Roderick
se sentia esquisito, desde que tivera a idade suficiente para vesti-la, ele
usava aquela armadura, tirando-a apenas para dormir e assear-se, agora, sem ela,
ele sentia-se nu. Seu traje agora era composto apenas por uma camiseta preta,
um lenço branco que ele punha ao redor do pescoço, calças brancas e botas
também com detalhes pretos e brancos, sua bainha e espada ficavam do lado
direito, presas ao seu cinto. O cavaleiro sentia que havia perdido um membro do
corpo, ou mesmo um ente querido. Ele estava taciturno e galopava seu corcel em
silêncio. Valentim seguia ao seu lado e observava-o com compaixão, ele também
sabia o que era perder uma coisa que ele gostava muito, afinal, perder todas as
economias de uma vida machucava a qualquer um.
— Roderick, tenho certeza que ele
cuidará bem da sua armadura — disse o bandoleiro de forma consoladora.
— Obrigado, Valentim. Eu anseio que
isso realmente aconteça, pois não sei o que eu faria se perdesse um bem tão
valioso. Sou uma vergonha para a minha famÃlia.
— Isso não é verdade — falou o
bandoleiro —, dificilmente alguém teria vergonha de você.
— Você acha mesmo? — perguntou
retoricamente o cavaleiro. — Eu sou o primeiro Roderick a falhar em uma tarefa
de proteção, não obstante, também sou o primeiro Roderick a me unir a um
criminoso, embora eu veja que você é uma boa pessoa. Agora, para completar a
minha desgraça, eu sou o primeiro Roderick a abandonar sua armadura.
— Você está exagerando, isso não
pode ser verdade, claro que algum dos seus antepassados já devem ter cometido
erros semelhantes.
— Caro Valentim — disse o cavaleiro
tentando explicar —, vejo que você não tem a mÃnima ideia do que é ser um
Roderick. Não basta que eu seja bom, nem de longe isso é o suficiente, eu tenho
que ser o melhor, faz parte da nossa missão sermos impecavelmente perfeitos em
nossas tarefas. Todas as histórias da minha famÃlia são passadas adiante, nós
todos conhecemos os feitos de nossos antecessores, nenhum de meus antepassados
já esteve em tamanha vergonha quanto eu estou agora. No futuro, meus
descendentes lembrarão de mim como exemplo a não se seguir.
— Você se cobra demais, antes de
tudo você ainda é humano e seus antepassados também foram. Algumas histórias
podem ter sido inventadas ou enfeitadas. Lembre-se, meu amigo, nunca se deve
olhar por baixo da maquiagem das meretrizes.
— Primeiro, nós nunca mentimos, em
hipótese alguma; e segundo, não podemos nos contentar em ser apenas humanos,
pois nossa missão está além dos poderes de um homem comum. Nós temos que
superar todos os limites dos seres humanos, pois temos uma grande missão, uma
promessa inquebrável, feita por Eli Roderick.
— E quem seria esse? — perguntou
Valentim.
— Ele é o primeiro Roderick que já
existiu.
— Então ele é o culpado de vocês não
poderem mentir e terem que ser os melhores guerreiros do mundo?
— Essa é uma história que poucos
conhecem, afinal, as pessoas não gostam de estudar, mas essa consta nos anais
de nosso reino. Você gostaria de ouvir?
— O caminho é bem longo. Se não for
incômodo da sua parte, gostaria de ser entretido com uma boa história.
— Não será incômodo nenhum. Não sei
se você sabe, mas há muito tempo, Catônia não era um reino, era um amontoado de
vilarejos que viviam em briga. Fome, miséria e discórdia eram as coisas com que
todos tinham que conviver. Meu antepassado, Eli, perdeu amigos e familiares em
guerras tolas e sem sentido. Ele temia perder também sua esposa que estava
grávida de seu primeiro filho. Um dia surgiu um homem que mudou tudo isso, seu
nome era Dalton, ele é o descendente mais antigo de Diógenes. Dalton não só era
um guerreiro exemplar, mas também possuÃa certo magnetismo pessoal que atraÃa
as pessoas para seu comando. Ele queria a unificação dos vilarejos, o fim das
discórdias e da fome.
— Então foi esse cara que fundou
Catônia? — indagou Valentim.
— Sim, foi esse o homem que erigiu
Catônia. Foi em busca do sonho de paz que Eli decidiu seguir Dalton. Meu
antepassado prometeu que se Dalton conseguisse trazer paz para os vilarejos,
ele e seus descendentes seriam seus soldados e também de seus descendentes
enquanto existisse a unificação dos reinos. Ele também prometeu que seria seu
maior guerreiro, mas também prometeu que se Dalton falhasse em manter a paz do
reino, ele seria seu pior algoz. Dalton aceitou os serviços de Eli e, no alto
do maior rochedo de Catônia, nomeou meu antepassado como seu cavaleiro e
chamou-lhe Roderick. A união do comando de Dalton com a força de Eli Roderick
trouxe paz para os vilarejos e ergueu o reino que hoje conhecemos como Catônia.
— Então é por isso que vocês todos
seguem as ordens do rei?
— Nós servimos as ordens do rei
porque Catônia precisa disso, sem comando nós voltarÃamos à barbárie, fome e
morte de irmãos por irmãos assolariam todo o reino. Eli Roderick prometeu
seguir o rei enquanto ele pudesse manter a paz no reino, nós, os Rodericks,
devemos lutar sempre ao lado do rei de Catônia, para garantir a continuidade do
reino.
— Então não importa se o rei for um
canalha, vocês têm que obedecer suas ordens? — indagou Valentim de forma
capciosa. — Não me leve a mal, mas Diógenes é um crápula, eu já negociei com
ele e, com toda a certeza, ele é a pessoa mais cruel que eu já conheci, e olha
que eu vivia em um covil de bandoleiros.
— Nem todo homem nasce para ser bom,
até mesmo em minha famÃlia já nasceram homens de Ãndole maligna, que, no
cumprimento do dever, matavam por prazer. Não importa se o rei é bom, nem mesmo
que seu melhor guerreiro seja bom, o que importa é o reino. Enquanto nossa
união sustentar o reino, nós não desfaremos nossa palavra. Nosso código de
honra nos obriga a sempre contar a verdade, embora isso nos prejudique, e que
sejamos sempre justos, ou seja, por mais que nasça um Roderick mau, ele sempre
obedecerá ao código, pois nosso orgulho nos obriga a isso.
— Quer dizer que apenas o orgulho
faz com que vocês sejam os melhores combatentes do mundo?
— Para Eli foi diferente, ele tinha
que se tornar o melhor para que o reino fosse fundado, seu primeiro filho,
Dário Roderick, já nasceu em Catônia, ele não chegou a ver a desgraça que é ter
vilarejos em frangalhos, o que o motivou a ser o melhor guerreiro do mundo foi
o orgulho. Seu pai era imbatÃvel, o melhor guerreiro que já havia empunhado uma
espada, para orgulhá-lo, Dário tinha que ser tão bom quanto ele e assim ele
foi. Seu filho enfrentou o mesmo dilema, não podia envergonhar seu pai e seu
avô, pois eles foram os melhores guerreiros do mundo, então ele também teve que
ser o melhor. Nos ombros do último Roderick está o fardo do orgulho de todos os
seus antepassados; ele tem que ser o melhor para não envergonhar seu pai e a
todos aqueles que vieram antes dele. Esta é a minha sina.
— Sinceramente, para mim vocês são
mais teimosos do que qualquer outra coisa — concluiu Valentim. — Essa história
de ser o melhor e ter que obedecer ao maior crápula do mundo para mim não passa
de teimosia.
— Você nunca entenderia. Depois que
eu vi os sacrifÃcios que meu pai fez e o quanto eles foram penosos para ele, eu
entendi que nunca poderia faltar com minha missão para com Catônia — suspirou
Roderick.
— Eu entendo, só não concordo, mas,
afinal, o que um bandoleiro poderia saber sobre honra e promessas ancestrais,
não é? Você está errado apenas em uma coisa.
— E o que seria? — perguntou o
cavaleiro.
— Você não será lembrado como uma
desgraça, mas sim como o Roderick que esteve a serviço do pior rei que Catônia
já teve. O Roderick que completou a missão mais difÃcil que qualquer um de
vocês já teve, quiçá você será o primeiro a matar uma criatura sobrenatural.
Não se preocupe, seus descendentes terão orgulho de você.
— Muito obrigado pelas palavras de
apoio que eu tanto precisava nesse momento — agradeceu efusivamente o cavaleiro
—, cada vez mais eu enxergo em você um amigo. Espero que, quando tudo acabar,
nós possamos nos ver e que você deixe a vida do crime.
— Roderick, você é muito ingênuo.
Esteve tanto tempo ocupado se tornando o melhor guerreiro que não vê como
Catônia se encontra. Não há vida sem crime por lá. Sinto dizer que quando nossa
aventura terminar eu não poderei mais te ver, pois vou embora do reino.
— Mas por quê? Você será rico,
poderá viver bem em Catônia.
— Eu tenho uma promessa a cumprir —
disse Valentim —, tenho que ir ao extremo oriente para cumpri-la.
— Se não for do meu interesse, por
favor, não a conte, mas se eu puder ajudá-lo, peço que me diga do que se trata
— disse Roderick com determinação.
— Você já está me ajudando, para
falar a verdade é você quem vai tornar minha promessa uma realidade. Eu nunca falei
disso com ninguém, até porque eu nunca tive a quem falar, mas agora que estamos
nos tornando amigos, eu acho que poderei contar isso.
— Sou todo ouvidos.
— Eu não sou nativo de Catônia, eu
sou de Trieste, um reino no extremo oriente. Quando eu era criança, meu reino
foi atacado pelo seu vizinho, Trento. Minha famÃlia foi presa e nós nos
tornamos escravos. A escravidão é muito comum em Trento, eles são comerciantes
de escravos que vendem pessoas para o mundo todo. Um comerciante itinerante de
Catônia, chamado Baltos, viu potencial em mim, por algum motivo que não sei
explicar, e me comprou para servir como seu ajudante em Catônia. Tive de deixar
minha famÃlia, mas eu prometi que eu conseguiria muito dinheiro, o suficiente
para comprá-los e comprar também um feudo, pois se eu tiver um, serei um senhor
feudal, praticamente um rei e não se pode roubar os escravos de um senhor
feudal, isso é lei em Trento. Com isso eu os protegeria de serem escravizados
novamente. Baltos me ajudou muito. Ele era um velho ladrão disfarçado de
comerciante, o melhor que já ouvi falar, mas também era uma boa pessoa. Posso
afirmar que nunca encontrei ninguém tão bom quanto ele. Na arte da banditagem,
ele era o melhor dos melhores. Todavia, mesmo o melhor do mundo, está fadado ao
fim. Ele se encontrou com a última cela do bandoleiro, a morte. Morreu de uma febre brutal e rápida, mas,
antes do fim, lembrou-se de me libertar. Depois disso, fiquei só em Catônia,
com apenas algumas moedas que o velho Baltos havia me dado. Tentei ser muitas
coisas antes de decidir virar bandoleiro, mas, no fim, era tudo que eu podia
fazer para tornar-me rico em um reino cheio de corrupção e também era tudo que
o mestre Baltos havia me ensinado.
— Valentim, eu não imaginava — disse
Roderick surpreso. — Sempre pensei que seus motivos fossem mesquinhos, mas
agora sei que não me aliei a um reles criminoso.
— Muitos criminosos entram para o
crime por bons motivos, é irônico, mas é verdade. Agora vamos deixar para nos
conhecermos melhor em outro momento, pois já estamos chegando.
— Como assim? — perguntou Roderick
surpreso. Seguiam por uma estrada na montanha, eles se dirigiam rumo a um
mosteiro que ficava no topo da mesma, mas não estavam nem na metade do caminho
quando Valentim disse isso.
— Antes de chegarmos ao mosteiro
temos que falar com um amigo. Ele se chama Paulo e é um dos monges do mosteiro.
Ele é o encarregado de comprar as bebidas das mãos dos traficantes.
— E por que precisamos falar com
ele? — indagou Roderick com curiosidade.
— Porque esses monges não recebem
visitas. O mosteiro é fechado, apenas monges podem entrar. Ele é o
intermediário entre as negociações.
— Ótimo, ele poderá nos dar as
informações que precisamos.
— Eu vou logo te avisando que ele é
um rapaz bem jovem e sabe ser muito irritante. Para falar a verdade, eu mesmo
já tentei esganá-lo algumas vezes, por causa de algumas piadas infames que ele
costuma dizer. De preferência, seria melhor que você procurasse não conversar
com ele para que ele não te ofenda.
— Ele não será louco — disse o
cavaleiro com rispidez.
— Será sim, ele é um imbecil, mas
você não pode perder a paciência com ele. Nós precisamos dele para cumprir a
sua missão, lembre-se disso. Por favor, preste bastante atenção ao que vou
dizer, se ele perguntar seu nome, já que você não pode mentir, apresente-se
apenas como Augusto, pois esses monges são letrados e conhecem a história da
sua famÃlia. Não queremos que algo como o que aconteceu em Viseu se repita. Sua
identidade tem que ficar em segredo.
— Isso me será odioso, você bem
sabe, mas se você diz que isso é necessário, então tudo bem, assim eu o farei —
disse Roderick com resignação.
O local onde as mercadorias eram
recebidas pelo monge era um velho casebre que ficava à direita da estrada,
seguindo por um caminho com algumas árvores ressecadas, de tronco grosso, com
poucas folhas, elas ficavam bem espaçadas umas das outras. Eles amarraram seus
cavalos em uma dessas árvores, na que parecia mais resistente, e seguiram a pé
até o casebre, que mais parecia um estábulo.
A construção era bem simples, só tinha uma
enorme porta dupla no seu meio, uma janela à direita e era toda feita de
madeira. Valentim seguia até lá quando, de repente, um som cortou o ar, uma
flecha foi disparada em direção à cabeça do bandoleiro, que demorou alguns segundos
para entender o que aconteceu. Foi tudo muito rápido, primeiro ele ouviu o som,
depois ele se assustou com Roderick que fez um movimento muito veloz deixando-o
confuso. Demorou mais alguns segundos para que ele conseguisse entender que
estavam sendo atacados e que Roderick havia segurado a flecha no ar, poucos
centÃmetros antes dela o atingir, o mais assombroso para Valentim foi que o
cavaleiro nem ao menos tinha virado o rosto para apanhá-la. Roderick empurrou
Valentim para trás de uma árvore e correu na direção de onde a flecha foi
disparada.