A Violência sempre foi sua aliada, sua amiga, sua irmã e até sua amante. Ela o acompanhou nos melhores e nos piores momentos de sua vida. Ela o dominava e amparava. Tudo que ele sentia nos momentos de comunhão com ela era um prazer quase sexual. O sangue subia à sua cabeça e ele não conseguia raciocinar. Nesses momentos ela assumia o controle por ele, foi assim desde a sua infância e seria sempre. Isso era o que ele achava, até conhecer aquele homem.
Com oito anos de idade Gegard já tinha a fisionomia e a estrutura corporal de um garoto de quinze. Seus ossos eram largos, seu queixo quadrado e as mãos eram tão grandes que conseguiam cobrir a cabeça inteira de seus colegas da mesma idade. Foi nesse mesmo período que ele matou pela primeira vez. Sua mãe era uma profissional do entretenimento noturno. Trabalhava muito e recebia pouco, quando recebia. Certo dia, um garoto, desses imberbes, daqueles que não tem a habilidade necessária para receber o entretenimento por méritos próprios, pagou pelos serviços de sua mãe. O garoto, marinheiro de primeira viagem, fracassou naquilo que há de mais natural a todos os homens. A culpa, é claro, ele atribuiu à sua colaboradora e prontamente passou a agredi-la. A vergonha era tamanha que ele pretendia matá-la para esconder seu fracasso. Gegard estava ouvindo, ele sempre estava ouvindo quando sua mãe trabalhava e, por isso, ele chegou a tempo. Mais tarde ele diria que fez isso para salvar a mãe, mas era mentira, ele o fizera para obedecer sua dama, a Violência. No momento em que o rapaz começou a bater em sua mãe, ele ficou animado. A dor e a agressão o animavam de tal jeito que o faziam tremer. Se o garoto tivesse entendido os sentimentos dele, era provável que os dois tivessem se unido para matar a pobre desgraçada, mas ele, ao ver Gegard, tentou fazê-lo sair do quarto com um bofete. Aquilo foi suficiente para o frenesi tomar conta de sua mente e o alvo era o jovem impotente.
Ele não lembrava muito o que tinha acontecido. Pelo menos não do que tinha acontecido no exterior, mas dentro de si fora tudo muito claro. Imagine você a mulher mais bela e sensual que o mundo pode criar. Forte, altiva e, ao mesmo tempo, gentil e amante. Foi essa mulher quem apareceu para o garoto. Foi ela quem acariciou seus cabelos sujos e beijou sua boca fedorenta. Ela o chamou para bailar e, por incrível que pareça, Gegard sabia os passos. Ele poderia dançar por dias, semanas, meses ou até mesmo para todo o sempre, não fosse algo que o incomodava. A melodia que os fazia dançar estava aos poucos sendo interrompida. Um som, baixo, a início, foi aumentando e tornando-se um guinchado. A bela dama não podia mais ficar, deu um beijo de despedida e se foi, junto com sua saída Gegard finalmente pôde entender o que era o som. Tratava-se de um grito, de medo, horror, nojo e desespero. Diante de si Gegard via apenas uma poça disforme de sangue e carne esfolada. Miolos de cérebro e um globo ocular que, por milagre, havia ficado incólume. O corpo ainda se debatia em espasmos involuntários, mas a cabeça já não estava mais lá. Sua mãe gritava aterrorizada, mas bastou um olhar seu para calá-la.
Não demorou para que as pessoas soubessem o que havia acontecido. A lei não podia punir um menino que havia matado para proteger sua mãe. A bem da verdade, o que houve para ele foi uma premiação pelo seu ato de violência. Foi o início de uma longa parceria de sucesso, sua dama iria premiá-lo para onde quer que ele fosse. Sua fama logo se espalhou e um misto de medo e orgulho passou a virar a opinião das pessoas a respeito dele. Ele logo passou a ser o defensor oficial de sua mãe. Alguns braços e dentes quebrados, olhos vazados e pernas partidas foram a sua rotina. Por vezes as vítimas nem tinham motivo para receber os afagos, mas nem todas as surras do mundo são destinadas a quem as merece, normalmente o contrário é mais comum. Cafetões, agiotas e comerciantes pagavam-lhe por proteção. Ele não cobrava muito. Seu lema era: “barato porque gosto do que faço!”. Quando chegou aos treze anos já era um gigante completo. Tinha quase oito pés de altura e era coberto de músculos dos pés à cabeça. Seus pulsos tinham a grossura de um pescoço, suas mãos eram tão grandes quanto uma bigorna e tudo isso era dedicado a sua dama. Não há como calcular com precisão quanto homens, mulheres, crianças e animais morreram por suas mãos, afinal, ele sempre primou pela equidade da violência. Todos eram dignos dela, independentemente de sua idade, sexo, credo ou espécie.
Sua vida mudou um pouco depois que sua mãe foi crucificada. Isso aconteceu pelas mãos de Diógenes. O novo rei tinha uma política zero de aceitação ao meretrício e qualquer tipo de promiscuidade. Logo após assumir o trono mandou fechar e destruir os templos das artes sexuais. Os sacerdotes foram banidos e caçados. As rameiras foram proibidas de trabalhar em Catônia. Para mostrar a seriedade de suas ordens, o rei mandou crucificar aleatoriamente cafetões e cortesãs. A mãe de Gegard foi uma das sorteadas. Ele não pode dizer que o espetáculo não o satisfez. O rei lhe ensinou uma nova forma de violência e, por isso, ele não lhe nutriu ódio. Ele ainda lembra dos gritos de socorro de sua mãe implorando por sua ajuda. Era bem verdade que, caso ele se insurgisse, os cavaleiros poderiam escolher “aleatoriamente” outra meretriz, pois ninguém gostaria de perder a vida enfrentando um garoto descomunal, mas ele não o fez. Estava fascinado pela violência do rei e os gritos de uma pessoa mais próxima lhe eram mais agradáveis do que os de uma desconhecida. Esse foi um dos momentos mais agradáveis de sua vida.
Passou a viver como bandoleiro. Saques, massacres, violações e desmembramentos de inocentes eram para ele muito mais agradáveis do que bater em bandidos e clientes de meretrizes. Com o passar do tempo, Gegard entendeu uma coisa que para os outros era muito clara. Ele era mau, nasceu mau e morreria mau. Praticar violência contra outras pessoas más como ele, era agradável, mas fazê-lo contra inocentes era o maior motivo de seu júbilo. Por muitos anos ele viveu como bandoleiro. Viu a ascensão de muitos líderes e nunca quis ser um. A violência pura e clara era o que almejava, não posições. Para ele, um líder bandoleiro deveria trabalhar unicamente para o caos. Se o líder o levasse para onde ele pudesse usar sua violência, ele o seguiria sem pestanejar. Era por isso que ele estava planejando matar seu atual líder, Valentim. Trabalhar para ele era entediante. Ele tinha planos muito bem arquitetados, evitava violência e parecia esperto a ponto de viver para sempre. Isso irritava Gegard. Um líder bandoleiro deveria ser mau e fazer maldades sem que para isso houvesse um motivo. O gigante até suspeitava que, no fundo, Valentim fosse um bom homem, e isso era inaceitável. Eduardo, mão direita de Valentim, arquitetava um plano de traição e não foi difícil convencer Gegard. Eles dois juntos poderiam convencer os pequenos líderes dos bandoleiros a se insurgirem contra Valentim, para isso organizaram uma reunião no Refúgio do Bandoleiro. Tudo teria dado certo, não fosse pelo maldito Roderick.
Gegard estava no banheiro quando o cavaleiro chegou no bar. Quando ele terminou suas necessidades, o lado de fora já estava todo um caos. Dezenas de bandoleiros desacordados e sangue já começava a enfeitar o recinto. Um cavaleiro sozinho desmembrava qualquer bandoleiro que se atrevesse a enfrentá-lo. Aquela cena era linda. Sua bela dama apareceu e o dominou. Logo sua mente foi tomada e seu único pensamento era a Violência. Ela, como sempre, veio sorridente e convidou-o a dançar. Gegard alegremente a acompanhou nos passos que ele já estava tão acostumado a dar, mas algo estava errado. Sua dama tropeçava e parecia não conhecer mais a dança. O baile foi feio, terminando com sua bela dama, envergonhada, fugindo. Em seu lugar surgiu uma senhora que ele não conhecia, era feia e desengonçada. Ele, de pronto, teve nojo e ódio dela, mas não pôde resistir aos passos e dançou com ela. Naquele momento sua mente estava inundada do mais absoluto Medo. Quando a consciência voltou para ele, o mundo estava de ponta-cabeça. Ao seu redor estavam corpos de seus companheiros de trabalho. Em pé, orgulhoso e altivo, estava um cavaleiro lhe dando ordens. Tão acostumado a ver nos outros, se espantou ao sentir o horror. Gegard estava confuso ao notar que chorava e tremia de pavor. A voz do cavaleiro era ordem e tudo que ele lhe perguntava era respondido. Ninguém mais tentava atacá-lo. Gegard, ansiando por se ver livre daquele homem, respondeu o que ele buscava. Disse que Eduardo saberia onde estava o líder dos bandoleiros, este, ao ouvir seu nome, pegou um cavalo e fugiu. Roderick se virou para persegui-lo.
Aquilo não estava certo. Era ele quem fazia as pessoas chorarem; era ele quem fazia as pessoas responderem às suas perguntas; era ele quem fazia as pessoas fugirem; era ele quem feria e matava. Aquilo estava errado. Ele não poderia permitir aquilo. Um ódio incontrolável tomou conta de si e ele teve forças para desferir um ataque pelas costas do cavaleiro; pelo menos ele achava que conseguiria. O golpe veio na vertical, ou viria, pois o homem, que estava de costas, virou-se como se tivesse olhos na nuca e desferiu um ataque de espada antes mesmo que Gegard pudesse chegar perto dele com seu punhal. O mais assustador foi que o cavaleiro o encarou bem nos olhos enquanto aplicava o ataque. Era um daqueles olhares que falavam. Ele estava carregado de desprezo e pena. Aquilo foi a maior vergonha que Gegard passou em toda a vida, principalmente porque ele tinha certeza que o cavaleiro o poupara de propósito, para que vivesse para sempre com aquela humilhação.
Sua vida desmoronou naquele dia. A Violência, que fora sua aliada por anos a fio, o abandonou no momento de maior necessidade. A maldita senhora do Medo ocupou o seu lugar. Os ferimentos físicos eram bobagens comparados aos feitos em seu espírito. Ele sabia que, embora fosse muito forte, chegaria o dia no qual seria derrotado, mas ele imaginava que seria com dignidade, com ele abraçado com a violência até o último momento, não daquela maneira vil e covarde. Não podia terminar daquele jeito. Ele tinha que se vingar daquele tal de Roderick. No seu âmago ele sabia que não seria capaz de derrotá-lo, mas queria enfrentá-lo com dignidade. Uma última luta, cheia de violência. Era disso que precisava. Tão logo seus ferimentos tiveram os primeiros socorros, ele decidiu ir ao encalço do execrável cavaleiro. As pistas o levaram até o vilarejo de Viseu. A cidade estava em alvoroço como nunca esteve antes. Era esquisito ver uma cidade conhecida por ser discreta, envolvida em uma festividade para celebrar a posse do mesmo prefeito que já tinha a posse do cargo há muitos anos, mas nem isso o importou realmente, para ele o que realmente importava era um fim com dignidade.
Gegard começou a invadir as pequenas festas que encontrava na cidade, sempre buscando informações sobre Roderick. Para tanto, bravateava que estava em seu encalço e que havia sobrevivido a uma batalha contra ele. Ao chegar a uma pequena festa na casa de um traficante de ervas, ele encontrou algo muito útil. Um cavaleiro alegando que tinha uma espada que já havia ferido um Roderick. Inicialmente ele achou que fossem tolices de um bêbado, mas logo ele notou que realmente havia algo de especial na espada. Ela tinha uma aura insigne. Uma espécie de nobreza que o bandoleiro não conseguia explicar. Ele precisava daquela arma e ele já estava preparado para tomá-la junto com a vida de seu dono quando um ferreiro se intrometeu no diálogo. Ele, que ouviu a conversa, dizia ser capaz de recriar a espada. O cavaleiro, que estava totalmente ensandecido pelas ervas, ficou entusiasmado. Pediu para que o ferreiro fizesse quinhentas espadas. Pois, segundo ele, talvez, com esse número, fosse possível derrotar Roderick. Enquanto o ferreiro analisava a espada, o cavaleiro se distraiu com uma disputa entre um rapaz e um bode. Gegard sugeriu ao ferreiro que eles fossem logo à fornalha para tentar recriar a espada. O ferreiro, que estava tão drogado a ponto de dizer sim para qualquer coisa, achou uma boa ideia levar um homem de oito pés de altura, com cara e aspecto de psicopata para sua casa.
Gegard acompanhou o ferreiro para sua casa. O plano era simples: verificar se era possível recriar a espada. Aquela era uma arma especial, mesmo um bandoleiro rústico como ele sabia disso. Era importante saber se ela poderia ser feita em escala, caso não fosse, ele simplesmente esmagaria o crânio do ferreiro e tomaria a arma. O plano não aconteceu como ele esperava, pois algo inesperado surgiu. O ferreiro estava animado, foi direto à forja. Gegard o acompanhou. Chegando lá, viu algo que o atemorizou. Pendurada, no alto da parede, brilhando como a luz do sol, estava uma armadura que o bandoleiro conhecia muito bem, pois ela e seu dono o perseguiam todas as noites em pesadelos. Era a maldita armadura de Roderick. Por algum motivo ela estava com aquele ferreiro. Um ódio genuíno se apoderou de Gegard, logo sua consciência se esvaiu e sua bela dama veio lhe chamar para dançar. Um belo momento de comunhão foi o que ele sentiu. Dançou e se divertiu, quando sua dama cansou ele finalmente pôde ver o quadro: o ferreiro estava pregado na parede. Suas mãos e pés estavam bem fincados com punhais. Toda a sua pele havia sido arrancada, mas, de alguma forma, ele ainda estava vivo, no entanto, tão fraco que não conseguia gritar, apenas gemia baixinho e implorava pela morte com o olhar. Gegard havia se especializado em causar dor e deixar suas vítimas vivas para que elas sofressem mais. Aquilo o confortava e alegrava sobremaneira. Ele poderia ficar horas assistindo o sofrimento daquele homem, não fosse a visão da armadura que veio lhe perturbar. No momento da fúria, Gegard havia descontado todo o ódio que sentia por Roderick no ferreiro, mas não havia tocado na armadura. Era curioso, só a presença da armadura fazia a aura do cavaleiro estar presente e mesmo sendo um objeto inanimado, parecia imbatível. Gegard achou que ele tinha respeito por ela e, por isso, não a havia destruído, todavia, o que ele realmente sentia era o mais absoluto Medo, e aquilo o deprimiu.
A sua vingança era impossível, naquele momento ele percebeu isso. Apenas a presença da armadura do cavaleiro já lhe fazia perder o tino, mas ao mesmo tempo lhe trazia um pavor indescritível. O mais provável é que diante de Roderick o resultado não seria diferente. Era isso, o fim do grande Gegard já havia acontecido e ele insistia em acreditar no contrário. Não haveria morte honrada; não haveria um baile de violência e aquilo o deprimiu. Gegard se cobriu com a pele do ferreiro e a usou para esconder suas lágrimas. Um calor intenso invadiu seu corpo. Inicialmente imaginou que fosse a vergonha, mas logo ele pôde ver que a fornalha ardia em chamas. Era como se fosse uma punição divina e Gegard estava disposto a sofrê-la estoicamente. O fogo ardia intensamente e o bandoleiro apenas o observava sem indicar que sairia de lá. Tudo parecia se encaminhar para o fim quando Gegard notou algo entrando pela janela. Ele primeiro pensou em ignorar, mas, mesmo diante do epílogo da vida, a curiosidade é sentimento soberano. Até mesmo o suicida, primeiro vai atrás de matar a curiosidade para só depois fazê-lo consigo.
Gegard foi maquinalmente ver o motivo do barulho e surpreendeu-se ao ver um cavaleiro de Catônia revirando as espadas do ferreiro, até encontrar uma espada específica, a mesma que o fizera ir até ali com o ferreiro. Ao prestar mais atenção, Gegard reparou que se tratava do mesmo cavaleiro que ele havia visto na noite anterior. Provavelmente, ele viera ali buscar sua espada, supôs. O bandoleiro pensou em ignorá-lo, mas ao ver a espada seu ânimo foi recobrado. Aquela arma poderia dar-lhe o ânimo necessário para enfrentar Roderick. Portanto, ele teria que matar aquele cavaleiro para tomá-la de volta. Sua dama, novamente veio lhe chamar para a dança.
O plano de Marcel era bem simples: incendiar a fornalha e atacar o bandoleiro quando ele fugisse das chamas, mas isso se mostrou complicado. Após atear fogo no local, ele e Adrian aguardavam para que o gigante saísse pela porta, mas isso não aconteceu. O fogo foi se alastrando e o desgraçado não saía. Marcel, então, começou a se preocupar com a espada. Se o maldito bandoleiro não saísse de lá, sua espada poderia ficar perdida nos escombros da casa do fereiro. Ele, então, resolveu abandonar o plano e entrar na casa com a fornalha. Adrian prontamente protestou,alegando que aquilo era loucura, não apenas porque ele morreria queimado, mas também porque teria que enfrentar frente a frente aquele monstro. O cavaleiro até cogitou em ouvir a voz da razão, mas o sentimento que nutria pela espada era tão grande que o fazia ignorar seu próprio bem. Ele invadiu a casa pela janela, ignorando os gritos de advertência de Adrian.
O fogo já tinha dominado grande parte dos aposentos. Havia muita fumaça, mas Marcel conseguiu achar o local onde as armas ficavam. Não demorou muito para ele encontrar a espada de Laerte. Parecia que ele conseguiria recuperá-la sem grandes problemas, mas no fim, só parecia mesmo, pois de uma das portas ao seu redor apareceu o terror encarnado em pessoa. O homem tinha pelo menos 8 pés de altura. Sobre seus ombros, havia um casaco feito com pele humana, ainda gotejando sangue. Seu rosto estava deformado por um sorriso sinistro. Ele olhava para Marcel como se olhasse uma presa e, nesse momento, o cavaleiro soube que não conseguiria sair dali sem enfrentar aquele monstro.
Antes mesmo que Marcel conseguisse pegar a espada, uma enorme mesa em chamas foi arremessada na sua direção. Ele teve que saltar rapidamente para o lado ou seria esmagado. A mesa despedaçou-se com estrondo e os seus fragmentos voaram para todos os lados, fazendo com que Marcel pusesse o braço em frente ao rosto para proteger-se. Logo ao baixá-lo ele pôde ver que Gegard já estava a curta distância. Ele empunhava uma espada que mais parecia um gigantesco facão de cortar carne, como os que os açougueiros utilizam. O gigante desferiu um golpe de cima para baixo. O cavaleiro instintivamente conseguiu pegar uma das inúmeras espadas que estavam jogadas ao seu lado e tentou defender o golpe aparando-o. Ele pretendia usar uma mão na empunhadura da espada e a outra na lateral da lâmina, para segurar o golpe no alto e desferir um chute que afastasse o gigante, mas isso se mostrou um erro. O golpe de Gegard foi tão potente que estilhaçou a espada do cavaleiro, fazendo Marcel torcer o pulso e ser arremessado ao solo pela violência do ataque. Ele acertou as costas no chão e perdeu um pouco do ar nos pulmões. O bandoleiro então deu-lhe um pontapé que o fez, incrivelmente, ser atirado a uns oito metros de distância, arrebentando suas costelas, já estavam feridas em sua última luta.
O cavaleiro levantou-se o mais rápido que pôde, pois sabia que no chão ele seria apenas um alvo para abate, mas a situação estava bem complicada. Sua mão esquerda havia sido perfurada por uma adaga recentemente pelo anão traficante e o pulso dessa mesma mão foi torcido pelo ataque de Gegard, tornando impossível empunhar qualquer coisa com ela. Para piorar, suas costelas, que haviam sido feridas por um forcado há alguns dias, foram arrebentadas pelo chute do outro. Defender os golpes daquela besta era impossível, pois não dava para disputar força com aquele anormal. O fogo chegava cada vez mais perto e em poucos minutos seria impossível continuar ali. Por último, a espada, agora estava atrás do gigante. Muitos homens se desesperariam diante de uma situação tão adversa, mas Marcel ainda não tinha se dado por vencido. Ele já havia enfrentado diversas situações de vida ou morte e já havia encarado um homem infinitamente mais terrível que Gegard. A espada. Tudo pela espada. Ele precisava dela. Pela honra de seu finado amigo. Seu próprio bem-estar já não importava mais.
Gegard mais uma vez atacou com seu enorme facão. Dessa vez Marcel optou por esquivar do golpe ao invés de apará-lo. Enquanto o fazia isso, puxou um punhal guardado na sua cintura e perfurou o bandoleiro. O gigante pareceu não sentir o ataque e mais uma vez tentou atingir Marcel com o facão, que novamente esquivou e estocou seu oponente. Era isso, esse era o segredo. Ele era mais rápido que o gigante, poderia ficar esquivando e contra-atacando, mas isso seria brincar com a sorte. Um único ataque do bandoleiro o partiria ao meio, já suas punhaladas pareciam não fazer grande efeito, muito pelo fato da resistência absurda de Gegard, mas também porque Marcel não podia enfiar totalmente o punhal,. Isso demoraria segundos preciosos que ele utilizava para esquivar-se dos ataques do facão. Essas punhaladas superficiais não poderiam matar um homem daquele porte e, cedo ou tarde, ele erraria a esquiva e seria seu fim. Com isso em mente, ele resolveu arriscar um ataque mirado em um ponto vital com mais profundidade. Marcel, por centímetros, desviou o rosto pouco antes de ser decapitado por um ataque de Gegard e voltou enfiando sua adaga com toda a força que tinha entre a clavícula e o trapézio do bandoleiro. Em qualquer pessoal normal seria um golpe fatal, mas no gigante, a adaga não entrou o suficiente, tanto por seus prodigiosos músculos, quanto pelo seu tamanho descomunal. Como Marcel previu, um ataque mais profundo de adaga seria mais demorado. Gegard, que tinha aplicado um ataque com o facão, voltou velozmente com o cabo da arma, atingindo violentamente na cara do cavaleiro. Ele mais uma vez foi arremessado devido ao impacto do golpe.
Aquilo com certeza quebrou sua mandíbula e, dessa vez, ele não pôde se levantar com velocidade. Na verdade, ele mal conseguia manter a consciência. Porém, para sua felicidade, a punhalada também surtiu efeito. Pela primeira vez no combate, o gigante urrou de dor, mas nem de longe isso foi suficiente para pará-lo. Gegard ainda pensou em tirar o punhal, mas depois de ver que ele estava muito bem encravado, desistiu e partiu para finalizar o massacre ao cavaleiro. Marcel ainda não havia se recuperado do golpe e ainda estava de joelhos quando o gigante chegou para matá-lo. Não era o final que ele esperava para si. Ele ainda achava que viveria muito, mas as coisas são como elas são, ele pensou. O gigante levantou o facão, mas antes que pudesse desferir o golpe, algo o impediu. Algum tipo de inseto havia subido nas suas costas e o ferroava ferozmente. Aquilo incomodava e Gegard teve de parar para tirá-lo. Marcel finalmente levantou-se e percebeu que Adrian havia se agarrado nas costas do bandoleiro e apunhalava-o incessantemente. Então o bostinha tinha criado coragem e vindo ajudar? O cavaleiro conseguiu se recuperar parcialmente e afastou-se para buscar alguma arma que servisse para enfrentar aquele monstro. Enquanto isso, o bandoleiro tentava tirar Adrian das suas costas. O garoto tentava evitar se movimentando o máximo que conseguia, porém, Gegard conseguiu. O bandoleiro agarrou, com sua gigantesca mão, a cabeça do garoto. Tirou-o de suas costas como se estivesse levantando um boneco de pano e arremessou-o em direção à parede. O garoto se estabacou violentamente e caiu desfalecido no chão.
Marcel achou uma lança na parede e não pensou duas vezes antes de arremessá-la em Gegard. Embora tivesse jogado apenas com uma das mãos e o espaço para manejo fosse pequeno, o cavaleiro se mostrou bastante hábil e o projétil perfurou o pulmão do gigante. O bandoleiro gritou um genuíno urro de dor, que mais causou medo do que alívio em Marcel. Com sua gigantesca mão ele arrebentou a lança que estava cravada em si como se partisse um pequeno graveto e olhou para Marcel com um sorriso psicótico que aparentava prazer absoluto. Era bem isso que ele estava sentindo, prazer absoluto. Sua dama bailava extasiada. Era bem isso que ela buscava, um parceiro de dança à altura. Era irreal imaginar que ele conseguiria prazer enfrentando novamente Roderick. Isso era uma ilusão que o atormentava há dias. Ele perdia tempo buscando um oponente imbatível que o humilharia novamente. Nada de útil viria de um reencontro, mas enquanto ele buscava cobre, encontrou ouro. Aquele cavaleiro foi um achado extraordinário. Por toda sua vida Gegard enfrentou homens covardes que serviam apenas como instrumentos do seu sadismo. A exceção de Roderick, que é um caso especial. Aquele homem foi o único que o enfrentou de frente e devolveu sua violência, sem chorar ou correr como um covarde. Era isso que ele ansiava. Uma grande última dança da violência. Marcel apanhou uma espada e um escudo que estavam no chão, nesse momento, os astros do acaso agiram, a espada encontrada era a de Laerte e o escudo o de Roderick. Gegard olhou para aquela figura e não viu um homem moribundo, prestes a encontrar seu derradeiro destino, mas sim um imponente cavaleiro, pronto para ser seu nêmesis. Aquilo era delicioso.
O bandoleiro desferiu novamente um golpe de cima para baixo com seu facão, mas, dessa vez, o bloqueio foi bem sucedido. A arma parou diante do escudo de Roderick e Marcel contra-atacou com a espada na perna do gigante, fazendo com que ele caísse de três apoios com o joelho no chão. Marcel tentou dar o golpe fatal na cabeça de Gegard, mas o gigante agarrou a lâmina da espada com a mão. O cavaleiro puxou a espada, decepando os dedos da mão do criminoso. Um último ataque de facão, com toda a sua força, foi desferido na direção de Marcel. O cavaleiro defendeu com o escudo, no entanto, a pancada foi tão forte que estilhaçou o facão, juntamente com o braço já torcido de Marcel. O cavaleiro caiu ao chão devido ao impacto. Gegard foi para cima dele, para esmagar seu crânio com o cabo do facão, mas foi impedido ao ter uma lança cravada nas suas costas. Adrian havia se levantado e conseguiu usar suas últimas forças para atingir o bandoleiro com esta arma que achou ao seu lado. Após isso, voltou a cair desmaiado. O golpe deu tempo suficiente para que Marcel arrancasse o braço de Gegard com um golpe ascendente. O gigante, finalmente, caiu de joelhos, derrotado. Era o fim, a última dança teve seu derradeiro passo. Sua dama foi embora para nunca mais voltar. Gegard estava realizado. Ele havia chegado ao êxtase máximo e, agora que sua consciência voltou, só conseguia gargalhar de felicidade.
— Ah, ah, ah! Porra, essa foi do caraleo! — disse Gegard enquanto encarava Marcel. O cavaleiro pensou em arrancar sua cabeça e acabar logo com aquilo, mas ele sentia que o bandoleiro merecia seus méritos.
— É, seu puto, essa realmente foi do caraleo! Você foi a porra do oponente mais duro que eu já tive em toda a minha vida. Você arrebentou a porra do meu maxilar, só de falar está doendo.
— Você também foi o oponente mais duro que já tive na vida. Digo isso, pois eu não considero mais que eu tenha sido adversário para Roderick.
— É, aquele desgraçado não conta, mas também tive ajuda, não foi totalmente justo.
— Isso foi uma luta de vida ou morte, não a bobagem de um duelo de cavaleiros. A ajuda de um moleque conta tanto quanto a ajuda de um cavalo. Você me derrotou, é tudo que importa. Eu pensei que morreria pelas mãos de Roderick, mas foi muito mais divertido cair pelas suas.
— Isso não foi divertido, seu maluco. No entanto, você mostrou seu valor, agora é tempo. Faça as pazes com seus deuses.
— Eu cuspo no nome dos deuses. Minha vida sempre foi uma abominação feita por eles. Agora que chega ao fim, não posso agradecer a esses porcos. Antes que se vá, saiba, o escudo que está usando é de Roderick. Aliás, a armadura dele também está por aqui. Não sei qual o motivo disso estar por aqui, mas isso significa que ele virá buscá-los. Leve-os consigo.
— Por uma coincidência macabra, o nome daquele desgraçado me persegue. Obrigado pelo aviso. Eu realmente estava em seu encalço. Essa espada que cortará sua cabeça, já feriu um Roderick.
— Eu já tinha ouvido isso. Então é verdade?
— Sim, eu mesmo vi quando o sangue de Aurélio escorreu por sua lâmina.
— É uma boa arma, fico grato que seja por algo tão especial que minha vida seja ceifada. Espero que essa espada possa beber novamente do sangue de um Roderick.
— Eu acho improvável, mas também anseio por isso. Adeus! — Não é tarefa fácil decapitar uma pessoa, quanto mais uma com o pescoço mais grosso que o de um touro, mas tanto a arma quanto o momento eram especiais. O cavaleiro não tinha como errar. O destino intercedeu para tornar aquele desfecho o mais incrível possível. O golpe foi limpo. A cabeça rolou e caiu perto das chamas. A última visão de Gegard foi a de Marcel indo em direção ao garoto.