O salão estava silencioso, mesmo que nele houvesse mais de uma centena de pessoas. Todas elas olhavam pacientemente enquanto o cavaleiro se afastava a passos largos. Tão logo ele cruzou a porta de saída começou um burburinho, primeiro discreto, alguns comentários ditos ao pé do ouvido, mas, aos poucos, ele foi crescendo, logo todos falavam a plenos pulmões. O palácio real não ficou devendo em algazarra à feira da cidade. Várias pessoas tentavam falar com o rei ao mesmo tempo, ele se esforçava para escutar, mas era impossível, enquanto um falava, outro interrompia, ou até falava ao mesmo tempo.
Diógenes era rei há mais de duas décadas e ele se tornou um com uma maré de sorte que poucos conseguem explicar. Ele não era a primeira opção na linha de sucessão do trono, para falar a verdade ele era o décimo sexto, pois o antigo rei teve muitas esposas e muitas amantes, consequentemente, ele também teve muitos herdeiros legítimos e muitos bastardos. Diógenes tinha o mais alto índice de bastardia de toda a progênie que fazia parte, pois era filho de uma mendiga, bêbada, louca e perneta. A história de sua concepção era o tipo de coisa que ser humano algum gostaria de ouvir. Tirando os hábitos pouco virtuosos do antigo rei, ele era bom e correto em seu trabalho, seus súditos ficaram tristes quando descobriram que ele morreu, mas todos se conformaram por se tratar de uma morte natural, afinal, era bem natural morrer depois de levar oito facadas nas costas. O reino nem teve tempo de sair de seu luto e já entrou em outros quinze, como uma epidemia, a mesma causa mortis que levou o rei ao sossego eterno, também levou grande parte de seus filhos. Da noite para o dia eles amanheceram com os mesmos sintomas do pai: buracos nas costas. Aparentemente, até um bebê teve o mesmo fim, mas seu corpo estava tão irreconhecível que foi velado com o caixão fechado. Diógenes, que, como ele mesmo gostava de falar, era o mais sortudo, sobreviveu e herdou o trono.
Reinar foi uma tarefa fácil, principalmente nos últimos oito anos. Há muito tempo ele não se encontrava em uma situação tão delicada. Diógenes tinha mais de um metro e noventa e a compleição de um touro, se considerava um homem forte física e psicologicamente, por isso ele nunca pedia ajuda a conselheiros, mas, dessa vez, ele julgou que precisava. Ele não tinha ideia de como agir, todavia, era imprescindível fazer algo. Por diversas vezes ele tentou ouvir um conselho, mas logo era interrompido com outro. O barulho começava a ficar ensurdecedor, as pessoas da corte falavam cada vez mais alto para serem ouvidas, gargalhadas estridentes ecoavam por toda parte. Ele estava se irritando pouco a pouco, até que não conseguiu mais se controlar e gritou enfurecidamente:
— Silêncio, seus cães! — o grito foi tão alto que fez todos se calarem imediatamente e olharem para ele. — Não pensem que estão no bordel que vocês chamam de casa, vocês estão em meu palácio e não admito esse tipo de comportamento aqui. Se querem agir como animais vão a uma estrebaria ou algo do tipo, em minha presença vocês terão respeito, não me importa se as meretrizes de suas mães não lhes ensinaram educação. Calem-se! Muito bem, prestem atenção, suas sanguessugas inúteis, por vários anos eu nunca pedi a ajuda de vocês, mas hoje é um dia especial, a situação é complicada e eu preciso de conselhos. Agora levante a mão quem quiser falar e eu permitirei que fale, mas apenas um por vez. Você, Crisóstomo, diga o que quer.
— Primeiramente, perdão pela bagunça, senhor — o rei apenas fez um movimento desleixado com a mão, indicando que ele continuasse e parasse de rodeios. — Por segundo, eu gostaria de deixar bem claro que eu confio completamente na palavra de Roderick. Espero que, se um dia ele vier a saber o que eu disse aqui hoje, ele saiba também que eu acredito nele... Quer dizer... Acredito que ele pense ser verdade. Catônia é um reino cheio de inimigos, é certo que vivemos em paz há muitos anos, mas todos nós sabemos que os reinos que nós derrotamos anseiam por vingança. Ao sul de nossas terras vivem os povos de Shitania, eles são conhecidos por trabalharem com ervas alucinógenas. O que eu acredito que tenha acontecido é o seguinte: alguns shitanianos invadiram nossas terras e conseguiram fazer com que Roderick inalasse alguma fumaça alucinógena. Enquanto ele estava delirando, eles raptaram as concubinas de Vossa Majestade. Tudo isso com o intuito de acabar com nossa reputação, afinal, nós não mais pareceremos imbatíveis. Vejam bem, nenhum reino tem coragem de nos atacar, isso porque nós já derrotamos a todos no passado. O plano dos shitanianos é dizer que nosso reino não tem mais a força de antigamente, que nós não podemos nem mesmo proteger nossas mulheres e que nem nosso mais renomado cavaleiro pôde pará-los. Se os outros reinos virem fraqueza nisso, eles podem fazer uma aliança para nos derrotar. O que eu sugiro é um ataque preventivo, devemos atacar novamente os shitanianos e tenho certeza que encontraremos vossas mulheres lá, mas dessa vez não podemos errar, devemos extingui-los.
— Senhor, peço a palavra — disse o duque de Albanis, um homem gordo e careca que se vestia de maneira suntuosa.
— Fale — respondeu o rei —, qualquer ajuda é bem-vinda agora.
— Meu senhor, o que Crisóstomo disse faz sentido, admito, mas não podemos fazer o que ele sugeriu, não sem manchar a reputação de Roderick. Eu entendo que, se toda essa situação for um complô de nossos reinos inimigos, Catônia estará em maus lençóis. Eu também acredito que, por algum motivo que eu não sei qual é, Roderick pensa que forças diabólicas tomaram vossas mulheres, mas o que eu sei é que se ele se prontificou a resolver a situação, já podemos contar com ela resolvida. O que eu aconselho é o seguinte: devemos dar uma semana a Roderick para que ele resgate todas as vossas mulheres, mas tenho certeza que ele conseguirá antes, no final não vai importar se foram os shitanianos ou quem quer que tenha sido. Roderick descobrirá quem foi e vai dar fim em todas as pessoas que tiverem participado disso. Se agirmos antes disso, Roderick pode se sentir ofendido e nós não queremos isso.
— Que bando de baboseira é essa que vocês estão dizendo? — perguntou um jovem rapaz vestido de cavaleiro, falando alto para ser ouvido e notado dentro da multidão. — Senhor, não me espanta que não tenha o costume pedir conselhos a ninguém, afinal seus súditos me pareceram bem idiotas. Olhe bem o que você deve fazer, primeiramente deve arranjar novas mulheres para fazer um novo harém, aquelas já estavam ficando velhas mesmo, esqueça-as, não farão falta para o senhor; por fim, deve mandar matar aquele incompetente que você deixou de guarda, eu não entendi o porquê disso já não ter acontecido.
Assim que o garoto terminou de falar, um silêncio sepulcral se apoderou do salão, todos olhavam estupidificados para ele, nem mesmo as respirações eram ouvidas, o garoto estava assustado quando, de repente, uma gargalhada generalizada eclodiu, todos da corte riam como se nunca tivessem ouvido nada tão engraçado. Apenas uma pessoa não ria, Diógenes. Ele olhava estarrecido para o garoto, que, nesse momento, também ria, mesmo sem não saber o porquê. O rei não podia acreditar no que tinha ouvido, era uma concentração tão grande de imbecilidade reunida em algumas poucas sentenças, ditas por uma pessoa que ele nem mesmo sabia quem era. Com um gesto ele ordenou silêncio, a corte precisou de muito esforço para se controlar, lágrimas foram enxugadas aos montes, as gargalhadas começaram a virar aquele som que fazemos quando tentamos nos recompor, mas enfim se esvaíram por completo.
— Quem é este asno que adentra em minha corte e fala sem permissão?
— Senhor, peço a palavra — disse um cavaleiro de porte majestoso, aparentava ter uns cinquenta anos, mas já tinha mais de sessenta, seu nome era Leon e ele era o mestre da cavalaria real. O rei consentiu com a cabeça, mas antes de continuar a falar o cavaleiro deu um tapa com as costas da mão na boca do garoto, o golpe foi tão forte que derrubou-o ao chão, cuspindo sangue — Peço perdão por esta mula, é meu escudeiro, ele é estrangeiro e jovem, por isso não sabe o tamanho da imbecilidade do que disse.
— Qual é seu nome, garoto? — perguntou o rei enquanto se levantava do trono e caminhava na direção dele, as pessoas se afastaram para abrir passagem.
— Meu nome é Adrian. — respondeu o garoto, Leon olhou para ele com fúria e ameaçou um golpe com as costas da mão para lembrá-lo de que a resposta estava sendo insolente. — Senhor. Meu nome é Adrian, senhor.
— E de onde você é, Adrian? — questionou Diógenes calmamente, enquanto andava lentamente até ele.
— Sou de Quendor.
— E o que um jovem rapaz de Quendor faz aqui em Catônia? — indagou o rei, finalmente chegando ao garoto. Ele abaixou-se e ajudou o outro a se levantar.
— Senhor, há oito anos o reino de meu pai foi derrotado pelo seu, então Quendor jurou fidelidade a vossa senhoria. Como prova de boa fé meu pai, o rei Aldenor, me cedeu como convidado a vosso reino, para que assim eu me tornasse um cavaleiro de ambos os reinos.
— Sim, agora me lembro de quem é você — disse o rei de forma dissimulada enquanto limpava a poeira da armadura do jovem. Depois que ele terminou a limpeza, encostou o braço direito no ombro do garoto e começou a encará-lo, sorrindo. Adrian estava assustado, o rei não desviava o olhar e ele começou a ficar constrangido, não sabia o que falar ou fazer, então o garoto fez a única coisa que passou por sua cabeça, sorrir de volta. A expressão do rei se alterou imediatamente, o rosto complacente virou uma máscara de fúria, a mão que estava no ombro de Adrian foi para o pescoço, agarrando-o com força e levantando-o do solo. — Lembro bem quem é você. Você é um bostinha, filho de um bosta, de um reino de bosta. O inútil de seu pai não me deu uma prova de boa fé e você não é meu convidado. Você é meu refém, tomado dos braços da prostituta da sua mãe e você nunca será um cavaleiro de meu reino, nem de reino nenhum. O garoto esperneava tentando se libertar, debalde, a mão de Diógenes era rija como aço. O ar começava a faltar, quando a sua consciência estava por um fio, o rei soltou-o ao chão. Adrian tossia desesperadamente tentando recuperar o fôlego. Diógenes gritou enfurecido:
— Ele é um Roderick, seu cretino, e você diz que eu devo mandar matá-lo? Quem, em todo o mundo, é capaz disso? Ninguém, sua mula, ninguém. Ele é um monstro, entendeu? Se tivesse sido mesmo o Diabo quem fez isso, eu teria pena da alma da pobre criatura. Você nem mesmo entende a complicação em que eu estou. Meu problema não são as mulheres e não são os reinos inimigos, meu problema é Roderick. Você, com esse seu cérebro de minhoca morta, não consegue compreender que tipo de assolação um Roderick é capaz de fazer em busca de vingança. O meu sonho está arruinado. Sabe qual era o meu sonho, garoto?
Um breve silêncio imperou.
— Responda-me, seu bostinha. Você sabe qual era o meu sonho?
— Não, senhor — respondeu Adrian, ao entender que não era uma pergunta retórica. Seu pescoço coçava e ardia.
— O meu sonho era que Roderick vivesse o resto da sua vida em paz e que nunca tivesse filhos, para que assim não me causasse mais estragos. É verdade que os Rodericks são fortes e que tê-los como subordinados significa que você é imbatível, mas isso é uma bênção e uma maldição. Um Roderick foi o responsável pela minha vitória contra todos os reinos que já enfrentei, mas ele também foi a causa de todas as guerras que já lutei, pois a destruição que ele causa gera sempre mais destruição. Todos querem vingar-se de sua família, isso é um ciclo infinito de destruição. Há oito anos eu vivo em paz, o nome Roderick estava praticamente sumindo da memória das pessoas, pois consegui fazer com que Roderick abandonasse o campo de batalha e virasse um guarda-costas. Fiz com que ele acreditasse que aquelas mulheres eram a coisa mais importante que eu tinha na vida, por isso ele deveria protegê-las. Agora isso se volta contra mim, Roderick está à solta e nem mesmo Deus sabe do que ele é capaz. A minha esperança é que ele descubra com urgência onde essas mulheres estão e volte sem fazer muitos estragos. Eu nem mesmo posso ajudá-lo e achar as mulheres por conta própria, pois seria manchar sua honra e eu não quero nem saber o que ele faria nessa posição. Não preciso mais da ajuda de vocês, já me decidi, esperarei por Roderick, não importa que tipo de loucuras ele faça para conseguir resgatar minhas mulheres, mas mandarei homens disfarçados para ajudá-lo, eles lhe darão conselhos para que a jornada dele termine o mais rápido possível. Quanto a você garoto, venha aqui.
— Sim, senhor — disse Adrian se aproximando do rei.
— Você não será mais um cavaleiro — disse o rei enquanto tomava a espada do garoto e arrancava o brasão em sua armadura. — Leon não será mais o seu mestre, pois agora você será discípulo do bobo da corte. Fez muito bem hoje ao conseguir com que toda minha corte gargalhasse, então, a partir de hoje, será aspirante a bobo oficial. Agora saia de minha frente, não só você, mas todos vocês, quero ficar sozinho nesses últimos momentos de paz que terei em muitos anos.