Diógenes não gostava daquele bandoleiro, isso é verdade, mas ele tinha que admitir que aquele homem era ousado. Eduardo já tinha planos de ação anotados antes mesmo de fazer o acordo com o rei. Aparentemente, ele tinha plena certeza que o acordo entre eles aconteceria. O pior é que os planos eram bons, até mais lucrativos que os de Valentim. O antigo chefe dos bandoleiros era esperto e engenhoso, mas ele tinha um problema capital, era muito piedoso. Seus planos evitavam mortes e violências, já os de Eduardo, não. Mais mortes sempre trazem mais lucro, principalmente se forem aliados com quem você precisa partilhar.
— Então os bandoleiros estão de acordo com esses planos? — Indagou o rei.
— Vossa Majestade, eles estão de acordo com o que lhes cabe saber. Essa história de transparência era com o Valentim. Comigo o negócio é diferente. Eles farão exatamente o que está escrito nesses planos. Isso é uma garantia minha, pois serei eu quem fará com que isso dê certo — disse Eduardo enquanto comia algumas frutas e fazia sorrisos debochados.
— Não me leve a mal garoto. Você é muito bom, isso é verdade, mas seus planos me são inúteis — Falou Diógenes visivelmente incomodado com a atitude presunçosa do outro. — Você me traz planos de saques e golpes que me trarão riquezas, mas eu já sou podre de rico. Você me oferece o auxílio dos bandoleiros, quando eu já tenho a posse do maior exército do mundo. Se eu quisesse, todo maldito bandoleiro estaria crucificado amanhã mesmo. Meus problemas, hoje, são outros. Roderick está à solta, causando confusões por toda a parte e tenho receio que isso acabe virando uma guerra. Meus espiões afirmam que já existem nações querendo se insurgir contra a nossa. Temos muitos inimigos que só querem ver um momento de fraqueza para nos destruir e eles estão começando a achar a história do rapto uma fragilidade no nosso poder.
— Mas é justamente por isso que trago esses planos, meu senhor. O senhor desdenha, mas sabe o poder que se aliado dos bandoleiros traz. Nós estamos em todo o reino, sabemos de todos os segredos e, por isso, somos um pilar importante no seu reinado. Esses planos trazem riquezas, é verdade, mas são, antes de mais nada, uma demonstração de poder. Se Vossa Majestade prestar bem atenção, verá que os alvos dos meus ataques são, principalmente, seus possíveis detratores. Matamos alguns burgueses sarnentos, roubamos suas fortunas e traremos uma violência tão grande que as pessoas lembrarão quem é Diógenes.
— Vocês são bandoleiros, não posso ter meu nome ligado diretamente a vocês. Vocês até trabalham para mim, mas isso não significa que me representam. Então, se vocês fazem um ataque em meu reino, ou em um reino do qual tenho posse, isso seria uma demonstração de fraqueza e não de poder da minha parte.
— E quem disse que tem que ser assim? Nós poderíamos ser uma força legítima de seu reino. Basta uma assinatura sua e isso se tornaria realidade.
— Tolice — disse o rei, mas não tão certo disso. O bandoleiro percebeu que ele estava inclinado a aceitar, por isso continuou a tentá-lo.
— Mas por quê? Veja as vantagens. Aumentaria a olhos nus o seu poderio; teria mais mobilidade para nos usar sem ter que trabalhar nas sombras; aumentaria seu status vilanesco que tanto lhe dá poder; e ainda te angariaria mais riqueza. O que é sempre bom em tempos de guerra.
— É um passo muito arriscado. Muitas pessoas guardam mágoas de vocês, e com motivos. Vocês são porcos, ladrões e estupradores. Trazê-los oficialmente para o meu lado seria passar essa mágoa para mim.
— E desde quando você se importa com isso? Você fundou sua famigerada história trabalhando com porcos, ladrões e estupradores. Pessoas magoadas são fracas. Se tivessem forças já teriam se vingado e se livrado da mágoa, mas não, elas apenas continuam a existir. Se alguém vier com esse tipo de história, você o esquarteja em praça pública e logo param de aparecer homens com esse tipo de moralidade.
— E se isso virar uma guerra civil?
— Você a sufoca.
— Não posso. Não, enquanto Roderick estiver por à solta.
— Talvez eu consiga resolver esse problema. Lembra-se que eu disse que tinha pista de onde estão as suas mulheres?
— Sim, lembro-me muito bem, mas até agora não me trouxe nada de concreto.
— Não é tão simples assim. A localização de Roderick provavelmente é em Viseu, ouvi relatos de que ele estava por lá. Inicialmente duvidei da informação, mas depois que eu soube da confusão em que ficou o vilarejo, creio que seja verdade. No entanto, a das mulheres é mais difícil.
— Não me venha com desculpas esfarrapadas. Lembre-se que nosso acordo depende disso. Não me custará nada esmagar seu crânio junto com essas porqueiras que você chama de planos.
— Sim, lembro-me bem. Não precisa me ameaçar. O que acontece é que estou sendo chantageado para conseguir essa informação e só você pode pagar o custo dessa chantagem — o rei ouviu aquilo e seu semblante imediatamente mudou.
— Sabia que havia algo por trás disso tudo — disse Diógenes enquanto levantava a pesada mesa de carvalho e a atirava ao chão, gerando um estrondoso barulho e destroçando o piso, para a surpresa absoluta de Eduardo. O bandoleiro estava estarrecido pela súbita violência do rei. Ele não imaginaria que aquela amistosa discussão chegaria a um ponto tão tenso. Diógenes, aproveitando-se da surpresa do outro, aproximou-se rapidamente, agarrou-o pelo crânio, como se segurasse uma esfera, e puxou-o para o chão. Ficaram atrás da mesa, como se o rei buscasse cobertura nela.
— O que é isso, meu rei? Por que essa súbita explosão? — gritou Eduardo desesperado enquanto o rei apertava sua cabeça com tanta força que fazia estalos.
— Você me pergunta o que é isso, seu desgraçado? — falou Diógenes furibundo. — Por acaso pensa que eu sou burro?
— Meu rei, é a mais pura verdade — disse Eduardo, enquanto se contorcia de dor. Aquilo realmente o havia pego desprevenido. Ele até pensou em tentar sacar sua adaga para ferir a mão que o segurava, mas pela força que estava sendo aplicada em sua cabeça, provavelmente ele morreria antes mesmo de conseguir reagir. Só o que restava era tentar convencer o maldito rei a poupá-lo. — Estou sendo chantageado pela informação, eu posso provar. Agora me largue, por favor. Está doen…
— Você sabe muito bem que não é por causa disso que estamos aqui atrás dessa mesa. Enquanto estávamos em reunião, mandei que meus guardas lá fora assobiassem para me indicar que estava tudo bem. Sempre faço isso para evitar ser pego desprevenido em uma cilada. Então, quer dizer que mais uma vez você trouxe canalhas para me assassinar? Quantos têm lá fora? Me diga ou eu juro que vou apertar tanto a sua cabeça que seus olhos vão pular fora.
— Argh! — gritou Eduardo enquanto tentava debalde tirar a poderosa mão do rei de seu crânio. — Meu senhor, eu juro, se há alguém lá fora, eu não faço ideia de quem seja. Isso dói muito. Por favor, seja sensato. Se eu fosse traí-lo, por que me arriscaria a fazer isso estando aqui e sabendo da sua capacidade?
— Não minta! — disse Diógenes enquanto espremia cada vez mais o crânio de Eduardo.
— Majestade, não é mentira. Se houver mesmo alguém lá fora, eu o ajudarei a enfrentá-los como fiz da última vez. Me matar é um erro.
— Por que eu deveria confiar em você novamente, seu rato?
— Porque o senhor sabe bem que não faz sentido eu traí-lo, uma vez que tudo o que eu queria está sendo atendido. — Diógenes ainda hesitou por alguns instantes, mas aceitou que os argumentos do bandoleiro faziam sentido e, bem no fundo, ele tinha o pressentimento de que realmente o outro era inocente. Então ele o largou. Eduardo sentia sua cabeça girar e ele tinha certeza de que havia sangue saindo por suas orelhas, nariz e até por seus olhos. Mais alguns segundos, e ele estaria morto.
— Se não foi você, então fique a postos. Se vieram me matar, também darão cabo de você — disse Diógenes enquanto apanhava do chão seu martelo de batalha que havia caído de cima da mesa. Eduardo não estava bem, seus sentidos vacilavam. Ele mal podia ficar acordado, quanto mais combater alguém. No entanto, aquilo poderia se tornar rapidamente uma situação de vida ou morte se o rei estivesse certo quanto ao fato de que poderia haver alguém do lado de fora que queria invadir aquela sala. Eduardo juntou todas as forças que tinha, puxou duas adagas que guardava na cintura e ficou a postos, o melhor que podia naquela situação.
Os dois, nervosos, aguardavam em silêncio. O tempo passava lentamente, mas ninguém entrava pela porta. Os sentidos de Eduardo voltavam aos poucos e ele começava a pensar que aquilo era só paranoia de Diógenes, mas logo esse pensamento se mostrou uma inverdade. A sala foi, aos poucos, sendo invadida por uma fumaça. A princípio era bem fina e clara, mas aos poucos foi se tornando densa e escura. Ela cheirava a incenso e não era possível distinguir de onde vinha. Logo alguns vultos foram aparecendo ao redor deles dois, eram indistinguíveis, mas claramente eram humanos. Rapidamente eles estavam cercados de, pelo menos, uma centena desses vultos. Ficou óbvio que se esconder atrás da mesa ou lutar seria inútil. Eduardo foi o primeiro a largar as armas e levantar as mãos em rendição. Diógenes relutou, mas seguiu o exemplo do bandoleiro. Uma das sombras foi se aproximando e, aos poucos, foi ficando mais fácil de distingui-la. O homem usava um lenço cobrindo a maior parte de seu rosto, mantendo apenas seus olhos à mostra. Diógenes reconheceu quem eram.
— Seus malditos cães, então alguém os pagou para me matar? — perguntou o rei, com desdém na voz. Eduardo viu que era algo pessoal e que a situação era complexa. Naquele momento, a melhor ajuda que ele poderia dar a Diógenes era fazendo silêncio. O rei continuou: — Vocês são uns porcos mentirosos. Me disseram que nunca aceitavam serviços de liquidar alguém que já foi cliente de vocês.
— Não recebemos proposta nenhuma para liquidar você — disse o homem encapuzado se aproximando cada vez mais do rei, a ponto de ficarem, no máximo, a dois braços de distância. — Mas você sabia das consequências ao fazer o que fez.
— Do que você está falando, cão? Não me venha com subterfúgios. Vocês estão aqui para me matar ou não?
— Matar um cliente seria uma vergonha sem precedentes para nosso clã. Você sabe que nosso acordo nos impede de matá-lo, isso, é claro, se você tivesse cumprido com o acordo.
— Fale claramente, não gosto desses joguinhos — disse Diógenes nitidamente se enfurecendo com a situação. — Você fala sobre descumprimento de acordo, mas, da minha parte, tudo o que combinamos foi cumprido.
— Nós sabemos que erramos — admitiu o homem encapuzado —, mas você deveria saber que somos a Doença Mortal. Pode demorar anos, mas nosso serviço se concretizará. Sabemos que a sua parte estava sendo cumprida, mas foi recentemente que descobrimos que a nossa ainda estava incompleta. Você não deveria ter descumprido o acordo e mandado aquele homem nos destruir. Você nos amaldiçoou. Por sua causa o nosso clã está acabado.
— Olha aqui, seu merdinha. Ainda não entendi patavinas do que você disse. Já disse, não faço ideia do que você está falando. Que história é essa de que vocês erraram? E de que homem vocês estão falando?
— Nós estamos nesse ramo há muito tempo. Sabemos claramente quando um homem está mentindo, e você não me parece que está. Se nossa primeira hipótese não é verdadeira, então devemos esclarecer a situação.
— Sim, desgraçado. Me esclareça.
— Vossa Majestade mandou um cavaleiro nos matar?
— Ai, meu Deus! Até imagino de quem você está falando. Não, eu não mandei nenhum cavaleiro matar vocês, nem teria motivo para isso.
— O motivo até existe. O fracasso na nossa missão.
— Que fracasso? É a segunda vez que fala nisso e ainda não me explicou.
— Serei o mais claro possível, então. Majestade, um dos alvos do seu pedido está vivo, só recentemente descobrimos. Estávamos há alguns dias tentando dar cabo dele, mas vários infortúnios aconteceram. O principal foi a chegada de um cavaleiro. Ele dizimou nossos homens. Nós acreditávamos que ele tinha sido enviado por você como represália por termos falhado.
— O desgraçado só pode ser o Augusto Roderick, mas eu não o mandei matar vocês. Ele saiu aqui do reino em busca de minhas mulheres que foram raptadas. Ele está em uma missão de resgate, não de represália, muito menos contra vocês. Deve haver algum engano. Vocês devem estar me confundindo com algum outro cliente. Todos os alvos que dei a vocês foram devidamente silenciados.
— Realmente, para nosso infortúnio, se tratava de Augusto Roderick. Enquanto liquidávamos nosso alvo, ele apareceu. Pensávamos que se tratava de um transeunte qualquer, então tentamos matá-lo quando ele testemunhou nosso ataque. Aquilo se mostrou um erro crasso. Ele não só derrotou todo o nosso batalhão, como também nos fez cometer uma tolice sem tamanho.
— Que seria? — indagou o rei.
— Nós o marcamos para a morte. Chagas, um dos nossos soldados, foi o único sobrevivente do combate e nos contou tudo. Ele deu a descrição dos dois homens que deveriam ser nossos alvos prioritários por terem impedido o nosso trabalho. Ah, meu senhor, nada poderia ser pior. A descrição era a de Augusto Roderick, o cavaleiro mais poderoso de Catônia. Hoje, estamos amaldiçoados a caçá-lo. Ele, o homem imbatível. O descendente da honra e glória dos Rodericks.
— Não seja tolo, seria impossível matá-lo — disse o rei a contragosto. — Se isso fosse possível, eu mesmo teria contratado vocês para isso.
— Sim, sabemos que é impossível e se você nos tivesse contratado para tal feito, teríamos recusado. Todavia, a promessa de persegui-lo foi feita e nós, a Doença Mortal, temos um código de honra bem restrito. Uma vez que marcamos um nome, devemos liquidá-lo, não importa a que custo!
— Eu acho uma idiotice — disse o rei. — Esqueça essa bobagem de código de honra e viva.
— Não vê que o que pede é impossível. Nós só existimos por causa do código. Nossa fama, nossa honra e o nosso orgulho dependem dele. Quem confiaria em nós se soubesse que prometemos a morte de um homem e não cumprimos essa promessa? Quem pagaria por serviços de valores faraônicos sem acreditar na nossa palavra? Existem três regras que nunca poderemos quebrar. A primeira é que nunca aceitaríamos um serviço contra alguém que nos contratou, pois isso geraria medo de traição. A segunda: nunca deveremos revelar quem nos contratou, pois nossa discrição é nosso maior valor. Por fim, a terceira: devemos, a todo custo, eliminar todos aqueles que forem marcados pela morte pela Doença Mortal.
— Então vocês estão fudidos — disse Diógenes de maneira canalha. — E eu não tenho nada a ver com essa porra. Se vocês querem se matar seguindo o filho da puta do Roderick, o problema é de vocês. Já disse que não fui eu quem mandou ele atrás de vocês. Então, vão à merda e saiam do meu palácio.
— Infelizmente — lamentou o homem encapuzado —, não podemos fazer isso. E nós cremos que nem você gostaria que fôssemos embora sem que nos aliássemos a você nessa missão.
— Você por um acaso comeu merda? — indagou Diógenes se enfurecendo. — Por que diabos eu me aliaria com vocês para tentar matar o puto do Roderick. Além de ser impossível, teoricamente, ele é meu subordinado.
— Isso, Vossa Majestade — disse o homem encapuzado —, é porque você não sabe quem é que ele está protegendo. Quando você souber, terá que entrar na nossa missão suicida. Será sua única opção.