Os três seguiam viagem em silêncio, as montanhas começavam a ficar para trás, as árvores já apareciam mais constantemente e o terreno ficava cada vez menos acidentado, eles já podiam montar em seus cavalos. Leon ia à frente, sem olhar para trás nem para ver se era acompanhado; Marcel ia logo em seguida, acompanhando o velho cavaleiro mecanicamente, de maneira indolente, sem esconder que estava irritado em fazê-lo; por último, vinha Adrian, constrangido com o silêncio que reinava na caminhada. Ele ainda tentou puxar conversa com os dois e até que um falasse com o outro, mas eles se limitaram a ficar em silêncio ou a responder grosserias curtas.
A cidade começava a aparecer à distância, Adrian rezava para que eles chegassem logo e aquele clima constrangedor acabasse, mas algo veio atrasar a celeridade do percurso deles. Leon, que seguia bem atento, logo percebeu um som estranho saído da floresta, que cada vez mais apresentava árvores, fez um gesto com sua mão indicando algo para os que vinham atrás dele. Marcel, que seguia desleixadamente, prontificou-se em um instante, passou de um homem descuidado a um cavaleiro a postos com apenas aquele gesto de mão dado pelo chefe da cavalaria. O garoto ficou muito impressionado, aquilo provou duas coisas a ele, a primeira é que embora Marcel fosse um canalha, preguiçoso e malcriado, ele era um cavaleiro experiente e hábil, que foi bem treinado e sabe reconhecer quando seu superior está dando uma ordem; a segunda é que embora Leon fosse uma pessoa detestável, ele conseguia se fazer obedecer até mesmo por pessoas biltres como Marcel, que, para piorar a situação, odiava o velho cavaleiro com motivos.
Os dois cavaleiros apearam de seus cavalos e adentraram na floresta, o garoto ficou esperando junto aos cavalos. Não demorou muito para que rosnados fossem ouvidos, sons de luta, espadas cortando, ganidos de dor e gritos de fúria, Adrian ouvia tudo assustado. Logo, toda a balbúrdia sumiu para que o silêncio imperasse. Adrian, curioso para saber quem eram os inimigos e o que aconteceu com os cavaleiros, amarrou rapidamente os três cavalos a uma árvore e também entrou na floresta. O cheiro nauseabundo e o que viu fez com que ele vomitasse. Havia sangue e tripas por toda a parte.
Adrian estava em choque, ele era muito novo, um moleque imberbe que nas últimas semanas de sua vida foi torturado e viu várias pessoas morrerem na sua frente, qualquer homem maduro poderia enlouquecer com isso, quanto mais um jovem mancebo. Ele não conseguia ver nada e nem raciocinar direito, uma mistura de medo e desespero faziam com que ele ficasse paralisado. Despertou de seu transe com Marcel lhe estapeando a cara com força, repetidas vezes, ele teve de gritar que já estava bem para que o cavaleiro parasse e gargalhasse.
— O que você está fazendo, Marcel? — indagou Leon. — Eu mandei que você fosse ver o garoto e ajudasse-o, não que o espancasse.
— Mas foi o que eu fiz. Eu estava tentando despertá-lo com tapinhas — respondeu Marcel, afetando ofensa.
— Mentira, você estava batendo com toda a força — choramingou o garoto.
— Você que tem a cara de moça — defendeu-se Marcel.
— Ah! Chega você dois, parem de discutir tolices e me ajudem a investigar o que foi isso — ordenou Leon. Em Catônia, o título de cavaleiro era o cargo de maior patente, abaixo do rei, como tal, vinha acompanhado de inúmeras tarefas, eles eram guerreiros, juízes e também cumpriam o papel de investigadores. O chefe da cavalaria ensinava a todos a arte da investigação, para que eles resolvessem crimes e encontrassem provas para punir os culpados, após isso o rei lhes ensinava a fazer crimes, esconder provas e forjar culpados.
— Esses homens foram destroçados — disse Adrian.
— Não me diga! — falou Leon. — Sua mula, isso nós podemos ver, quero ver se podemos descobrir exatamente o que aconteceu aqui.
Os três então começaram a analisar a cena. Havia, pelo menos, três homens mortos e dois lobos, uma corda amarrava os homens e eles mostravam sinais de que haviam recebido golpes traumáticos.
— Eu acho que sei o que aconteceu — disse Marcel.
— Pois diga de uma vez — ordenou o velho cavaleiro.
— Estamos próximos de Viseu, a capital do tráfico de Catônia e Quendor. Brigas, confusões e qualquer sorte dessas coisas são proibidas na cidade, para que não levantem suspeitas do rei de Quendor e ele venha interferir no tráfico. Toda vez que alguém da região tem um desentendimento, ele traz a pessoa conflitante para fora dos limites da cidade para resolver as dissidências. É comum que pessoas sejam espancadas aqui nos limites da cidade.
— Você já viu algo do tipo? — perguntou Leon.
— Diversas vezes, mas não se deve interferir, normalmente são criminosos que são levados para serem punidos, ou assuntos relacionados à honra. Mas, eu devo admitir, nunca vi algo parecido.
— Como assim? — perguntou o velho.
— Eu já vi homens espancados e assassinados por aqui, mas com esse grau de crueldade é a primeira vez. Veja bem, Leon, se repararmos bem no rosto deles, podemos perceber que eles têm semelhança e têm idades bem distintas, provavelmente são parentes, esse idoso deve ser o patriarca, aquele seu filho e o outro seu neto. O velho e o garoto estão com o queixo inchado, provavelmente devido a algum golpe traumático, talvez o soco de alguém com uma manopla, já o outro parece ter recebido um golpe na têmpora e no topo da cabeça. Eles foram amarrados e jogados para fora da estrada, provavelmente quem fez isso sabia que lobos famintos infestavam essa pequena floresta. Não deve ter demorado muito para que os lobos sentissem o cheiro de carne e notassem que esses homens não podiam se defender. Eles devem ter rondado as presas por horas, até terem certeza que podiam atacar. Enfim, os lobos atacaram e mataram esses homens, se nós tivéssemos chegado alguns minutos antes, provavelmente, poderíamos tê-los salvado, pois, pelas feridas feitas aos redor corda, nota-se que eles estavam amarrados há muito tempo, talvez desde ontem, no entanto o ataque dos lobos foi recente, infelizmente chegamos tarde e só conseguimos matar esses dois lobos e assustar os outros. Esses homens foram abandonados aqui e sentiram todo o desespero da morte chegando perto deles, estavam amarrados com seus parentes mais próximos, sem poder ajudar, nem se ajudar. Morreram sem poder reagir e vendo seus entes queridos morrerem também.
— Que Deus perdoe o monstro que fez essa barbaridade — disse Leon. — Matar toda uma linhagem assim é muita crueldade. Se eu descobrir quem foi, matarei o desgraçado.
— Acho bem difícil que descubramos — disse Marcel com segurança —, mas eu também não gostei disso, se acharmos esse maldito pode contar comigo para ajudar.
Marcel e Leon enterraram os homens, Adrian ajudou o tanto quanto pode, mas as náuseas impediram-no de fazer muita coisa. O garoto estava notando que Marcel fingia ser um homem mau, mas que, no fundo, ele ainda era uma boa pessoa e, a julgar pela excelente análise do crime, um exímio cavaleiro. Quando os três saíram da pequena floresta, notaram que havia um quarto cavalo próximo aos que Adrian havia amarrado antes de entrar na floresta. O que era mais surpreendente é que se tratava de um alazão de porte nobre, um cavalo muito caro, ele tinha sela e rédea, mas não tinha um dono, estava só e veio para junto dos outros cavalos.
— Que diabos é isso? Quem deixaria um animal tão valioso sozinho? — indagou Leon.
— Eu acho que já vi esse cavalo antes — falou Marcel enquanto acariciava o animal. — É um animal difícil de esquecer, nas vezes em que estive no covil dos bandoleiros vi Valentim, o líder deles, com esse animal.
— Será que ele tem algo a ver com a morte desses homens? — perguntou o velho cavaleiro.
— Dificilmente — respondeu o outro. — Pelo que eu me lembro, ele não é um homem passional, esse tipo de assassinato não combina com ele. Alguém pode ter roubado seu cavalo, ou tê-lo raptado. Pelo que eu soube, ele não é mais o líder dos bandoleiros e está foragido, mas ninguém sabe do paradeiro exato dele.
— Ele deve estar em Viseu, ou morreu na estrada — concluiu Leon. — Vamos levar esse cavalo, é um crime deixar um animal desses na estrada. Vamos logo para a cidade, buscar informação a respeito de Roderick, desse massacre ou sobre Valentim.
Os três chegaram até a entrada da cidade, mas não foram recebidos por ninguém, ela estava vazia. Eles acharam estranho, mas logo puderam ouvir um grande alvoroço vindo do que parecia ser o centro da cidade, possivelmente um evento havia levado todos os habitantes para lá. Os três se encaminharam para esse local, no caminho viram um homem também indo na mesma direção. Marcel o interpelou em busca de informações.
— Oh, amigo, espera um minuto.
— Sim — respondeu o homem, parando e prestando atenção no cavaleiro.
— O que está acontecendo aqui? Chegamos agora aqui em Viseu e não vimos ninguém na entrada, você é a primeira pessoa que nós vimos. O que está acontecendo aqui, amigo?
— Vai haver um enforcamento, todos da cidade estão indo assistir.
— Enforcamento? — indagou Marcel confuso. — Pelo que eu me lembre, o prefeito não permite esse tipo de coisa por aqui, para evitar chamar atenção indesejada.
— É, realmente o prefeito não permite enforcamentos, mas dessa vez ele não pode fazer nada a respeito, já que o enforcamento é o dele.
— Você está me dizendo que vão enforcar Ibraim? Mas por quê?
— Traição à cidade. Ontem um cavaleiro apareceu na cidade, ele trouxe um homem para o hospital e decepou o dedo de quatro guardas. O prefeito protegeu esse cavaleiro e ainda deu livre conduto para que ele fosse embora de Viseu sem sofrer nenhuma pena por ferir os guardas. Até aí, tudo bem, mas foi descoberto que o rapaz que o cavaleiro salvou era um conquistador barato, que já havia dormido com a mulher de vários homens aqui da cidade. A pior das sacanagens que o rapaz fez foi deitar-se com a matriarca da família Rocha, depois com a filha dela e por último com a neta. Os três Rochas, o patriarca, o filho dele e o neto, levaram o homem para fora da cidade para dar cabo dele, mas eles sumiram, ninguém sabe o paradeiro deles desde ontem. Todos os homens que estavam furiosos com o rapaz, depois de descobrirem que o prefeito estava ajudando-o, fizeram uma petição para enforcá-lo junto ao adúltero, a cidade se reuniu e votou para que isso acontecesse. O testemunho dos quatro guardas foi muito importante para condená-lo. Agora, se me permite, senhor, tenho de ir logo, pois os canalhas podem ser enforcados a qualquer momento e eu quero ver eles estrebuchando. Adeus.
— Com certeza isso é culpa do Roderick — concluiu Leon enquanto o homem se afastava.
— Sim, deve ter sido ele mesmo. Tal pai, tal filho — disse Marcel com raiva.
— Infelizmente é esse o tipo de destruição que acompanha aquele homem. Não podemos perder muito tempo aqui, devemos ir embora antes que ele faça com todo o reino de Quendor o que ele fez aqui em Viseu.
— É, vamos embora — concordou Marcel.
— Do que vocês estão falando? — perguntou Adrian. — Acaso pensam em ir embora sem salvar o prefeito daqui?
— Está além de nossas forças, garoto — disse Leon. — Ele é mais um efeito colateral da maldição dos Rodericks.
— Vocês não podem permitir que isso aconteça, são cavaleiros, não podem virar o rosto diante de uma injustiça. Mestre Leon, o senhor mesmo disse mais cedo que se descobrisse quem tinha cometido aquela barbaridade, mataria o bastardo, agora nós sabemos que o culpado foi Roderick.
— Foi uma promessa tola — disse Leon. — Está além da minha capacidade, e da capacidade de qualquer homem, punir um Roderick por seus pecados. Acredite em mim, sua própria existência já é uma punição para eles, pois eles sofrem quando descobrem o mal que fizeram aos outros. A punição que eu aplicarei a ele é contar como ele foi o culpado pela morte de uma família.
— Pois se você não pode matá-lo, também não pode permitir que outra pessoa morra pelo erro dele. Temos que salvar o prefeito.
— Várias pessoas sempre morrem pelos erros de um Roderick — disse Leon com resignação. — Não podemos salvar todas, devemos entender isso como uma fatalidade. Entenda uma coisa, da mesma maneira que não ficamos com raiva dos céus quando um raio mata uma pessoa, nem dos mares quando eles têm uma tempestade que derruba um navio, também não devemos odiar a Roderick, pois ele também é um desastre natural.
— Mestre, eu ainda não compreendo o medo que esse homem consegue impor a todos, mas entendo uma coisa, você não está indo de acordo com o código da cavalaria. Se virmos uma pessoa inocente em perigo, não importa se ela levou um raio ou se está se afogando, devemos ajudá-la, sei que não podemos salvar todos os inocentes, mas esse homem nós podemos salvar.
— O garoto tem razão — disse Marcel, Leon olhou para ele surpreso. — Não olhe para mim com essa cara, eu posso me explicar. Eu estou cagando para a merda desse seu código da cavalaria, nem sempre eu ajudo inocentes, mas dessa vez é diferente, foi culpa dele. Olha Leon, não sei quanto a você, mas eu odeio o Roderick e tudo que ele representa, eu sei que não posso matar aquele desgraçado e sei também que não posso impedir que ele cause sofrimento a várias pessoas, mas eu estou cansado de ver tudo sem fazer nada a respeito, se eu puder salvar até mesmo o canalha do Ibraim, que não é inocente porra nenhuma, eu vou me sentir mais aliviado com o peso que trago na minha consciência. Há muitos anos eu deixei de agir quando o Aurélio Roderick estava defendendo o rei e até hoje tenho pesadelos com o que aconteceu. Não sei o que você sente, mas eu realmente espero que você também sofra com isso todos os dias, que todo o mal que eu sinto também caia sobre você. Hoje eu vou fazer o que eu deveria ter feito há vinte anos, não com a esperança de me redimir, pois sei que isso é impossível, mas para ver se com isso eu tiro um pouco do peso que trago na minha consciência.
Leon ouviu todo o discurso de Marcel em silêncio, lutando consigo mesmo para esconder seus sentimentos, com força hercúlea ele manteve-se impávido, sem mostrar ao garoto nem a Marcel o que se passava dentro do seu peito. Ele queria poder dizer a Marcel tudo o que ele sentia, mas era orgulhoso demais para isso, então ele juntou toda a força que seu brio lhe dava e disse com segurança:
— Quem vocês pensam que são para me dizer o que devemos ou não fazer? Eu praticamente escrevi o código da cavalaria. Adrian, seu merdinha, sei muito bem como se deve agir ao proteger inocentes e o prefeito dessa birosca não é inocente, ele é um canalha que controla traficantes. Quanto a você, Marcel, vá à merda com seu peso na consciência, você não agiu vinte anos atrás porque era fraco e covarde, eu fiz tudo que pude e tenho minha consciência limpa. Mesmo dito tudo isso, ordeno que salvemos o prefeito, ele tem recursos que podem nos levar até o rei de Quendor. Vamos mostrar a esses caipiras que eles devem respeito aos cavaleiros de Catônia e não podem condenar um homem por ter auxiliado um cavaleiro. Quendor nos deve obediência e hoje vamos lembrar seus habitantes disso. Vamos, antes que seja tarde.
O velho cavaleiro saiu em direção ao patíbulo, Marcel sorriu da incoerência do discurso do outro, que sempre gostava de estar certo, mas acompanhou-o, Adrian seguiu atrás deles, curioso para saber o que aconteceu há vinte anos com aqueles dois para eles guardarem rancor um pelo outro e, principalmente, por Roderick.