Uma claridão sufocante lhe enchia os pulmões, era evidente
que ele não conseguiria chegar a tempo. Corria, mas seu corpo estava pesado e
logo a mulher iria alcançá-lo. Isso não poderia acontecer, seu amigo precisava
dele. Ele usou todas as suas forças e saltou. Uma, duas, três vezes. Seria
fácil usar o tigre, no entanto, refazer a amizade já não era mais uma opção,
então ele prosseguiu. Sua mãe fumava um cigarro enquanto ria e mostrava seus
dentes apodrecidos. O medo só crescia e a angústia fazia-o acreditar que o fim
seria o mesmo de sempre, a corrida não adiantava mais. Escorregou, cairia com a
nuca no pedregulho. Acordou assustado, Leon estava do seu lado.
— Finalmente — disse o velho
cavaleiro. Ele aparentava estar um pouco constrangido, mas estava sentado ao
lado da cama. — Cheguei a pensar que
você não acordaria mais.
— Seria um sonho virando realidade,
não é, velhote? — gracejou Marcel com dificuldade, sua mandÃbula doÃa muito. A
iluminação era forte na sala, os raios de sol entravam pela janela e batiam bem
na cara do cavaleiro. Ele estava confuso. — Que porra de lugar é esse? Onde eu
estou?
— É, desgraçado, parece que não
chegou a sua hora ainda — disse o velho com um sorriso no rosto. — Aqui é o
hospital de Viseu. Hoje faz seis dias que você está apagado.
— Seis dias? — disse o cavaleiro
arregalando os olhos. Olhou bem para si e lembrou-se da luta — Puta que me
pariu, isso sim é que foi ficar arrebentado.
— Sim. Os médicos não entenderam
como você sobreviveu.
— E o moleque? — quis saber Marcel.
Não admitiria nunca, mas estava preocupado. O garoto poderia ter morrido.
— O Adrian? Ele está bem, foi
atendido e no outro dia já estava de pé. Os ferimentos dele foram bem mais
brandos que os seus.
— É, aquele merdinha está começando
a virar um homem — falou Marcel sem conseguir esconder uma pontada de orgulho
que aquilo causava nele.
— Sim, ele me contou tudo o que
aconteceu. Vocês dois são os desgraçados mais doidos que eu já ouvi falar.
— Isso foi o mais perto de um elogio
que você já me deu. Agora que porra você está fazendo aqui? Não é do seu feitio
ficar de babá em leito de macho.
— Sei que nós temos nossas
diferenças e que, provavelmente, você me odeia, mas é chegado o tempo de você
saber a verdade — o chefe da cavalaria falou aquilo pausada e comedidamente,
parecia escolher as palavras com dificuldade. — Adrian já foi na frente, ele
precisava ir logo reencontrar o seu pai para que tudo desse certo.
— De que merda você está falando? —
disse o cavaleiro, estranhando aquela situação.
— Eu menti, Marcel. Não viemos aqui
para ir atrás do Roderick coisa nenhuma, minha missão é outra — aquilo pegou
Marcel desprevenido. Um silêncio constrangedor invadiu o quarto para logo ser
quebrado por ele.
— Você, mentindo para mim? Não me
estranha, mas o que o seu queridinho rei vai fazer com você depois que ele
souber que você tirou as bolas dele da boca?
— Aquele filho de uma meretriz não é
meu rei e eu não preciso mais fingir que ele o é — disse o velho para o espanto
de Marcel. — É chegado o momento de eu me vingar pela morte do meu filho.
— Você não tem direito de dizer isso
— falou Marcel se irritando. — É tarde demais para se rebelar agora. Você teve
a oportunidade vinte anos atrás. Foi sua inércia que causou a morte dele.
— Sei que você pensa assim e nunca
fiz questão de te convencer do contrário, mas o tempo agora é outro. Você se
engana, não é tarde demais para uma rebelião, muito pelo contrário, esse é o
momento que aguardei por esses longos vinte anos de servidão àquele porco
imundo.
— Você tem ideia do que está
falando? — indagou Marcel ainda incrédulo com aquelas palavras saindo da boca
do homem que ele julgava ser o capacho de Diógenes.
— Há muitas coisas que você não
sabe. Esse momento tem sido planejado meticulosamente há muitos anos, eu não
podia dizer-lhe nada. No entanto, agora é o momento, Marcel, podemos derrubar o
Diógenes e vingar o Laerte.
— Não ouse, seu filho da puta! —
gritou Marcel e sentiu todo o seu corpo se contorcer de dor, mas o ódio era
mais forte e fez com que ele ainda pudesse dizer. — Ele morreu por sua culpa,
seu covarde, não adianta vir agora com meia dúzia de bravatas e pensar que vai
me convencer do contrário.
— Você não deve se exaltar desse
jeito — disse o chefe da cavalaria enquanto se levantava e tirava um caderno de
dentro de um bolso em sua camisa. — Eu sabia que você agiria assim. Por muitos
anos eu menti, Marcel, por isso eu sei que é difÃcil acreditar em mim, mas
imagino que você acredite no Laerte. Imagino que você não saiba, mas eu tenho o
diário de cavalaria que ele escrevia. Eu deixarei ele com você e vou embora,
preciso ajudar o Adrian. O que vocês dois fizeram foi incrÃvel, resgataram a
armadura do Roderick e ainda recuperaram a espada do meu filho. Eu não
pretendia fazer você se juntar a tudo isso, mas o desgraçado do Diógenes acabou
metendo você nessa quando ordenou a sua morte. Eu não acreditava que você ainda
pudesse lutar por algo que não fosse por você mesmo, no entanto, depois do que
vocês fizeram com Gegard, fiquei convencido de que você será fundamental para
que tudo termine como planejamos. Sei que ainda não acredita em mim, mas acho
que depois dessa leitura você acreditará. Ela pode ser um pouco dolorosa para
você, mas, no fim, é só a verdade que importa. Você já fez demais, é verdade,
mas, depois que você ler esse diário, terá duas opções. A primeira é pegar sua
viola e fugir, encontrar algum lugar quieto, calmo e curtir uma aposentadoria
merecida. Eu deixarei dinheiro suficiente para que isso possa se concretizar. A
segunda é seguir até a capital de Quendor, aliar-se a mim e aos outros
conspiradores, e enfrentar uma luta ainda maior do que a que te deixou assim.
Não julgarei, independente da escolha que você fizer, mas tenho a impressão que
você virá em nosso encalço.
— Besteira — disse Marcel cuspindo
nos pés de Leon. — Eu não te ajudarei mais em porra nenhuma. Quero mais é que
você se foda. Assim que eu sair daqui vou embora e você nunca mais vai saber de
mim, mas pode ficar com a porcaria do seu dinheiro, se possÃvel, enfie-o no
rabo.
— Você é um filho da puta atrevido
que merece levar uma coça — disse Leon, finalmente perdendo a paciência. Ele
queria a ajuda de Marcel, mas seu temperamento o impedia de ser empático por
muito tempo — Se quiser ficar aà se remoendo pelo passado, faça isso, seu lixo.
Eu vou lutar. Falar com gentileza com gente da sua laia, só dá nisso. Sabe o
que vai acontecer? Eu vou sair por aquela porta agora e jogar a porra do diário
o mais longe de você, para que você tenha que rastejar para lê-lo. Você vai
demorar algumas horas, ou até dias, mas chegará o momento em que a curiosidade
vai te consumir e você vai lê-lo. Quando descobrir que você foi um imbecil, vai
viajar até Quendor com o rabo entre as pernas e vai se unir a mim.
— Nem morto — falou o cavaleiro com
segurança.
— Você já está morto, garoto,
apodrecido por dentro. O que eu estou fazendo é te dar uma chance de se redimir
e voltar a viver.
— Vai se foder — disse Marcel uma
vez mais.
— Vai você, seu merdinha — disse
Leon arremessando o diário no canto oposto de onde outro estava deitado e
saindo furioso da sala.
Marcel teve Ãmpeto de estrangular o
velho cavaleiro, não fosse por seus machucados, era certo que eles entrariam em
confronto fÃsico, mas, no momento, levantar-se era impossÃvel. Aquele breve
diálogo havia consumido muito de sua energia, tanto fÃsica como mentalmente.
Seu corpo ainda estava em frangalhos, suas costelas estavam quebradas, sua
mandÃbula estava trincada, seu braço esquerdo estava muito machucado e seu
pulso latejava indicando que fora arrebentado. O que mais lhe impossibilitava
de levantar-se eram os músculos, pois estavam bem machucados pelas pancadas.
Provavelmente demoraria semanas para que pudesse sair do hospital. As dores
fÃsicas o incomodavam, mas era na sua mente que acontecia o verdadeiro
martÃrio.
Por anos Marcel viu Leon servindo de
lambe-bolas de Diógenes, era evidente para ele que o chefe da cavalaria se
importava mais com seu cargo do que com qualquer outra coisa. Seu próprio filho
foi assassinado por culpa daquele homem e ele ainda servia-o. Se ele tivesse
ajudado no passado é bem provável que todos tivessem morrido, mas haveria
dignidade naquilo. São vinte longos anos, durante esse tempo passou por muitas
vezes na cabeça de Marcel que o velho cavaleiro o chamaria para vingar Laerte,
mas isso nunca aconteceu. Muito pelo contrário, o nome do amigo nunca mais era
proferido pela boca do velhote e apenas falar sobre o ocorrido com ele era
motivo para retaliações. Agora ele vinha com a porcaria de um caderninho e
queria ser seguido como um salvador? Ele que fosse para o inferno. Aquele
covarde não merecia ser perdoado.
Um maldito diário. O que poderia
estar escrito ali para dirimir a culpa de Leon? Nada. Aquilo não passava de um
embuste do velho imundo. O que ele esperava ganhar com aquilo? Perdão?
Manipulação barata. Nada que estivesse escrito ali poderia mudar sentimentos há
muito enraizados. Nada. Provavelmente era falso. É bem verdade que ele já tinha
visto Laerte escrever antes, mas não tinha certeza se era naquele diário. Sim,
é certo que, à distância, o diário parecia bem envelhecido, poderia realmente
se passar como algo com mais de vinte anos. O melhor seria atear fogo naquilo.
Se ele pudesse levantar-se, jogaria-o fora. O velho não tinha o direito de
deixar aquilo ali, ele não merecia o benefÃcio da dúvida. Por óbvio, aquilo tinha
que ser falso. Então, por que diabos ele deixou essa porcaria ali? Seria um
último escárnio. Velho maldito.
Ficou horas naquele embate, não
podia fazer nada, apenas esperar o tempo passar. Um enfermeiro apareceu. Marcel
ordenou-lhe que jogasse o diário fora. O homem desculpou-se, falou que não
poderia, pois foi-lhe ordenado por Leon que, especificamente, não tocasse no
diário, não importasse o quanto ele pedisse. Marcel ofendeu-o com todo o seu
vocabulário, que não é nada pequeno, de ofensas. O homem já era acostumado a
atender pacientes daquela espécie, apenas terminou seu atendimento e foi
embora, deixando-o sozinho, novamente, com o diário.
Os dias se passavam e aquele diário
o estava deixando louco. Seu brio lhe impedia de ir atrás dele, mas sua curiosidade
o consumia. O que poderia ter escrito ali? Era um monte de bobagens, ele sabia.
Só poderia ser um monte de bobagens. Talvez fosse importante ler, não para
perdoá-lo, isso era impossÃvel, mas para poder esfregar aquelas mentiras na
cara dele no futuro. O mais provável é que ele nunca mais o veria, mas nunca se
sabe. Estava decidido, leria o diário, apenas por curiosidade banal. Afinal, o
tempo passava devagar e não havia mais nada para fazer naquele quarto. Era
isso, estava decidido. O enfermeiro apareceu e Marcel solicitou que o homem
entregasse-lhe o diário, mas ele se negou. Leon não havia sido claro, pediu
apenas que o enfermeiro não tocasse no diário se Marcel mandasse. O cavaleiro
garantiu que não o destruiria, mas o homem foi irredutÃvel, tinha medo do que
Leon poderia fazer se soubesse que foi contrariado. Uma nova torrente de
ofensas e ameaças foi desferida, mas o homem respondeu apenas deixando o
cavaleiro só com o livro fora de seu alcance.
Velho maldito, era evidente que
aquilo era um escárnio. Ele se vingava por todas as discussões que eles já
tiveram com aquela pilhéria. Paro inferno! Tudo bem, ele não leria aquela
porcaria. Ele não queria ler desde o inÃcio mesmo. Bastava deixar aquilo de
lado e pensar em outras coisas. Parecia fácil pensar, mas os dias de um homem
convalescendo eram tediosos por natureza e no quarto só tinha o maldito diário.
Então o desgraçado queria brincar com ele? Queria fazer ele de palhaço. É bem
provável que Leon não quisesse que ele lesse o diário desde o inÃcio, por isso
jogou longe e mandou o enfermeiro não tocar. Pois ele iria ler, não importava
mais o quanto custasse.
A cama era baixa, é verdade, mas mover as pernas
estava muito difÃcil. Se ao menos tivesse uma muleta. Poderia pedir ao
enfermeiro, mas não queria se humilhar mais uma vez àquele filho de uma
meretriz. Então ele se jogou no chão. A dor foi lancinante, pareceu que
enfiaram-lhe agulhas no corpo, mas ele não gritou. Tinha medo que o enfermeiro
aparecesse e o impedisse de pegar o diário. Arrastou-se usando apenas o braço
direito, pois o outro estava ainda mais inutilizado que suas pernas. O quarto
não era muito longo, mas, ainda assim, pareceu-lhe uma tarefa hercúlea. Chegou
até o diário, pegou-o, sentou-se apoiando as costas na parede, colocou-o por cima
de suas pernas e ficou fitando-o. Ainda passou pela sua cabeça que o melhor
seria destruir aquilo, mas entendeu que, naquele momento, era impossÃvel. Não
adiantava querer enganar-se, precisava lê-lo. Ansiava por isso, desejava isso.
Velho filho de uma cadela! Finalmente conseguiu. Abriu o diário e começou a
ler.