Valentim
não podia acreditar no que tinha visto, mesmo que em toda a sua vida seus olhos
nunca houvessem lhe traÃdo, ele não confiava no que eles haviam lhe mostrado.
Roderick estava em pé, dentro do casebre, sem nenhum arranhão, enquanto seus
oponentes estavam mortos ou gravemente feridos. Paulo, o monge, também estava
no casebre; não fosse por Roderick, ele estaria morto.
O bandoleiro tentava recapitular o
ocorrido, para que talvez assim ele pudesse entender e aceitar que aquilo havia
mesmo acontecido. Valentim nunca tinha visto Roderick lutar antes, no deserto
ele derrotou seus subordinados antes mesmo de encontrá-lo; na estrada, Valentim
desmaiou antes que o cavaleiro tivesse agido contra os três malfeitores; e na
cidade ele tinha ido atrás do prefeito, só chegou depois que o cavaleiro havia
derrotado os guardas, então, essa havia sido a primeira vez que ele viu o outro
em ação. Valentim já sabia que Roderick era um guerreiro fora de série, mas
aquilo superou absurdamente todas as suas expectativas.
Tudo começou com a flecha, ela foi
disparada por trás de uma árvore que ficava ao lado do casebre. Logo depois de
apanhá-la em pleno ar, salvando assim a vida de Valentim, Roderick não perdeu
um segundo, com um empurrão, derrubou seu companheiro para trás de uma árvore,
fazendo com que assim ele tivesse cobertura contra qualquer outro ataque,
depois correu em campo aberto na direção em que o disparo veio. Mais flechas
foram disparadas contra ele, debalde, nenhuma lhe atingia. Valentim já havia
visto muitos homens ágeis, mas Roderick com certeza era o que sabia usar melhor
a sua agilidade. Sua velocidade não era sobre-humana, mas todos os seus
movimentos eram de uma precisão assombrosa, nada do que ele fazia era
supérfluo. Se ele movia a cabeça para a direita, uma flecha passava próxima a
ela pelo lado esquerdo, se ele dava um pequeno salto para o lado, a flecha
teria lhe acertado no outro, se ele punha a espada em frente ao rosto era para
resvalar uma flecha que lhe atingiria a face. Era como se ele soubesse de onde
as flechas viriam. Logo toda a distância entre o cavaleiro e o ofensor foi
percorrida e Roderick ficou defronte à árvore em que ele se escondia. As
árvores dessa região não tinham folhas e estavam secas, eram ótimas para se
esconder, mas não serviam como escudo, Roderick se atentou a isso e desferiu um
golpe de espada na horizontal, o ataque transpassou a fina casca da árvore. A
parte de cima do tronco caiu para a direita, a cabeça do homem que disparava as
flechas caiu para a esquerda.
O homem assassinado usava um lenço
envolvendo quase todo o rosto, menos os olhos, escondendo assim sua face, mas
Valentim conseguiu reconhecer de quem era. Para o bem da verdade, ele não sabia
especificamente quem era, mas tinha certeza a que grupo ele pertencia. Era
certamente um membro da Doença Mortal, um grupo secreto de assassinos. Esse
famigerado grupo é tão antigo quanto a história da humanidade, trabalham apenas
para pessoas abastadas, cobram fortunas para abater uma vÃtima e nunca deixam
testemunhas de seus crimes. Só Deus (ou o Diabo) sabe como as histórias deles
são levadas adiante. Eles são muito reservados e só são conhecidos pela alta
nata da sociedade. Valentim só sabia da existência deles porque já roubara a
casa de muita gente rica e já vira muitos documentos secretos a respeito deles.
Ele leu que eles sempre cobriam o rosto com um lenço negro, usavam roupões que
iam até a altura da coxa e eram abertas na frente. Uma faixa na cintura fechava
esses roupões e segurava suas calças. Era exatamente dessa maneira que o homem
abatido estava vestido. Valentim nunca havia visto um, mas sabia que eles eram
perigosos, as lendas contam que eles nunca falharam em uma missão, pois eram
persistentes, uma vez que uma pessoa era marcada para morrer por eles, essa
pessoa podia se considerar morta, porque eles perseguem suas vÃtimas até que
elas estejam efetivamente mortas, não se importam com distância ou tempo, cedo
ou tarde eles cumprem a sua missão, assim como uma doença que não tem cura.
Quando descobriu a identidade do
arqueiro, Valentim ficou terrificado, pois ele também sabia que esses homens
não atacavam de forma solitária, mas sim em grupo, sempre às escondidas,
provavelmente havia vários outros na redondeza e pensou que por mais que
Roderick fosse bom, ele não seria capaz de enfrentar homens bem treinados,
atacando à surdina e de maneira covarde. Ledo engano. Valentim quis alertar o
amigo sobre a presença de outros inimigos, mas isso não foi necessário, o
cavaleiro apanhou o arco do cadáver e correu dando disparos ao que parecia ser
a esmo. Seis gritos de dor foram ouvidos, cada um foi precedido de uma flecha
lançada por Roderick. Seis dos integrantes da Doença Mortal tombaram mortos,
três também tinham arco, mas estavam tão preocupados em dar um disparo perfeito
que morreram ainda mirando, os outros três provavelmente eram apenas batedores,
pois não usavam armas de grande porte e estavam mais bem escondidos.
Roderick largou o arco e correu para
o casebre, a porta dupla estava trancada, mas ele se aproveitou do impulso da
corrida e deu um chute com toda a sua força para abri-la, o trinco se
arrebentou e os dois lados da porta se escancararam, revelando uma cena
inusitada. Dentro do recinto estavam oito integrantes da Doença Mortal e um
monge, ele estava com a boca amordaçada e as mãos e pés amarrados, dois
assassinos seguravam-no em pé, em cima de uma cadeira, enquanto um terceiro
tentava pôr uma corda que estava amarrada no teto ao seu pescoço. O cavaleiro
nem teve tempo de perguntar o que era aquilo antes que um dos assassinos lhe
atacasse. O homem arremessou duas adagas em sua direção, mas elas foram
ricocheteadas por golpes de espada e foram atingir dois dos integrantes da
Doença Mortal, um foi ferido na virilha e o outro no olho, ambos caÃram. Um
espectador desatento poderia supor que foi pura sorte as adagas terem atingido
seus inimigos, mas alguém que conhece a fama de Roderick saberia muito bem que
aquilo foi calculado. O assassino que atingiu seus colegas tentou sacar mais
adagas, mas Roderick investiu contra ele e estocou sua espada em seu ventre. A
espada atravessou o homem, mas o cavaleiro não parou sua investida, ele
continuou empurrando o moribundo até derrubá-lo em cima dos três assassinos que
ainda tentavam enforcar o monge. O impacto do encontrão derrubou os quatro ao
chão junto com o cadáver do homem trespassado. Os dois que ficaram de pé
flanquearam o cavaleiro que estava desarmado, já que sua espada estava
fortemente cravada nas entranhas do outro homem. Os dois desferiram um golpe de
espada ao mesmo tempo, ambos na horizontal, Roderick abaixou-se e as lâminas
colidiram uma na outra, ainda abaixado ele aplicou um chute no joelho de um
deles, partindo-o e dobrando-o ao avesso, fazendo com que esse homem caÃsse ao
chão berrando de dor. O outro assassino tentou um novo golpe de espada, dessa
vez na vertical, em um movimento descendente, já que Roderick estava abaixado,
o cavaleiro rolou para o lado e o golpe acabou atingindo mortalmente o homem
que teve seu joelho partido. Roderick apoiou as costas no chão, levantou-se com
um salto e se colocou a postos em frente ao homem que tinha atingido seu colega
no chão. Os três adversários que tinham caÃdo do empurrão também se levantaram.
Nesse momento ainda tinham quatro assassinos em condições de combate e Roderick
estava desarmado.
Valentim viu tudo isso de longe, ele
até pensou em ajudar, mas não deu tempo, toda a situação estava resolvida antes
mesmo que ele pudesse chegar ao casebre. Todos os quatro estavam armados com
espadas e esperava-se que eles atacassem primeiro, mas Roderick foi quem tomou
a iniciativa. Ele pisou com força no assoalho do casebre, levantando assim seu
lado contrário que foi acertar as partes sensÃveis do assassino que ficou no
seu meio, esse perdeu a respiração, baixou o tronco para frente e colocou as
mãos na área atingida, não demorou muito para que Roderick lhe desse um chute
na cara, o golpe veio de baixo para cima e arrancou mais da metade dos seus
dentes. Os outros três começaram a golpear, um de cada vez, pois se atacassem
juntos poderiam chocar suas lâminas, mas seus golpes eram sempre esquivados
pelo cavaleiro. Um deles se adiantou e tentou dar um golpe de cima para baixo,
todavia levantou demais os braços, Roderick interceptou o ataque levantando as
mãos e segurando, juntamente ao assassino, no cabo da espada. Os dois ficaram
com os braços erguidos, trocando forças. O cavaleiro, se aproveitando que o
outro estava distraÃdo com a troca de força, deu uma cabeçada no nariz de seu
oponente, fazendo com que ele largasse a espada e Roderick tomou-a. O assassino
da esquerda deu um golpe na horizontal, tentando acertar o cavaleiro nas
costas, mas Roderick abaixou-se, o ataque acabou cortando a garganta do
assassino que tinha levado a cabeçada. O assassino ficou abalado
momentaneamente por ter atingido seu colega, Roderick aproveitou-se desse
instante e subiu dando um golpe de espada de baixo para cima, abrindo-o da
virilha até a omoplata. O último assassino de pé tentou acertar as costas de
Roderick, mas ele se virou rapidamente e se defendeu com a espada. Os dois
ficaram disputando forças nessa posição, até que Roderick largou a espada e
girou para o lado, o assassino, que estava fazendo força na direção do
cavaleiro, acabou tendo que dar um passo brusco e desequilibrado para frente.
Roderick terminou seu giro de frente para as costas do assassino, agarrou com
as duas mãos a cintura dele, tirou-o do solo e arremessou-o para trás, sem
largar sua cintura, acertando sua cabeça no chão. O impacto do golpe foi tão
forte que quebrou o assoalho e a cabeça do assassino entrou no piso da casa e
assim ele ficou, de pernas para o ar, cravado no chão.
A ação não durou dois minutos,
Valentim assistiu a tudo e mesmo depois de recapitular a cena ainda achava
difÃcil digerir a realidade da monstruosa habilidade do cavaleiro. Aquela foi a
maior prova de força que ele já vira em toda a vida, pois não foram combatentes
inferiores que Roderick havia derrotado, mas sim assassinos profissionais, conhecidos
no submundo por suas habilidades.
— Mas que espécie de demônio é você?
— indagou Valentim estupefato enquanto entrava no casebre. Roderick estava
tirando sua espada das entranhas do assassino.
— Deixe de tolice, não perca tempo
com perguntas supérfluas. Seu amigo precisa de ajuda — falou o cavaleiro
apontando para o monge que estava no chão tentando falar e se libertar. O
assassino que havia levado o chute na cara e perdido os dentes levantou-se e
correu para fora do casebre, mas como Valentim estava em seu caminho, acabou
tendo que socá-lo na cara para derrubá-lo e abrir passagem para a fuga.
Roderick viu aquilo de maneira impassÃvel, não fez a menor menção em seguir o
fugitivo. O bandoleiro estava no chão, cobrindo o nariz com a mão.
— Que droga! Acho que ele quebrou o
meu nariz — gritou Valentim.
— Não se preocupe, ele foi embora —
disse Roderick de maneira apaziguadora.
— É muito fácil falar isso sem o
nariz quebrado — disse furiosamente o bandoleiro enquanto se levantava.
— Não é minha culpa se você estava
distraÃdo — concluiu o cavaleiro.
— Você está enganado, rapaz, vocês
têm muito com o que se preocupar — disse uma voz enfraquecida, era o assassino
que foi atingido pela adaga na virilha, ele estava vivo, mas perdia muito
sangue, provavelmente uma veia tinha sido atingida.
— Então você está vivo? — disse o
cavaleiro. — O melhor para você é manter-se quieto, a hemorragia pode piorar se
você ficar falando.
— Eu não me preocuparia comigo se
fosse você — disse o assassino em tom de ameaça.
— Do que você está falando? —
perguntou Roderick. — Quem são vocês e porque nos atacaram?
— Agora que nos interrompeu, viramos
a sua doença mortal, iremos te perseguir até os confins do inferno, até que
chegue o momento em que você não respire mais. O Chagas conseguiu fugir, ele
dará a descrição de vocês dois para os outros integrantes do nosso grupo. Agora
vocês dois estão marcados como nossa prioridade número um.
— Ei, que história é essa de vocês
dois? — perguntou Valentim desesperado. — Eu não fiz nada, foi ele quem matou
todo mundo.
— Você foi testemunha e é aliado
dele, considere sua morte como certa.
— Espera um pouco, isso é injusto,
eu não tenho nada a ver com isso.
— Não precisa temer, Valentim —
disse Roderick —, isso são apenas falácias de um moribundo.
— Você não entende, não é falácia —
tentou explicar Valentim. — Esses homens fazem parte do maior grupo de
assassinos do mundo. Agora, por sua causa, eles me condenaram à morte.
— Eu te protegerei, não se preocupe,
agora vamos fechar o ferimento daquele homem ou ele morrerá feito um porco.
— Você diz o canalha que está nos
ameaçando? — Perguntou Valentim surpreso.
— Sim. Não temos motivos para
deixá-lo morrer, devemos entregá-lo às autoridades de seu reino. Podemos
interrogá-lo sobre esse tal grupo que ele pertence.
— Já disse para não se preocupar
comigo — disse o assassino —, eu já estou morto.
Depois de dizer isso, o assassino tirou a adaga
da virilha e cravou no próprio coração. Roderick assustou-se com aquela
atitude, mas assustado mesmo quem ficou foi Valentim, pois agora ele estava
marcado para morrer pelo mais perigoso grupo de assassinos do mundo. A partir
desse momento, nem que ele quisesse poderia largar o cavaleiro.