A vida
era pacata em Viseu, seu clima era ameno, a criminalidade era baixa, a comida
era farta e doenças eram raras, tudo isso porque ela era uma cidade de
intermédios. Sálvia, o maior deserto de Catônia, traficava bebidas, mulheres e
mercadorias roubadas para Quendor, tudo isso seguia por uma estrada única,
cercada por montanhas e Viseu era o ponto intermediário de todas as transações
ilÃcitas. Não que toda a cidade fosse criminosa, longe disso, as pessoas de lá
conseguem viver honestamente e o fazem, mas, por se tratar de um local em que
grandes negociações ilÃcitas são feitas, isso acaba refletindo na economia
local. Assaltos, brigas e confusões em geral eram terminantemente proibidas por
lá. Qualquer coisa que viesse a destruir a paz das negociações do lugar, e
chamar a atenção das autoridades de Catônia ou as de Quendor, era punida com
severidade. Assim como o veneno da serpente serve para curar, o tráfico em
Viseu serve para trazer paz. É aà que podemos perceber que há algo de bom mesmo
nas coisas do mal.
Roderick chegou na cidade carregando
o rapaz ferido, ele não se importou com os cochichos que sua presença gerava
entre as pessoas, tratou logo de se informar onde havia tratamento médico na
região, descobriu que Viseu tinha um hospital e levou o jovem ferido para lá à s
pressas. Valentim seguia-o de longe, preocupado porque o cavaleiro estava
chamando muita atenção em uma cidade que considerava isso crime capital. O
hospital de Viseu era em um prédio branco, sua construção era retangular,
possuÃa vários cômodos, nele era possÃvel atender a pelo menos uma centena de
feridos. Os médicos de lá estavam do lado de fora, sentados e conversando, pois
não havia ninguém para atender. Nunca havia ninguém, a construção do hospital
fora uma excentricidade do prefeito, Viseu não tinha feridos e doentes o
suficiente para merecer uma construção daquela, afinal, quando alguém tinha
motivo para ser ferido por lá, normalmente não dava tempo de ir ao hospital,
uma vez que, para evitar estardalhaço, eles se especializaram em causar apenas
ferimentos fatais. O cavaleiro chegou para atrapalhar a indolência dos
trabalhadores da região. Os médicos ficaram assustados, há muitos anos não
aparecia alguém com marcas de espancamento, pelo menos não vivo, mas, mesmo
assim, foram ágeis no seu atendimento, levaram-no para dentro e começaram a lhe
tratar. Roderick explicou o que tinha acontecido a um dos médicos e pediu para
que esse fosse chamar a guarda local para que, por sua vez, eles fossem buscar
os criminosos que ele havia amarrado na estrada. O homem foi, algum tempo
depois, ele voltou com quatro guardas armados.
— Boa tarde, senhor. Nós fomos
chamados por uma alerta de espancamento — disse o guarda que parecia ser o
lÃder dos outros —, o que o senhor pode me dizer a respeito disso?
— Boa tarde, senhor — respondeu
Roderick. — Eu mesmo solicitei que o médico fosse atrás das autoridades. O
jovem rapaz que está ferido foi atacado na estrada, eu o socorri e trouxe-o
para cá.
— Entendo — concluiu o chefe da
guarda. — O senhor poderia vir conosco? Precisamos averiguar alguns pontos
dessa sua história.
— Como assim, averiguar? — indagou o
cavaleiro.
— É porque, segundo o médico, o
garoto é nativo aqui de Viseu, já você é um estrangeiro, sobre quem não sabemos
nada.
— Não se preocupe quanto a isso,
deixe que eu me apresente. Eu sou Roderick, cavaleiro do rei Diógenes, estou em
uma missão real. Para explicar melhor a história, é mister que eu lhes dê os
detalhes do ocorrido. No caminho de Sálvia para Viseu, eu encontrei o jovem
rapaz sendo cruelmente espancado por três camponeses, eu os rendi e amarrei-os
na floresta, depois eu trouxe o garoto para ser tratado aqui. Agora, senhores,
peço que vocês busquem os criminosos na floresta, eles estão amarrados e não
trarão mais problemas.
— Quer dizer que o senhor é um
cavaleiro do rei Diógenes? — perguntou o lÃder da guarda. Os guardas começaram
a fazer um cÃrculo ao redor de Roderick, e o médico correu para dentro do
hospital
— Exatamente — respondeu com
segurança.
— E o senhor poderia me dizer o que
um cavaleiro de Diógenes faz tão longe de seu reino? — perguntou de maneira
inquisidora.
— Eu já disse que estou em uma
missão real. Vou logo avisando aos senhores que não estou gostando desse
interrogatório, muito menos do fato de vocês estarem me cercando. Sugiro que
parem com isso imediatamente e que sigam para fazer seu trabalho. Na floresta
tem três criminosos esperando para serem presos.
— O problema, senhor cavaleiro, é
que não gostamos de bisbilhoteiros estrangeiros em nossas terras. Qual é essa
missão do rei que você veio cumprir? Está aqui para desmantelar nossos negócios?
— O meu interesse por esses seus
negócios é nulo, não faça com que a vontade que eu tenha de que você viva
também se nulifique.
— Você é muito arrogante cavaleiro,
para mim perdeu a importância saber o que você planejava aqui. Homens,
matem-no!
Os quatro guardas sacaram suas
espadas depois que a ordem foi lançada. Roderick rapidamente pôs a mão no cabo
de sua espada e girou, ele sacou a espada enquanto girava. Os guardas mal
compreenderam quando suas espadas caÃram, uma após a outra, só conseguiram descobrir
o motivo quando o sangue começou a jorrar e eles perceberam que estavam sem os
seus polegares. Roderick tinha-os cortado durante o giro, antes mesmo que eles
pudessem empunhar as espadas direito. Dois caÃram no chão gritando de dor, um
deles teve a ação de pegar o dedo no chão e correr para dentro do hospital para
tentar costurá-lo, no outro dia ele ficaria muito triste quando descobrisse que
pegou o dedo errado. O único que ficou para encarar o cavaleiro foi o chefe da
guarda, ele tentava estancar o sangramento e praguejava.
— Seu desgraçado! Eu vou te matar!
— Esse não é o momento certo para me
ofender — disse Roderick com altivez —, leve seus pedaços de carne e vá embora,
não quero matá-lo sem que haja necessidade.
— Você me paga, seu maldito! — gritou
o guarda enquanto puxava um punhal com a mão que não havia sido ferida.
Roderick fez uma expressão de decepção e estava pronto para desferir um golpe
fatal no guarda, mas um grito chamou a atenção dos dois.
— Parem com isso! — disse um homem
mais velho, ele estava acompanhado de Valentim. — Diogo, pare de atacar esse
homem.
— Mas senhor, ele feriu quatro
guardas. Ele também é um cava…
— Silêncio! Não vê que isso tudo foi
um grande mal entendido? Pegue seus homens e vá para o hospital.
— Mas senhor… — tentou implorar o
guarda, no entanto foi interrompido.
— Chega! Não vê que eu estou
salvando a sua vida, seu imbecil. Vá logo antes que esse homem perca a
paciência — o chefe da guarda lutou consigo mesmo por alguns segundos, mas no
fim acabou obedecendo ao homem, ajudou os dois colegas feridos a levantarem-se
do chão e foi para o hospital. Roderick, vendo que o velho homem não oferecia
riscos e estava acompanhado de Valentim, guardou sua espada.
— Obrigado por terminar essa
contenda sem sentido, nobre ancião — agradeceu Roderick.
— Eu que agradeço por você não ter
matado meus homens. Eu sou o prefeito aqui dessa cidade, meu nome é Ibraim.
— É um prazer, senhor. Eu me chamo
Roderick e sou um cavaleiro de Catônia.
— O Valentim já havia me informado
sobre tudo. Ele sempre vem aqui a negócios, por isso veio falar comigo, disse
que estava chegando na cidade e estava acompanhado de um amigo. Ele também me
explicou que você foi para o hospital com um homem ferido e que as pessoas
começavam a desconfiar de você. Peço perdão por isso, aqui nós somos sempre
muito desconfiados.
— Eu entendo, senhor, nunca é bom
baixar a guarda, mas eu sinto muito que seus guardas tenham se ferido antes de
entender que eu não era um inimigo.
— Já disse que estou é feliz por
eles não terem morrido. Quando Valentim me disse que era um Roderick, eu quase
caà da cadeira. Vim correndo o mais rápido que pude, por sorte cheguei antes
que acontecesse uma desgraça maior. No mais, é isso, estou muito feliz com sua
presença em nossa cidade e espero que tudo dê certo e que vocês sigam seu
caminho em paz. Adeus, senhor Roderick — disse o prefeito enquanto apertava a
mão do cavaleiro.
— Muito obrigado, senhor Ibraim —
agradeceu Roderick. O prefeito foi para o hospital ver como seus homens
estavam. O cavaleiro ficou a sós com o bandoleiro. Eles estavam em silêncio,
mas logo Roderick tratou de quebrá-lo. — Obrigado por pedir a ajuda do
prefeito, eu não ia gostar de ter que matar aqueles homens.
— Ninguém gostaria, mas tudo isso
foi culpa sua.
— Por que minha culpa? Não ofendi
ninguém e tratei apenas de me defender.
— É, mas você faltou com a sua
palavra — disse Valentim.
— Do que você está falando? —
perguntou Roderick confuso.
— Tenho certeza que você se
apresentou como cavaleiro de Catônia, não é mesmo?
— Sim, é verdade — respondeu
Roderick finalmente entendendo o que o outro estava dizendo.
— Mesmo depois de concordar comigo
que não faria isso. Eu disse a você que seria perigoso, não para você, porque
você sabe se defender até bem demais, mas para nossa missão. Se você quer
encontrar aquelas mulheres, então não pode sair por aà dizendo que é um
cavaleiro, muito menos deve ficar entrando em toda confusão que vê. Precisamos
ser discretos, Roderick, ou então não conseguiremos informações e elas estarão
perdidas.
— Eu estou entendendo onde você quer
chegar — disse Roderick com resignação. — Não faltei com minha palavra por
querer, foi o hábito de apresentar minhas credenciais sempre, no entanto,
prometo que me esforçarei em dobro para seguir os seus conselhos nessa
empreitada.
— Ótimo, com essa atitude vamos
conseguir completar nossa missão.
— Isso é tudo que eu mais quero.
Obrigado, Valentim.
— Não precisa agradecer, você está
me pagando. Agora vamos ao ferreiro, eu já falei com o prefeito e ele me
garantiu que mais nada aconteceria conosco enquanto estivéssemos aqui, mas eu
também garanti que irÃamos embora antes do fim do dia — falou Valentim enquanto
se virava e seguia a passos largos em direção à fornalha da cidade.
—
Valentim… — chamou Roderick enquanto o outro
se virava.
— Sim?
— indagou Valentim.
— Me
desculpe se o ofendi mais cedo, eu não pretendia. Você está me ajudando e eu
não deveria ser grosseiro com você.
— Não tem importância. Eu também fui
muito irritante, me desculpe por isso. Agora vamos, não temos muito tempo.
Os dois foram até o ferreiro. Valentim pediu
para que o homem polisse a armadura e o escudo de Roderick, antes que ele
pudesse dizer o valor, o bandoleiro disse que só poderia pagar dez moedas de
ouro no momento e só pagaria as outras dez alguns dias depois, quando voltassem
para pegar a armadura e o escudo. O homem se fez de contrariado, mas, na
verdade, concordou com muita satisfação, pois normalmente ele cobra uma moeda
de prata pelo serviço. Compraram suprimentos, um cavalo para Valentim, alguns
instrumentos para a viagem e foram embora de Viseu, subindo a montanha em
direção ao mosteiro.