Adrian estava aterrorizado. Se ver os corpos pela primeira vez foi traumático para ele, agora, vendo-os serem exumados, fez com que ele ficasse catatônico. Foi Marcel quem o acordou com um tapa na nuca.
— Ó estafermo, se mova e me ajude — falou o cavaleiro enquanto estirava um pano no chão.
— Eu não consigo, Marcel. Sei que disse que ajudaria, mas eu não consi... — antes que pudesse terminar levou um soco no estômago.
— Isso aqui não é brincadeira, seu saco de lixo. Você disse que conseguiria e agora vai ter que ir até o final. Se você não conseguir, Leon vai morrer. Você é tão covarde a ponto de deixar morrer o homem que tem te criado? Pois é isso que vai acontecer se você não me ajudar a enrolar esses pedaços de carne.
— Eu vou vomitar.
— Pois vomite, não tem problema, o importante é que me ajude a desenterrar esses desgraçados e a enrolá-los nessas mortalhas. Os velhos já foram fazer a parte deles, não podemos falhar na nossa.
— Você fala como se fosse fácil.
— Eu sei que não é fácil, moleque. Eu também vomitei quando tive que mexer em cadáveres pela primeira vez. Passei um mês sem dormir quando vi uma criança morta pela primeira vez, mas pode ter certeza que o pior é ter que enterrar um amigo. Estamos sempre em guerra garoto, somos cavaleiros e, embora você não seja sagrado e provavelmente nunca seja, agora que entrou nesse mundo, você nunca mais vai sair. Eu já enterrei homens que eu respeitava e admirava, inclusive alguns que eu considerava como irmãos. Se você não conseguir levar esses homens agora, mais tarde vai ter que enterrar o Leon.
O garoto anuiu com a cabeça e começou a indigesta tarefa. Tinha que cavar cuidadosamente com as mãos para que os corpos não fossem destroçados. Teve de lutar muito para não desmaiar, principalmente depois que, sem querer, tirou algumas tripas do corpo do mais jovem. Vomitou muito e chegou a perder os sentidos por alguns instantes. Por um átimo de segundo sentiu inveja de Marcel, que fazia a mesma tarefa, mas não mostrava, nem de longe, sentir qualquer dificuldade em executá-la. Foi só depois de prestar bastante atenção que ele pôde reparar nos olhos do cavaleiro, eles estavam opacos e sem brilho, pareciam estar acostumados com a dor a tal ponto que já haviam esquecido que deveriam mostrar emoções nessa situação. O garoto rezou para que nunca chegasse a ponto de ter um olhar daqueles.
Demoraram cerca de trinta minutos para remover os três corpos e colocá-los nas mortalhas. Teriam feito em menos tempo, não fosse o alto grau de debilidade de Marcel somado à grande ojeriza de Adrian. O cavaleiro ainda ameaçou desmaiar, devido ao excesso, mas um trago em uma bebida velha que trazia afivelada na cintura fez com que ele recuperasse o ânimo. Foram o mais rápido possÃvel, pois sabiam que tinham pouco tempo.
***
O usurário cuspia sangue e até alguns dentes, mas não conseguia segurar o riso que tinha estampado nos lábios. Enquanto Ibraim, que tinha os punhos marcados pelo sangue do inimigo e podia fazer dele o que quisesse, estava aflito e seu rosto mostrava uma grande angústia.
— Você pode me bater o quanto quiser, seu velho desgraçado, mas nada mudará o fato de que você está perdido — disse Ismail, para depois cair na gargalhada.
— Cale a boca! — gritou Ibraim furioso, o outro o irritava tanto que não pôde conter mais um soco que desferiu na boca do usurário, mostrando mais força do que dava para imaginar que um homem na idade dele poderia ter.
— Não se exceda, Ibraim — disse Leon enquanto segurava o punho do prefeito para que ele não batesse mais no outro. — Nós precisamos dele vivo, ou então morreremos, você sabe disso.
— Pois eu não ligo, pelo menos vou levar esse desgraçado pro inferno junto com a gente.
— Mas eu ligo, não quero morrer ainda e não vou permitir que você continue a espancá-lo, ou poderá matá-lo.
— Ouça o cão catoniano, Ibraim — disse Ismail. — Ele sabe o que diz. Por muitos anos você tem lambido as bolas dos catonianos, não pare agora. Obedeça ao seu senhor.
— Ora, seu… — praguejou o prefeito, que, uma vez que estava com as mãos presas pelo Leon, passou a desferir pontapés em Ismail. Leon afastou o prefeito, mas antes deixou que ele acertasse alguns dos golpes, pois também tinha se irritado com a ofensa.
— Fique aà — disse Leon, enquanto jogava Ibraim em um sofá a alguns metros de Ismail. — Deixe que eu negocio com ele.
— Isso mesmo, seu cachorro velho, fique aà do lado enquanto os homens de verdade conversam — Ibraim fez menção de que responderia à ofensa, mas Leon fez um sinal indicando que não permitiria. O prefeito, contrariado, cruzou os braços e engoliu a pilhéria em seco e deixou Leon continuar com a conversa.
— Chega de irrisão — disse o cavaleiro —, Ismail, estamos aqui para negociar.
— Negociar, você diz, mas até agora só me trouxeram ofensas e violência. Mataram os meus seguranças e invadiram a minha casa. Que espécie de negociante estúpido é a de vocês dois?
— Estúpido é você, já apresentamos nossa proposta e você ainda não a entendeu. Já mostramos que não estamos para brincadeira, você deve nos obedecer, ou não terá um final diferente do que teve os seus guardas.
— E você acha mesmo que eu acreditaria nas suas falácias? Se pretendia mesmo, não devia ter dito que a vida de vocês dependia de mim, embora eu já soubesse, dizer assim em voz alta me dá o atestado de estupidez de vocês de mãos beijadas.
— Não se confie mui…
— Não é uma questão de confiança, cavaleiro, mas sim de lógica e eu sou muito bom com ela. Você errou miseravelmente quando deixou que o meu escravo moleque fugisse, deveria tê-lo matado, como fez aos meus guardas. Agora que ele está livre, trará toda a cidade armada para pegar vocês dois. A sua ridÃcula pena condenou a vocês dois. Ouçam os sons, já estão chegando — realmente já dava para ouvir um amontoado de gritos se aproximando, como se um pequeno exército se movesse na direção da casa do usurário.
— Meu Deus — exclamou Leon e empunhou sua espada.
— Ah! Ah! Ah! Não seja ridÃculo, cavaleiro. O que você poderia fazer contra uma cidade inteira apenas com uma espada? Acaso pensa que é um Roderick?
— Então você conhecia as capacidades de Roderick? — indagou Leon. — E mesmo sabendo que o prefeito o ajudou para evitar que ele causasse uma desgraça maior na cidade, você incitou o povo contra ele, não é verdade?
— Claro que eu conheço a fama dos Rodericks, não sou nenhum estúpido. Embora não apareça um há muitos anos, só cretinos não conhecem seu legado. Sim, eu sei que o prefeito salvou a cidade, mas eu estou cagando para isso. O que eu quero mesmo é tomar o cargo desse cretino e o Roderick foi muito gentil em me ajudar.
— Você é um lixo mesmo, mas, como você já sabe, precisamos de você para sairmos incólumes daqui.
— O que você realmente pretende, cavaleiro? Por que invadiu minha casa? O que você ganhou ao salvar o prefeito? O que vocês fazem em Viseu?
— Só estávamos de passagem, precisávamos do prefeito vivo para que ele nos levasse ao rei Aldenor, por isso salvamos ele da morte, mas não tÃnhamos ideia que a situação chegaria a tal ponto. Agora estamos sendo caçados e você é o único homem que ainda tem influência suficiente para nos proteger.
— E por que eu faria isso?
— Porque, se não, eu castro você e deixo você sangrando como um porco até a morte. Isso é o suficiente?
— Não, isso não é o suficiente. Eu quero o cargo para mim. Se o prefeito morrer, o cargo ficará vago, então haverá eleições e existem outros homens influentes na cidade, não quero correr o risco de perder. O prefeito pode passar o cargo para mim, então eu convencerei a população a mudar a pena de vocês para expulsão, ao invés da pena capital que incorre sob suas cabeças. Eu tenho muito dinheiro e muitos infiltrados, facilmente poderei influenciar a população a amenizar sua fúria.
— Nunca — disse Ibraim —, um rato como você não mere…
— Fechado — disse Leon, cortando a fala do outro.
— Eu não concordei com isso.
— Claro que concorda, ou então será você a morrer castrado como um porco. Juro por todos os deuses, se você não passar seu cargo a esse homem, eu mato você, Ibraim. Eu estou nessa enrascada por sua culpa, se eu não tivesse te salvado demoraria, mas eu conseguiria chegar incólume ao rei Aldenor. Pense o seguinte, tudo o que você tem agora é um bônus, sua vida teria acabado naquele cadafalso, só está vivo por minha causa, então você me deve isso. Esqueça o cargo, você já trabalha nele há muito tempo, chegou a hora de você pegar sua riqueza e se aposentar.
O velho hesitou, mas por fim disse:
— Tudo bem — cedeu ele após alguns segundos em silêncio.
— Vejam, a cidade inteira já está do lado de fora da minha casa, eu vou lá fora apaziguar os ânimos a ponto de eles não os matarem assim que os virem. Assim que vocês saÃrem, o prefeito poderá falar ao povo que passa seu cargo para mim.
***
Viseu era uma cidade pequena, um legÃtimo vilarejo, mas tinha um grande número de habitantes, cerca de cinco mil pessoas cercavam a casa de Ismail. O usurário apareceu diante desse público e começou a discursar com o auxÃlio de um cone, que ele, por ser homem público, normalmente utilizava para se comunicar nas reuniões da prefeitura. Seu discurso falava sobre o perdão, que todos os homens o mereciam, até mesmo Ibraim. Inicialmente as pessoas vaiaram esse seu discurso, mas depois que vários aliados dele começaram a gritar em apoio e promessas de dinheiro foram feitas, algo mudou, o público foi tornando-se cada vez mais receptivo. No fim, grande parte da animosidade contra o prefeito havia desaparecido, até mesmo por aqueles que foram feridos pelos cavaleiros. É estranho, eu sei, mas ainda há de nascer o homem que vai entender porque multidões são tão suscetÃveis de logro.
Ibraim e Leon apareceram diante da multidão, foram vaiados e tomates podres foram atirados em seus corpos, o que provava que Ismail tinha sido bem-sucedido em amenizar a fúria da população, ou então eles seriam recebidos com tochas e forcados. Foi difÃcil fazer com que a população fizesse silêncio para que o prefeito pudesse falar, mas novas promessas monetárias e insistência por parte de Ismail fizeram com que a turba se aquietasse.
— Senhoras e senhores, obrigado pela paciência — disse o usurário. — Esse é um homem arrependido, que ajudou um libidinoso e deixou que soldados de Viseu fossem feridos por estrangeiros, mas está arrependido e merece nosso perdão por tudo o que já fez por nós no passado. No entanto, ele não pode mais ser nosso prefeito depois de toda essa inépcia, por isso vai falar algumas palavras para todos agora.
— Querido e amado povo de Viseu — disse o prefeito. — Fico feliz que finalmente me ouçam, depois de toda a confusão me fez estar pendurado na forca. Durante mais de cinquenta anos fui prefeito dessa cidade, mas lembro como se fosse hoje o dia em que fui eleito. Eu era um homem jovem, praticamente um garoto. Muitos achavam que eu não conseguiria, que a cidade afundaria na minha gestão, mas isso não aconteceu, prosperamos. A maioria aqui pode até não saber, mas Viseu era uma pocilga, não tÃnhamos mil habitantes e todos eles viviam na miséria, éramos extorquidos por Catônia e também por nosso próprio rei, o finado Altamir. Eu batalhei junto com vocês e hoje nós temos uma bela cidade, sem violência e que prospera a passos largos. Essa jornada não foi fácil e eu perdi muitas coisas no meio do caminho. Quando Viseu foi acometida pela Peste Virulenta, todos queria fugir da cidade, mas eu permaneci. Consegui ajuda das melhores curandeiras do mundo e elas, com suas ervas misteriosas, conseguiram curar essa cidade que eu tanto amo, mas minha mulher não resistiu, morreu da doença que não teria contraÃdo se eu tivesse fugido para longe. Eu não me arrependo de ter ficado, pois minha mulher também amava Viseu e foi a maior guerreira que já tombou em defesa dessa cidade.
— Isso é muito bonito, Ibraim, — disse Ismail — mas não seria melhor dizer logo o que você tem para dizer, sem rodeios?
— Estou dizendo tudo que tenho para dizer, cada palavra aqui importa para que meu povo entenda o grande amor que sinto por eles. Muitos aqui devem lembrar que não foram só as doenças que enfrentamos nesses cinquenta anos, mas também uma guerra por direitos econômicos. Estamos localizados em um ponto crucial para o comércio não usual de Catônia até Quendor. Nós somos o ponto de ligação dessas duas grandes potências. Impostos abusivos, roubos e violências eram o que sofrÃamos diariamente, mas lutamos, pegamos em armas e garantimos o nosso direito de comércio não usual respeitado. Temos acordo com os homens de negócios escusos de Catônia e com os do nosso reino, para que sejamos respeitados, pois assim o comércio não usual pode existir sem grande alarde. Meus dois filhos morreram nessa batalha e hoje jazem sob sete palmos dessa terra que tanto amaram. Dito isso, muito me entristece que vocês, o povo que amo e que deveria saber que são tudo que tenho na vida, achem que eu defenderia um libidinoso, que assediou a mulher de muitos homens decentes, sem um motivo justo.
— O que você está dizendo, Ibraim? — perguntou furiosamente o usurário. — Não foi isso que você disse que falaria a esse povo honrado. Me disse que pediria perdão e entregaria seu cargo a um homem decente.
— É o que você deseja, não é, Ismail? Que eu, o homem que sempre protegeu seus devedores, que nunca permitiu que você os espancasse, desistisse do meu cargo. Afirmo perante todos que desistirei do meu cargo se, depois das revelações que tenho a fazer, for do desejo do povo.
— Chega das calúnias desse canalha, povo de Viseu, levemos esse crápula de volta à forca — disse Ismail, tentando calar Ibraim, mas já era tarde. O povo se comoveu com o discurso cheio de emoção do prefeito e queria ouvi-lo até o final, alguns poucos amigos do usurário fizeram menção de atacar Ibraim, mas apenas a presença de Leon, que claramente protegeria o velho, foi suficiente para fazê-los desistir.
— É muito engraçado que esse usurário, que eu sempre permiti que trabalhasse na cidade, que sempre foi respeitado por mim, venha nos falar sobre calúnia e canalhice, quando ele é o verdadeiro mentiroso e cafajeste. Sei que, pelo menos, metade dos que estão aqui devem dinheiro a este homem. Vocês sabem, ou deveriam saber, que aqueles que não pagam em dia, os juros absurdos que esse porco lhes cobra, seria espancado por essa vÃbora, não fosse por mim, que não permito balbúrdia aqui em Viseu. Quantas vezes eu não proibi esse homem de tomar todos os pertences de seus devedores? Que lhes espancassem em praça pública? Daqui mesmo eu consigo ver alguns rostos que teriam tido essa desgraça, não fosse por minha proibição. Não precisam virar o rosto envergonhados, não digo isso para me vangloriar, nem para dizer que me devam alguma coisa, mas para mostrar os motivos que fizeram com que este canalha quisesse se vingar de mim e do bom povo desta cidade.
— Tolice, esse homem é um mentiroso, calem a sua boca — vociferou Ismail, mas acabou tendo seu cone tomado por Leon.
— Vocês veem que ele quer me calar? Isso é porque ele quer fazê-los de trouxa. Ele tem tramado contra mim e contra esta cidade há anos. Uma vez que ele não podia usar de violência, para punir seus devedores e orquestrar seus planos contra mim, ele se utilizou de um artifÃcio torpe. Contratou aquele garoto, Alexey, para seduzir a mulher de todos os homens que lhe devessem dinheiro. Não adianta negar, eu sei de tudo, o próprio Alexey me revelou a verdade. Meu povo, Alexey desistiu de trabalhar para este canalha quando ele fez uma coisa abominável. Como vocês devem saber, as três senhoras da famÃlia Rocha foram seduzidas por Alexey, quando os Rochas levaram o sedutor para fora da cidade, para vingar-se da ofensa, foram emboscados por Ismail, que os matou. Sim, senhores, os Rochas estão mortos e foi o maldito usurário que os matou. Você pode negar o quanto quiser, mas eu tenho uma testemunha: o próprio Alexey. Ele se entregou à guarda. Vejam, ali vêm os guardas trazendo o jovem Alexey acorrentado. Tragam-no para cá, para que ele possa falar ao povo.
O chefe da guarda e oito soldados traziam Alexey acorrentado. Esses guardas prenderam Ismail. Muitos protestavam, principalmente os aliados do usurário, gritando calúnia. Depois de muito pedido do prefeito, a população fez silêncio, para que Alexey pudesse dar seu depoimento.
— Estou muito envergonhado de ter trabalhado para esse homem. Eu devia dinheiro a ele e o maldito me ameaçou de morte, caso eu não o obedecesse. Ele me obrigou a seduzir as mulheres dessa cidade para se vingar daqueles que o deviam. No começo, eu fiz tudo de bom grado, mas ele queria mais do que tornar seus devedores cornos. Os Rochas lhe deviam muito dinheiro e espalhavam aos sete ventos que não lhe pagariam nada. O usurário me fez seduzir as três mulheres dos Rochas, para que eles ficassem furiosos e me levassem para fora da cidade, lá Ismail poderia fazer o que quisesse com eles. Os Rochas caÃram na emboscada, mas eu achava que ele apenas daria uma sova neles. Eu estava errado, o desgraçado os matou e disse que os enterraria em seu quintal, para que ele pudesse mijar sobre seus corpos todos os dias. Eu fiquei muito assustado e disse que não trabalharia mais para ele. O desgraçado ficou com medo de que eu abrisse a boca, então mandou me matar também. Seus homens me espancaram e teriam me matado se um cavaleiro de Catônia, acompanhado por Valentim, que muitos aqui devem conhecer como o lÃder dos bandoleiros de Catônia, não tivessem me salvado. Eles mataram os capangas de Ismail, eu contei toda a história para eles, mas acabei desmaiando depois disso. Como vocês sabem, o cavaleiro me levou ao hospital e acabou discutindo com os guardas. Enquanto isso, Valentim foi contar tudo ao prefeito, que queria investigar antes de mandar prender Ismail. Ele não me defendeu porque gosta de mim, mas sim porque eu poderia provar que Ismail era um assassino. Ele defendeu o cavaleiro porque tudo foi um mal entendido.
— Isso tudo é mentira — gritava enlouquecidamente Ismail. — Isso é mentira, porque vocês estão me prendendo?
A multidão se dividia, alguns acreditavam na história, mas muitos achavam-na muito fabulosa. Os guardas que prenderam Ismail eram todos homens que foram traÃdos e, tomados pela fúria que só um corno pode entender, acreditaram em qualquer coisa que eles pudessem culpar pela traição de suas mulheres. Eles podiam culpar suas grosserias, seus maus modos, suas faltas de virilidade, suas ausências, mas era mais fácil culpar o homem a quem eles deviam dinheiro, por isso foi fácil convencê-los dessa história. Os aliados do usurário começaram a incitar o povo contra aquela história que eles chamavam de armação.
— Vejam no quintal, vejam no quintal — não parava de repetir Alexey. Foi só depois que o próprio Ismail disse que não havia problema, que podiam revistar seu quintal, pois não tinha nenhum cadáver por lá. Ele estava errado, havia três corpos em seu quintal, embora estivessem bem estraçalhados, ainda dava para reconhecer que eram os Rochas. O usurário quase teve um infarto, primeiro do susto, depois foi da sova que tomou, uma vez que toda a cidade passou a acreditar em Ibraim e o espancamento do cafajeste começou. Até os aliados de Ismail ficaram furiosos e o agrediram, por muito pouco ele não morreu ali mesmo. Foi só quando o prefeito implorou para que a população parasse para ouvi-lo que o usurário teve uma trégua.
— Querido povo de Viseu. Embora esse canalha tenha posto vocês contra mim e também tenha mandado seduzir a mulher de muitos, ele me mostrou clemência, farei o mesmo. Vocês decidirão se ele vai ficar vivo, ou se ele vai morrer junto com todas as dÃvidas que as pessoas têm com ele.
Quase não deu tempo do prefeito terminar de falar, o povo já havia amarrado uma corda em uma casa e o usurário foi enforcado ali mesmo. Ibraim proclamou que a casa do usurário poderia ser saqueada como modo de compensação aos homens traÃdos. Seu cargo como prefeito estava garantido por muito tempo.