizer isso o cavaleiro fez uma longa pausa para beber.
— Quando eu cheguei à estalagem, o dono do lugar me deu uma correspondência que eu pensei ser a resposta de meu pai. Não era, para falar a verdade eram péssimas notÃcias. Era uma carta de Teodoro, um velho que era nosso vizinho no interior. Ele dizia que meu pai nem tinha chegado a ler a carta que eu enviei, pois ele morrera, assassinado por um usurário que foi-lhe cobrar uma dÃvida e não recebeu o pagamento, mas que eu não me preocupasse com o desgraçado do usurário, pois a vizinhança o havia prendido, afinal, todos amavam meu pai. Logo meu pai, que nunca deveu nada a ninguém, morrera por uma dÃvida que ele contraÃra para me tornar cavaleiro, para me dar um dinheiro que eu gastei com prostitutas e bebidas. Ele morrera por minha causa. Teodoro terminou a carta pedindo desculpas por ter lido minha correspondência a meu pai, mas explicou que precisava me dar uma resposta e contar a terrÃvel tragédia. Ele prestava condolências pela perda e se mostrava muito triste por eu não ter conseguido me tornar cavaleiro, pois era tudo que meu pai mais queria em vida, todos na vizinhança já me viam como um cavaleiro.
— Eu sinto muito — disse o garoto.
— Não sinta, quem deve sentir muito sou eu e eu já senti até demais. Aquela carta me devastou. Meu pai havia morrido para me tornar um cavaleiro, eu não podia ouvir um “não†como resposta. Voltei ao centro de treinamento de cavaleiros e fui falar com Leon. Agradeci a oportunidade que ele me dera de ser soldado, mas disse que eu estava recusando. Ele me respondeu que era normal que os jovens desistissem diante da necessidade do cumprimento da autoridade. Eu lhe respondi que estava desistindo, não porque tinha receio de autoritarismo, mas sim porque só podia sair dali sagrado cavaleiro. Ele mais uma vez me disse ser impossÃvel, eu insisti, muitas e muitas vezes, até que ele teve que me expulsar de lá a pontapés. Eu não reagi, deixei que ele me expulsasse, que ele me agredisse e que ele me ofendesse, mas não desisti, eu tinha que me tornar um cavaleiro. Todos os dias, durante duas semanas eu insisti a ele para que me aceitasse como cavaleiro, todos os dias ele me negava esse direito, dizendo que eu era um rato, filho de uma cadela e de um porco, que apenas filhos de pais dignos poderiam virar cavaleiros. Eu engolia as ofensas e continuava tentando, ele me agredia violentamente, chegou até mesmo a quebrar meu braço, mas eu não podia desistir. Eu não tinha mais dinheiro para pagar a estalagem, então eu dormia em frente ao centro de treinamento dos cavaleiros. Todos riam de mim, julgavam-me um louco, os cavaleiros passavam por mim e diziam injúrias e pilhérias, mas eu não desistia e a fúria de Leon crescia cada vez mais, até que ele começou a me ameaçar de morte caso eu continuasse a insistir. Eu lhe respondi que, daquele momento em diante, eu só poderia viver como um cavaleiro juramentado pelo rei Dioniso, outro destino além daquele só podia ser a morte. Foi nesse momento que ele me deu a maior surra que já levei na minha vida, é verdade que eu não reagia nunca, mas tenho certeza que não faria diferença, talvez reagir fizesse com que ele apenas me agredisse com mais afinco. Depois da surra ele me jogou em um beco escuro, com o braço quebrado, sem dinheiro para comprar nem mesmo uma maçã para comer e tão dolorido que não podia nem ao menos levantar-me.
— Meu Deus! E o que aconteceu? — perguntou Adrian.
— Aconteceu que eu não aguentaria nem mais um dia daquele martÃrio. Eu fiquei no beco, esperando a morte chegar, estava tudo escuro, mas eu conseguia ver a silhueta de um cavaleiro se aproximando, a sombra da espada em sua cintura o denunciava. Eu pensei que Leon finalmente perdera a paciência e estava indo me matar, mas não era ele. Era um jovem cavaleiro, mais ou menos da minha idade, ele trazia um embrulho em suas mãos. Eu perguntei seu nome e ele me disse que se chamava Laerte e que era um cavaleiro do rei Dioniso. Ele sentou ao meu lado e disse que gostava de jantar naquele beco todas as noites, mas que sempre estragava comida porque comia pouco, então ele me ofereceu metade da sua janta. Eu aceitei e começamos a jantar, ele conversou comigo com bastante cordialidade, eu não pude aguentar por muito tempo, caà aos prantos. Era a primeira vez, desde que havia chegado à cidade, que alguém me tratava com cordialidade, não pelo meu dinheiro, mas simplesmente por eu ser humano. Laerte tinha um coração muito bom, diferente do velho rabugento que era seu pai, ele me disse palavras de consolo e perguntou o porquê de eu estar naquela situação. Eu contei toda a minha história, sobre meu pai, sobre a minha vergonhosa farra ao chegar à cidade e sobre a minha necessidade de me sagrar cavaleiro. Laerte ouviu tudo em silêncio, quando terminei de falar, ele olhou bem nos meus olhos e me disse para eu não me preocupar, pois eu seria um cavaleiro. Aquelas palavras me fizeram chorar em dobro, eu falei mais uma vez sobre a intransigência do chefe da cavalaria, que ele nunca me aceitaria. Laerte mandou-me calar a boca e disse mais uma vez para que eu não me preocupasse, pois eu seria sagrado cavaleiro, que isso era uma promessa que ele estava fazendo e um cavaleiro nunca descumpria uma promessa. Garoto, eu nunca senti tanta felicidade na minha vida como naquele momento, eu agradeci efusivamente aquele cavaleiro que mais me parecia com um anjo sagrado naquele momento. Ele foi embora, mas, antes de ir, me disse para comparecer no dia seguinte ao centro de treinamento de cavaleiros, pois esse seria o dia em que eu viria a me tornar um cavaleiro.
— E tudo deu certo mesmo? — indagou Adrian, cada vez mais empolgado com a história.
— Você nem imagina como foi mágico. No dia seguinte eu ainda estava muito fraco, mas a refeição da noite anterior me deu forças para que eu pudesse me levantar e seguir até o centro de treinamento. Chegando lá eu vi duas filas de cavaleiros dos lados da entrada, eles estavam esperando para me humilhar, eles me ofenderam, mandaram-me voltar, cuspiram em mim, mas eu segui impassÃvel. Eu não tive medo deles, mas confesso que tive medo que as palavras de Laerte fossem uma última piada para comigo, que assim que eu entrasse no centro de treinamento Leon me expulsaria novamente. Mesmo com todos esses receios e com todas as ofensas, entrei. Leon estava sozinho, sentado em sua cadeira, ele aparentava estar calmo, mas seu rosto transfigurou-se ao me ver, ele era a própria encarnação do ódio. Disse-me vários impropérios e me disse que dessa vez eu não escaparia, levantou-se, sacou sua espada e veio em minha direção. Eu pensei que seria o meu fim, que Laerte tinha feito uma piada de mau gosto, mas isso não era verdade, quando Leon chegou bem próximo a mim, um grito o interrompeu. Era o Laerte, ele vinha correndo, esbaforido, ele entrou atabalhoadamente no centro de treinamento da cavalaria, gritando para que Leon esperasse e o ouvisse. O chefe da cavalaria atendeu ao seu pedido, guardou sua espada e esperou para ouvir o que o jovem cavaleiro tinha a dizer. Laerte inicialmente deu sua palavra como cavaleiro e depois disse a Leon que eu deveria ser aceito como aspirante a cavaleiro. Leon enfureceu-se, disso que não tinha tempo para perder com tolices e mandou Laerte ir embora, mas o cavaleiro disse que não podia ir, pois estava prestando um serviço ao rei, disse que havia pesquisado meus antecedentes e descobriu que eu era descendente de uma famÃlia nobre. Leon disse ser impossÃvel, mas Laerte assegurou que não, que botava sua honra nisso. Ao ouvir isso, Leon ficou em silêncio, matutando sobre o que deveria fazer, até que ele perguntou se havia mais alguém que corroborasse com a história de Laerte, foi quando aconteceu a coisa mais impressionante que eu já vi na minha vida…
— O quê? Diga de uma vez, deixe de rodeios — disse Adrian roendo as unhas de curiosidade.
— Uma voz, garoto — disse Marcel. — A mais bela voz que eu já ouvi em toda a minha vida. Ela exalava confiança e autoridade. No exato momento que Leon perguntou se havia alguém que corroborasse o testemunho de Laerte, essa voz ecoou dizendo apenas uma palavra: “Euâ€. Ao ouvir essa voz, Leon pôs-se de joelhos, Laerte também e eu, instintivamente, imitei-os. Eu podia ouvir o som de centenas de homens se ajoelhando, era o som dos cavaleiros que faziam fila do lado de fora do centro de treinamento. Tudo parecia um sonho, moleque, eu estava em torpor. O próprio rei Dioniso entrou na sala em que estávamos, eu baixei minha cabeça, mas ele mandou que eu olhasse diretamente para ele. Sei que você deve pensar que o que eu vou dizer é bobagem, que eu estava delirando por causa da fome e da exaustão, mas, naquele momento, o rei me pareceu Deus. Ele olhou em meus olhos, eu lembro como se fosse hoje, e me disse: “Meu jovem, seu estado é lamentável, um cavaleiro deve estar sempre bem asseado, agora que você vai virar um, tenha sempre isso em menteâ€. Depois de dizer isso ele foi embora, os cavaleiros que estavam do lado de fora entraram para treinar, Laerte cumprimentou-me e seguiu com eles, fiquei sozinho na sala com Leon. Eu não sabia o que fazer ou dizer, continuei ajoelhado, até que um grito do velhote me acordou. Ele perguntou se eu estava surdo, disse que o rei havia me mandado tomar um banho e essa era a minha primeira tarefa como cavaleiro. Ele mesmo me arrastou até uma banheira e me jogou dentro, eu não estava me aguentando de emoção e chorava como um garoto. O velhote me disse que ninguém nunca poderia ver um cavaleiro chorando, por isso aquele deveria ser meu último choro. De todas as lições que o velhote me ensinou, essa foi a única que eu segui à risca, depois daquele dia eu nunca mais chorei, mesmo que alguns anos depois eu tenha tido motivos de sobra.
— Caramba, o próprio rei intercedeu por você. Isso é incrÃvel.
— Tudo graças a Laerte, ele foi pedir a ajuda do rei.
— E esse Laerte era o filho de Leon?
— Sim, Leon era pai dele. Para falar a verdade eu demorei muito tempo para descobrir, pois eles não se tratavam como pai e filho, mas sim como chefe e subordinado. Laerte era o mais dedicado cavaleiro, o mais fiel amigo que já tive e eu não pude fazer nada em relação a sua morte.
— Por quê? — indagou Adrian. — Como ele morreu?
— Que merda está acontecendo aqui? — Era Leon que acordou e foi ter com os dois. Eles ficaram surpresos com a recuperação súbita do velho homem, julgavam que ele ficaria desacordado por alguns dias.
— Quer dizer que você vai mesmo sobreviver? — perguntou Marcel com deboche.
— Vou sim, seu desgraçado. Onde estão aqueles ratos que eu contratei e por que a minha cabeça dói como se eu tivesse sido pisoteado por um cavalo?
— Eles nos traÃram, mestre — disse Adrian. — Marcel apareceu e nos salvou.
— Tolice, esse canalha não salvaria nem mesmo a própria mãe se isso o colocasse em risco.
— Mas é verdade, mestre. Eu mesmo vi — disse o garoto.
— Não precisa me defender, garoto — falou Marcel. — Ele é um homem que conhece um covarde quando olha para um, há muitos espelhos no reino para ajudá-lo.
— Você fala demais, Marcel — disse o velho cavaleiro. — Eu ainda vou fazer você engolir essas palavras.
— Não seja por isso, velhote, deixe que eu as engula sozinho. Vou me deitar, já está tarde, é melhor que você vá dormir também.
Marcel afastou-se e foi deitar-se longe dos dois. Adrian contou a Leon o que aconteceu, o cavaleiro ouviu tudo em silêncio. Não demorou muito para que Leon voltasse a dormir, era extraordinário que um homem da sua idade ficasse vivo depois de levar um golpe tão violento, o mais extraordinário era que ele tivesse conseguido se levantar ainda no mesmo dia, mas ele ainda era humano, precisava descansar, mesmo contra sua vontade, seu corpo adormeceu. Adrian ficou acordado, ele ainda tentou acordar Marcel para que ele contasse o resto da história, entretanto, o cavaleiro estava embriagado e roncava fortemente, nem mesmo empurrões conseguiriam acordá-lo. Adrian foi deitar-se, ainda curioso com a história da morte de Laerte e o que poderia ser tão proibido que não poderia nem ser dito em voz alta, mas, mesmo com todos esses pensamentos atribulando a sua mente, não aguentou e logo adormeceu.
Sonhou mais uma vez com Madeleine.