A situação era grave, estavam presos, para ser mais exato eles se trancaram para que a turba ensandecida não os massacrasse, por isso estavam sitiados. O garoto já estava arrependido de ter feito com que os cavaleiros interviessem no enforcamento, ele nunca teria imaginado que aquilo terminaria daquele jeito. Marcel sangrava muito, Adrian não conseguia imaginar o porquê de ele ainda não ter desmaiado. Leon não havia se machucado, mas estava desarmado. Ibraim e o outro homem estavam desacordados, talvez mortos.
— Você mostrou mesmo para aqueles caipiras como eles devem ter respeito aos grandes cavaleiros de Catônia — gracejou Marcel e tentou gargalhar, mas uma forte dor nas costelas o impediu.
— Em vez de ficar falando asneiras, fique quieto, tenho que estancar esse seu sangramento, ou você vai morrer como o porco que é — enquanto dizia isso, Leon cortava algumas tiras de pano e amarrava-as ao flanco do outro cavaleiro.
— Atingido por um maldito forcado de um camponês lazarento. Isso é uma vergonha. Se aqueles homens estivessem armados de verdade eu já estaria conversando com o Capeta. Talvez eu devesse voltar para o centro de treinamento, velhote.
— Deixe de se fazer de deferente, sei muito bem que você só se distraiu por minha causa. Naquela hora você salvou minha vida, não acho que eu seria capaz de enfrentar todos aqueles camponeses desarmado. Você não é um completo inútil — o velho cavaleiro terminou o curativo e estava visivelmente envergonhado.
— Isso foi o mais próximo de um elogio que você me fez desde que eu te conheço, a sua demonstração de gratidão chega a ser comovente. Da próxima vez, não arremesse sua espada para salvar o merdinha do Adrian, ele não vale o esforço, é só um estorvo e não faria falta a ninguém.
— Vai à merda, Marcel — praguejou o garoto. — Maldita hora a qual eu me preocupei com você, espero que você morra.
— Pelo visto você vai ter que esperar mais, moleque, parece que o velhote conseguiu estancar o sangramento.
— Mas isso não significa que você não corre mais perigo. Você não poderá mais batalhar por alguns dias, me dê sua espada, eu o protegerei.
— Ao inferno você e a sua pena, seu velho desgraçado. Não toque na minha espada — disse furiosamente Marcel, deixando de lado as pilhérias. — Você não tem o direito de segurar minha espada. As suas mãos covardes não são dignas de tocar essa arma. Tome conta da sua vida, pois eu posso me defender muito bem sozinho.
— Pois morra de uma vez, seu traste — disse o cavaleiro furioso pela ofensa. — Faço minha as palavras do garoto, maldita hora em que eu me preocupei com você.
— Vejam, o prefeito está acordando — disse o Adrian, fazendo com que a discussão se encerrasse.
De fato o homem se levantava, aparentemente tivera uma concussão quando a forca que o prendia fora cortada por Leon. Seu pescoço doía e a marca da corda estava evidente em sua pele. Coçava muito e era excruciante pôr a mão por sobre a pele esfolada.
— Caramba! Minha garganta dói muito. Então foram vocês que me salvaram? Eu lhes devo um agradecimento — disse o homem após se recompor. — Pensei que dessa eu não escapava.
— Ainda é cedo para agradecer — disse Marcel. — Não estamos na sua casa por querer.
— O que aconteceu, exatamente? — perguntou o prefeito, finalmente notando que estava em casa, em seu gabinete de estudos.
— O que você quer saber? — perguntou retoricamente o velho cavaleiro exalando desdém. — Que fizemos a tolice de tentar exercer autoridade contra uma cidade furiosa para salvar um velho bandido e um garoto libertino? É, nós fizemos essa besteira. Você estava vendado, por isso não viu. Eu subi ao púlpito e, com a autoridade de chefe da cavalaria de Catônia, a senhora de Quendor, cancelei os enforcamentos. Os habitantes ficaram contrariados, mas até teria dado certo se um homem não tivesse soltado sua corda pelas nossas costas. Você teve sorte de não ter partido o pescoço. Eu cortei a corda e também o homem por ter desobedecido uma alta autoridade, isso irritou a multidão que começou jogando pedras, depois passaram a querer nos queimar e nos furar com forcados.
— Meu Deus, que loucura — disse o prefeito. — Maldito Roderick, é tudo culpa dele.
— Eu sei bem como é — disse Marcel enquanto se acomodava em uma poltrona. — Para ser bem sincero, eu só ajudei você porque eu o odeio e deduzi que a culpa era dele por você estar sendo enforcado.
— Cale-se, Marcel — disse Leon. — Isso não é verdade. Ajudamos você porque somos cavaleiros de Catônia e vocês de Viseu nos devem subserviência…
— Besteira.
— Já mandei você calar a boca — disse o velho cavaleiro com tanta autoridade na voz que fez até Marcel obedecer. — Como eu dizia, viemos ordenar que você, como prefeito, deve nos leve até o rei de Quendor, pois precisamos chegar lá com urgência. Quando chegamos aqui em Viseu, você estava para ser enforcado e isso dificultaria a burocracia, teríamos que esperar outro prefeito ser eleito, para depois ele nos levar ao rei. Salvamos você porque não queríamos dificultar as coisas para nós, mas parece que fizemos o contrário.
— Eu sou filho do rei — disse Adrian. — Estamos indo até meu pai para que ele nos ajude a deter o cavaleiro chamado Roderick.
— Você é o filho do rei, o menino Adrian? Levado há tantos anos aqui do reino? — indagou Ibraim.
— Sim, sou eu.
— Você não deve se lembrar de mim, mas eu aparecia muitas vezes no castelo de seu pai. Segurei você no colo quando era um bebê. Sabia que tinha achado seu rosto familiar, afinal, você não mudou muita coisa…
— Mudou sim, ele mudou de merdinha para o merda que é agora — interrompeu Marcel. — Sei que é muito bonito que vocês tenham se reencontrado, mas chega de pieguice, vocês não estão ouvindo o barulho? Eles estão derrubando a porta da frente e, dentro em pouco, estarão aqui. Sugiro que parem de falar merda, peguem um livro, uma cadeira, ou qualquer merda que sirva para se defender e fiquem prontos.
— Não será necessário, cavaleiro. Vocês tiveram muita sorte de me trazer até minha casa, principalmente ao meu escritório. Vou seguir sua sugestão e pegar um livro — ao dizer isso o prefeito se encaminhou até uma estante de livros, puxou um, fazendo com que um mecanismo secreto movesse a estante para o lado. Revelando uma passagem. — Venham por aqui.
Ibraim entrou pela passagem, Marcel e Leon entraram logo em seguida. O garoto arrastou o homem ferido para dentro e a passagem se fechou logo em seguida. Caminharam por um corredor estreito e pouco iluminado, logo ele tornou-se uma rampa que, cada vez mais, levava-os para baixo. Depois de alguns minutos, chegaram a uma sala oval, cheia de armas penduradas nas paredes, diversas armaduras estavam empilhadas ao lado de um pequeno monte de moedas de ouro e diamantes. De assento só havia um singelo banco na sala.
— Desculpem a falta de comodidade, mas esse lugar não foi feito para receber visitas. Aqui é o meu local secreto, onde guardo todo o meu tesouro, construído por mim e nunca recebeu os pés de nenhum outro homem.
— Que merda, hein? Acabamos com o seu localzinho onde podia se masturbar sem ser atrapalhado. Agora ele não é mais secreto — disse Marcel enquanto sentava no banco aparentando sentir muita dor nas costelas. — Embora eu não seja mais velho do que vocês dois, ainda assim reivindico o banco para mim.
— Não tem problema algum, pode ficar com ele — disse o prefeito ignorando o motejo. — Como eu dizia, esse local é o meu refúgio, não precisam mais se preocupar, pois aqui estamos a salvo.
— Ibraim, a situação é crítica — disse Leon. — Embora esse canalha ainda possa dizer gracejos, ainda assim morrerá se não for tratado.
— Ele será tratado, depois que vocês me ajudarem a recuperar o meu cargo. Tudo não passou de um plano de meus adversários para me depor.
— Não é do nosso interesse — disse secamente Leon.
— Mas é claro que é. Pelo que eu presumo, vocês são os miseráveis que foram incumbidos da ingrata tarefa de levar Roderick de volta. Não estou certo?
— Algo do tipo. Prossiga.
— Pois fiquem sabendo que posso ajudar. Como podem ver, tenho bastante dinheiro para recompensá-los. Também posso levá-los ao rei, ou até mesmo ao encontro de Roderick, uma vez que ele me disse para onde iria. Todavia, só poderei fazer isso se recuperar meu cargo. Vocês também não estarão seguros enquanto eu não voltar a ser prefeito. Vocês vão ser caçados por terem me ajudado, não conseguirão sair com vida daqui.
— E o que você tem em mente? — perguntou Leon.
— Deixe-me explicar rapidamente a situação na qual vocês se meteram. Sou prefeito de Viseu há mais de cinquenta anos e sempre garanti que a minha cidade fosse a mais respeitada no ramo do tráfico. Nosso trabalho é o mais bem-feito e temos acordos secretos com todos os reinos, tudo por minha causa, do meu trabalho árduo.
— Não é da nossa conta a sua vida miserável — disse Marcel com muita dificuldade. — Não sei se você notou, mas temos pressa.
— Eu não vou me alongar muito, mas tenha paciência, afinal, precisamos conhecer aqueles que teremos que matar.
— Que seriam? — perguntou o chefe da cavalaria.
— Aqueles que anseiam tomar meu posto. Principalmente o homem que você cortou, provavelmente era Ismail, aquele usurário imundo. Ele me odeia porque proíbo que ele bata em seus devedores na cidade, pois gera muita desordem. Ele sempre quis me ver morto, mas ontem foi quando teve a oportunidade de ouro.
— O que houve?
— Roderick, foi isso que houve. Ele chegou na cidade, trazendo esse rapaz no ombro e causando muito estardalhaço. Os guardas vieram para levá-lo à delegacia, mas ele não quis e acabou decepando o dedo de quatro guardas, inclusive o do chefe da guarda.
— Um homem na rua nos contou isso sobre um cavaleiro, logo deduzimos que se tratava de Roderick, pois isso é bem a cara dele — disse Marcel, enquanto fechava os olhos e punha a mão na testa.
— Quatro homens, contra apenas um? — questionou Adrian. — Os seus guardas não são os melhores, não é mesmo?
— Como assim? — perguntou Ibraim com espanto, enquanto Marcel e Leon abriram um sorriso no rosto. — Você não ouviu quando eu disse que se tratava de Roderick?
— Ele ouviu, só é burro demais para entender — disse Leon. — Não ligue para ele, continue.
— Tudo bem. O cavaleiro me contou que achou esse rapaz na estrada, sendo espancado por três homens. Ele interveio, dominou os três homens, amarrou-os fora da estrada, afinal, não conseguiria levar os três para a prisão, e veio para levar o garoto ao hospital, pois ele havia sido muito ferido pelos três homens. Foi um colega chamado Valentim que me alertou que Roderick estava na cidade e era preciso que eu o ajudasse para que ele fosse embora antes de causar uma desgraça.
— Então ele chegou tarde. Finalmente entendi. Quer dizer que Valentim está com ele, por isso achamos seu cavalo, e isso explica o porquê aqueles homens estavam amarrados nos matagais da floresta — disse Marcel abrindo os olhos. — Esses homens foram comidos vivos por lobos porque deixaram eles lá por mais de um dia, nós tivemos que enterrá-los antes que os malditos lobos deixassem apenas suas botas. Por que ninguém foi tirá-los de lá?
— Que horror! — disse o prefeito.
— Horrível mesmo — dessa vez quem falou foi Leon. — Foi uma cena infernal de se ver. Assim como Marcel, eu pergunto, se o Roderick disse ontem onde estavam esses homens, por que eles ficaram lá, amarrados, para servirem de comida aos lobos?
— Ora bolas. Isso se deu porque ele só contou isso para mim e para os guardas que ele mutilou. Antes que eu pudesse mandar alguém para remover esses homens da floresta, começou a revolução que me depôs.
— Como assim, o que aconteceu realmente? — perguntou Adrian.
— Ismail, o usurário, aproveitando-se do fato de eu ter defendido Roderick contra os guardas, foi atiçar os guardas mutilados contra mim. Embora eu alegasse que fiz aquilo para evitar um massacre, não adiantou, eles se inflaram e começaram a convocar homens para me depor.
— Fácil assim? — perguntou Leon. — Você foi prefeito por cinquenta anos, não arrumou aliados nesse período? Como ele conseguiu que a cidade inteira ficasse contra você?
— Mais uma vez a culpa é do Roderick — disse o velho prefeito. — De todas as malditas pessoas do mundo que ele podia ter protegido, foi escolher justamente o homem que já dormiu com metade das mulheres comprometidas de Viseu. Esse canalha desmaiado aí do lado de vocês se chama Alexey, o hobby dele é conquistar mulheres que já tenham parceiros. Os Rocha estavam com ódio mortal dele, pois ele dormiu com Alandrina, uma flor de dezesseis anos, mulher do jovem garoto Rocha; ele também levou para casa a Rosalina, uma bela e madura senhora de trinta e cinco anos, a mulher do senhor Rocha; mas o mais absurdo foi que ele também aliciou a velha senhora Matilda. Uma velhota de mais de 60 anos, justamente a mulher do avô Rocha.
— Coitados, quando estavam tendo sua desforra contra esse malandro, foram interrompidos por Roderick — disse o chefe da cavalaria. — Agora estão mortos e as pobres mulheres, viúvas.
— Pobres mulheres, uma ova — disse Marcel. — Pobres vadias.
— Você é muito insensível, seu lazarento — disse o velho cavaleiro. — Acabou de acontecer uma tragédia aqui.
— Não é por ser uma tragédia que elas deixam de ser vadias.
— Logo você, o filho da maior vadia do mundo.
— Você não é muito bom em ofender, velhote, não devia tentar. Bom, mesmo que minha mãe fosse uma vadia, elas não deixariam de ser vadias também.
— Você por acaso sabe se os homens eram fiéis a essas mulheres?
— Não sei, mas mesmo que fossem, elas não deixariam de ser vadias. A devassidão deles não as eximiria da delas.
— Você é um porco Marcel, devia se calar como eu já havia mandado.
— Sim, senhor chefe dos cavaleiros — disse com deboche.
— Vocês estão se prendendo a detalhes e estão cortando a minha história.
— Pois prossiga, faremos silêncio.
— Tudo bem, vou continuar. A história da tripla traição das Rochas com Alexey fez com que toda a vila ficasse contra ele e como eu, indiretamente, tive que defendê-lo para evitar um massacre, acabei sendo odiado junto. Ismail inflamou o coração do povo contra mim, eles, ensandecidos, decidiram me enforcar junto com Alexey. Não consigo nem imaginar o que eles teriam feito conosco se soubessem da morte dos Rochas por causa disso tudo.
— Acho que teriam estuprado você e o garanhão aí — sugeriu Marcel.
— Infeliz, será que terei mesmo que arrancar sua língua? — perguntou Leon furiosamente.
— Mas é verdade, multidões fazem coisas terríveis quando estão ensandecidas.
— Nem eu, nem ninguém aqui quer saber a sua opinião estúpida. Agora nos faça um favor e CALE A MALDITA BOCA.
— Sim, senhor — falou de forma debochada o cavaleiro.
— Pela última vez, nos perdoe, Ibraim. Eu prometo que, se esse desgraçado abrir a boca mais uma vez, será a última.
— Tudo bem. Onde eu estava mesmo?
— Os Rocha — ajudou Adrian.
— Sim, depois de ser condenado a forca vocês me salvaram, mas o mestre da cavalaria disse algo que me interessou. O senhor disse que um homem me derrubou do cadafalso, para eu ser enforcado, contrariando suas ordens, e o senhor, por isso, lhe cortou. O que o senhor quis dizer com isso? Por acaso o matou?
— Não, mas ele vai demorar um bocado para poder cavalgar novamente. Dei-lhe um talho na bunda.
— O melhor seria se o tivesse matado, mas eu imaginei que não teria feito isso, sua fama o precede, senhor Leon.
— E qual é essa fama?
— A de ser tão furibundo quanto piedoso — o prefeito disse isso como um elogio, mas o cavaleiro recebeu como uma ofensa.
— Prometo não ser piedoso com a mãe de nenhum mentecapto que tenha a coragem de dizer isso na minha frente. E o senhor, caro Ibraim, fará bem a si mesmo se não me repetir essa afronta.
— Mas que afron... — quis perguntar o velho prefeito antes de ser interrompido.
— Chega de tolices, você já nos contou a sua história, agora nos diga como pretende recuperar seu cargo?
— Bem, nós, caros colegas, deveremos enforcar os conspiradores.
— Não podemos ir contra toda uma cidade — disse Leon. — Não somos o Roderick.
— Então teremos que recuperar nossa credibilidade. Os finados Rochas irão nos ajudar. Vocês me disseram que eles foram enterrados, não é? Onde foi? Vamos precisar dos corpos.