A vida é curiosa e misteriosa,
uma vez que estamos perto da morte ela reage de maneira espetacular. Algumas
pessoas veem toda a sua existência passar em alguns segundos, outras entram em
um estado de serenidade absoluta e conseguem ver espÃritos e entidades
fantásticas, Valentim não sentiu um nem o outro, ele só conseguiu sentir medo.
Depois que ele evitou o ataque do falcão gigante pulando para o lado, sua corda
foi cortada pelo golpe do pássaro e ele caiu. O bandoleiro sentiu um pavor tão
grande de morrer que acabou virando uma agonia fÃsica, uma dor lancinante
afligiu sua cabeça e sua perna, é claro que tudo foi muito rápido e que, depois
de alguns segundos, ele percebeu que a dor não era por causa do pavor de
morrer, mas sim porque um laço de corda havia prendido sua perna, impedindo-o
de cair, mas sua perna acabou sendo torcida na queda e sua cabeça atingida no
rochedo.
Roderick
também tinha visto o gigantesco pássaro se aproximando e, mesmo de longe, pôde
notar que ele pretendia atacar Valentim. O cavaleiro não perdeu tempo, tratou
logo de se apoiar em uma rocha, desatou sua corda, fez um laço e jogou-a na
direção do bandoleiro, prendendo seu pé e impedindo sua queda, pouco antes dele
cair para a morte. Roderick não ficou um perÃodo muito longo apoiado na pedra,
para ser mais exato ele saltou logo depois de ter arremessado a corda, sacou
sua espada no ar e caiu em cima do pássaro fincando-a em suas costas. O animal
emitiu um grasnado gutural, parecido com uma voz humana. O cavaleiro ficou
agarrado ao cabo de sua espada e o pássaro ficou dando giros no ar, tentando,
desesperadamente, remover a arma e o homem de suas costas, debalde. Depois de
muito tentar, ele desistiu e voou direto para uma janela do mosteiro,
arrebentou-a e entrou junto de Roderick.
A
cabeça de Valentim girava e ele não tinha ideia do que estava acontecendo, sua
visão estava turva e a dor afetava seus sentidos, mas ele pôde sentir que algo
o agarrava, ele pensou ser o monstruoso pássaro, então fez as pazes com seus
deuses e abandonou a vã tentativa de tentar ficar acordado, desmaiou. Tudo
estava escuro, mas a consciência dele estava plena, ele podia ver ao longe uma
luz que ia aumentando aos poucos, ela parecia mostrar uma escadaria. Ele não
tinha corpo, mas podia mover-se, então ele se encaminhou até a luz. Ela era
aconchegante e acolhedora, ele sentia-se maravilhosamente bem indo ao seu
encontro, no entanto algo estava errado, era como se ele tivesse se esquecido
de algo, uma coisa muito importante, mas que ele não sabia dizer do que se
tratava. Aquele sentimento começou a angustiá-lo. Um forte desejo de olhar para
trás invadiu seu âmago, no entanto, sabia que se o fizesse não poderia ir para
a luz. O anelo de olhar para trás venceu e o bandoleiro conseguiu ver uma
espécie de túnel negro, de dentro dele Valentim conseguiu ouvir gritos de
lamento, eram vozes conhecidas. Ele não precisou se esforçar muito para
reconhecer que era a voz de sua famÃlia que há tantos anos ele teve que deixar
para trás. Todo o desejo de ir para luz se evadiu de seu âmago, ele não poderia
ir para ela enquanto seus familiares estivessem na escuridão, se eles estavam
em um mar de lágrimas, ele deveria ir para junto deles, mesmo que, para isso,
tivesse que se afundar na lama. Valentim dirigiu-se ao túnel negro, ele tinha
um cheiro nauseabundo e semelhante ao de uma fossa, o bandoleiro acertou seu
rosto em cheio, então ele acordou.
Inicialmente
Valentim acreditou que ainda estava em um pesadelo, mas logo notou que o que
acontecia era uma triste realidade. O buraco negro nada mais era do que o
traseiro de Paulo, que havia levantado sua túnica e posto as nádegas próximas
ao rosto de Valentim, que despertou ao acertar sua cara nos fundos do monge.
Toda a surpresa e a experiência de quase morte sumiram, em seu lugar o ódio
cresceu no peito do bandoleiro.
—
PAULO, SEU DESGRAÇADO!!! — gritou Valentim e tentou esganar o monge, mas ele
correu gargalhando. O bandoleiro ainda tentou correr em seu encalço, mas sua
perna estava muito dolorida e Roderick apareceu e o impediu de continuar
tentando.
—
Calma, Valentim, estamos dentro do mosteiro, você não pode ficar gritando —
disse o cavaleiro tentando acalmar o outro.
—
Não me peça para ter calma, esse desgraçado botou a bunda na minha cara, me
solte para eu poder matá-lo.
—
Você precisava sentir um cheiro forte para acordar — disse o monge tentando se
explicar.
—
Se fosse isso você podia ter me feito cheirar álcool que funcionava, você fez
isso por pura pilhéria, seu maldito.
—
Mas foi isso que eu fiz, você sempre disse que eu bebo até encher o traseiro,
então eu botei um pouco de cheiro de bebida para você acordar — o bandoleiro
ficou colérico com essa brincadeira e tentava desesperadamente se libertar para
agredir o monge, mas Roderick segurava-o de maneira impassÃvel e implacável.
—
Acalme-se, Valentim — pediu mais uma vez o cavaleiro —, antes de tentar
matá-lo, saiba que foi ele quem te carregou nas costas e impediu que você
caÃsse do rochedo. Depois que o pássaro me jogou nesse quarto, eu terminei de
matá-lo e voltei para a janela e já ia descer para te salvar, mas o Paulo já
estava levando você nas costas e te carregou até aqui.
—
Como assim, aqui? — disse Valentim, finalmente abrandando um pouco sua fúria e
notando onde estava. Era um quarto enorme, seu piso era coberto por uma
cerâmica negra cheia de runas e inscritos ilegÃveis, o ambiente era todo
iluminado à luz de velas, mas eram poucas, deixando assim uma atmosfera
sepulcral. Ele não tinha móveis, apenas uma cama de colchão fino, sem lençol,
nas paredes estavam presas correntes e gaiolas. Diante de todo aquele recinto
sinistro, o que mais aterrorizou Valentim foi o cadáver de um homem ao chão,
nu, com uma espada fincada em suas costas.
—
Onde diabo nós estamos e quem é aquele ali? — disse o bandoleiro apontando para
o morto.
—
Já disse que estamos no mosteiro — disse Roderick em voz baixa —, faça
silêncio, ou vamos ter que começar um massacre aqui.
—
Parece que já começou — disse Valentim, referindo-se ao cadáver no chão.
—
Eu não sei o que aconteceu, esse homem não estava aà quando eu entrei. Depois
que eu matei aquele pássaro gigantesco, voltei para tentar te salvar, quando
olhei para onde havia deixado o corpo do animal, não havia mais pássaro, apenas
aquele homem com minha espada enfiada nas suas costas. Fiquei espantado, mas
minha atenção foi tomada por você. Paulo disse que você estava à beira da morte
e que precisava fazer uma coisa para te acordar, foi nesse momento que ele fez
aquele ato indecoroso.
—
Quer dizer que, antes desse desgraçado enfiar a bunda na minha cara, aquele
pássaro evaporou no ar e no lugar dele apareceu esse defunto? — perguntou
Valentim incrédulo.
—
Exato, não faço ideia do que tenha acontecido — concluiu o cavaleiro.
—
Não precisam se preocupar, era só o sacana do Francisco — disse Paulo,
finalmente dando atenção ao cadáver. — Ele era um babaca mesmo.
—
Você conhecia esse homem? — perguntaram os dois praticamente ao mesmo tempo.
—
Claro, eu conhecia esse lazarento. Ele era o baba-ovo. Francisco, o traidor.
Ele ficava voando por aÃ, sempre entregando os monges que fugiam do mosteiro.
Tenho certeza que ele já derrubou alguns.
—
Como assim, voando? — mais uma vez indagaram em coro os outros dois.
—
Quando se transformava em pássaro, ele ficava vigiando o mosteiro, matando
invasores e entregando os monges fujões aos superiores.
—
Sem chance — disse Valentim duvidando da história.
—
Você está me dizendo que esse homem era o pássaro gigante que eu matei? — quis
saber o cavaleiro.
—
É exatamente isso, mas não precisa ficar com peso na consciência, esse cara era
um sacana e merecia o fim que teve. Tenho certeza que ele teria matado a todos
nós.
—
Isso é baboseira, Augusto — disse o bandoleiro. — Paulo é um louco, não preste
atenção nas tolices dele.
—
E como você explica o pássaro ter sumido? Ou mesmo que haja um pássaro daquele
tamanho? — indagou outro.
—
Não sei, mas deve ter alguma explicação lógica — sugeriu Valentim.
—
Esqueça a lógica ao entrar nesse mosteiro, meu amigo sem fé — disse Paulo. —
Aqui vocês verão coisas assim, homens que viram animais, voam, soltam fogo pela
boca, cospem flechas e toda sorte de coisas loucas.
—
A única coisa louca que eu vejo aqui é você — disse o bandoleiro. — Não fosse
por Augusto eu não teria vindo aqui ouvir as suas sandices.
—
Eu posso até ser louco, mas de algumas coisas eu sei. Sei que aqueles pés são
bem estranhos e também sei que você beijou minha bunda — assim que ele disse
isso, Valentim pulou em sua direção e começou a estrangulá-lo, não demorou
muito e Roderick tirou-o de cima do monge.
—
Por favor, me deixe matá-lo — implorou o bandoleiro.
—
Não, acalme-se e olhe os pés daquele homem — disse Roderick enquanto virava o
rosto de Valentim para o cadáver.
—
Qual o proble... — ia perguntar Valentim, mas não precisou que ninguém lhe
respondesse, pois ele mesmo conseguiu identificar, o cadáver tinha garras de
pássaro no lugar dos dedos. — Que merda é essa?
—
É a transmutação — disse Paulo esfregando o pescoço machucado pelo
estrangulamento. — Alguns monges fizeram pactos com demônios que concedem o
poder de se transformar em animais. Creio que se você virar monge, poderá se
transformar em mulher, como sempre foi seu sonho.
—
Não enche o saco — disse Valentim —, será que você não pode completar uma
sentença sem me ofender? Deixe de brincadeira e diga verdadeiramente o que é
isso nesse homem.
—
Eu já disse a verdade, mas têm alguns cornos que nem vendo a mulher dormir com
outro homem querem acreditar.
—
Isso é uma loucura — disse o bandoleiro. — Mas, me diga uma coisa, se você já
sabia desse pássaro-homem gigante, porque não nos alertou?
—
Dois motivos. Primeiramente você não ficaria alerta se eu dissesse que tem um
monge voador que pode te matar.
—
E qual é o outro motivo? — perguntou o outro.
—
O outro é que eu havia me esquecido — disse Paulo sem embaraço.
—
Esqueceu-se que haveria alguém tentando nos matar? Meu Deus, o que estamos
fazendo aqui com esse imbecil? Vamos embora Augusto, esse louco vai nos matar.
—
Não, ele será nosso guia — disse o cavaleiro de forma resoluta. — Estamos atrás
do Sombra Negra, Paulo disse que, aqui nesse mosteiro, coisas sobrenaturais
ocorriam e, mesmo contra a minha credulidade, as coisas estão começando a se
mostrar, é questão de tempo para que possamos entender o que realmente
aconteceu com as minhas protegidas. Nós precisamos dele.
—
Está vendo, Valentim, o macho alfa confia em mim. Pelos velhos tempos, confie
em mim você também.
—
Só se eu fosse louco. Eu nunca confiei em você, nem nos velhos tempos, mas eu
estou a serviço de Augusto, se ele quer seguir você, então tudo bem.
Paulo
ficou satisfeito e sorridente, mais do que o de costume, se é que isso era
possÃvel. Valentim ainda queria matá-lo, no entanto estava bem mais calmo do
que quando acordara com o susto. Roderick tirou sua espada do cadáver, limpou-a
e guardou-a. Ele estava muito ansioso com a possibilidade de finalmente obter
respostas. O monge levou-os para fora do quarto e guiou-os até um corredor
escuro, cheio de portas com outros quartos iguais. Não havia monges no
corredor, mesmo depois de toda a algazarra no outro quarto, Paulo disse que
isso era comum, pois esse era o horário em que os monges aprimoravam seus
estudos para encontrar demônios e por isso não havia nenhum fora de seus
aposentos. Eles seguiram por algumas centenas de metros até um quarto que Paulo
disse ser o dele, era muito parecido com o outro, mas depois que o monge
acendeu as velas eles puderam notar muitas diferenças, como quadros de mulheres
nuas nas paredes, várias garrafas de bebidas vazias no chão e uma estante cheia
de livros.
—
Esse é o seu quarto? Como faremos para encontrar o demônio que você falou? —
perguntou Roderick.
—
É, aqui é meu antigo quarto, o meu castelo — disse Paulo enquanto se jogava na
cama.
—
Uma pocilga, isso sim — disse Valentim. — O que viemos fazer aqui?
—
Nós, meu caro beija-bunda, iremos ao reino dos demônios — disse o monge
enquanto tirava uma sacola debaixo de sua cama.
—
Beija-bunda é o corno do seu pai. Que porcaria é essa que você está tirando
debaixo de sua cama?
— Isso, papai, é a nossa
carruagem — disse Paulo abrindo a sacola.