Os animais são sempre criaturas muito espertas. Bem, não sempre, já houve casos de estupidez no reino animal, mas, em geral, os bichos são muito espertos. Alguns estudiosos chamam a habilidade de prever perigo como instinto. Eu não! A isso chamo esperteza. As aves sabem que, estando a centenas de metros de altura, praticamente nenhuma criatura pode ser sua predadora, apenas aves maiores. O mundo animal deu o supremo refúgio aos pássaros, o céu. Isso, no entanto, foi descartado pelo grupo de aves no reino dos demônios. Elas sobrevoavam o local onde antes havia as barreiras de luzes, queriam saber o que tinha lá dentro. Muitas aves estavam lá, das mais diferentes espécies e dos mais diferentes tamanhos. Algumas pequenas como um rato, outras grandes como um touro, o que parecia uma grande ofensa às leis da física, porém era indiscutível, elas existiam e voavam. Elas assistiam a tudo impassivelmente, porém, algo fez isso mudar. Gritos, choros e esperneios ecoavam em todo o céu, criaturas de vozes abissais urravam de dor e pavor. Os pássaros, mesmo à distância, temeram ser os próximos daquele flagelo e fugiram. Alfinal, qualquer coisa que faz seres emitirem aqueles sons de desespero, possivelmente não parariam apenas por altura, as aves pensaram. A isso não posso chamar instinto, mas pura sapiência.
O terreno era ermo e acidentado, nele não havia muitas árvores, apenas algumas poucas ressequidas e retorcidas, rochedos eram escassos, poderia dizer que ele era constituído de uma planície bem horizontal. Uma pessoa poderia ver a paisagem ao seu redor por vários pés de distância, de todos os lados do ponto cardeal. Estivesse uma pessoa no centro onde antes havia os paredões de luz, ela veria uma cena, no mínimo, inusitada. Por todos os lados havia pedaços de criaturas, pernas, braços, asas e cabeças. Cavaleiros e algumas cavaleiras percorriam o campo com sorrisos de ponta a ponta da orelha. Eles legitimamente divertiam-se. Estiveram por muito tempo parados, era o momento deles se exercitarem. Sentiam-se em uma caçada, mas estavam muito mais felizes caçando demônios do que cervos. Rodericks não gostavam de injustiças, para eles, caçar criaturas indefesas era tedioso e medíocre, principalmente se fossem criaturas dóceis. Leões, tigres, ursos e toda a sorte de animais perigosos eram para eles mais divertidos, desde que eles dessem chance para esses animais revidarem, para tanto, desarmavam-se quando os caçavam. Agora, que eles caçavam criaturas odiosas e perigosas, que fizeram toda a sorte de covardias, e todos eles, sem exceção, odiavam covardia, estavam felizes como nunca se viu. Era catártico poder servir de martelo da justiça. Aquelas criaturas mereciam pagar por suas atrocidades e os Roderiks estavam satisfeitos por serem eles os carrascos.
Todos os demônios foram destruídos, à exceção de Apollion, que era aliado deles, e Magog, que implorava do jeito mais deplorável e vergonhoso possível. Isso frustrou os Rodericks. Eles queriam enfrentar o grande chefe daqueles monstros, o mais poderoso dos demônios, uma criatura cruel, poderosa e imponente, mas, ao invés disso, receberam uma criatura medíocre que lhes lambia as botas clamando por piedade. Augusto teve nojo daquele ser. Tinha ojeriza de todo o mal que foi feito por aquele monstro, mas não conseguia matar alguém que clamava por sua vida de forma tão medíocre, por isso resolveu poupá-lo. O cavaleiro forçou o demônio a prometer que nunca mais faria pactos, a não ir atrás de vingança contra eles e também pediu que ele os enviasse para a floresta mística onde as mulheres do rei estavam presas com a bruxa.
Valentim, Apollion e Paulo assistiram a tudo isso de maneiras distintas. O bandoleiro estava ansioso para que tudo aquilo acabasse, o monge regozijava-se com o extermínio e queria que ele tivesse demorado mais, já Apollion via tudo com medo. Quando a querela terminou, três luzes brilhantes em forma de círculo aproximaram-se de Paulo.
— É o fim para vocês, amigos — disse Paulo olhando para as luzes. — A vingança está completa e vocês estão livres, não há mais nada para ver aqui. Parece que não será hoje que vou acompanhá-los.
As luzes ainda deram um último círculo ao seu redor antes de irem ao infinito. Os espíritos estavam em paz. Paulo olhava para o infinito e Valentim o observava. O bandoleiro não podia deixar de notar a cara de imbecil que o monge tinha, por isso não conseguia acreditar que tinha sido logrado por ele.
— Está feliz que o seu planinho deu certo, desgraçado? — inquiriu Valentim.
— Ah, meu amigo Valentim, atribuir-me alegria não é o suficiente. Melhor seria me dizer que estou realizado.
— Amigo uma porra. Eu não sou seu amigo.
— Seus atos dizem o contrário — disse Paulo com seu sorriso lunático de sempre.
— Como meus atos dizem o contrário? — indagou Valentim aos berros enquanto ia de encontro com o monge, Apollion interpôs-se entre eles.
— Calma, Valentim — implorou o pequeno demônio.
— Você estava brincando conosco desde o início — falou Valentim com o dedo em riste. — Com você também, Apollion. Você não deveria defendê-lo. Lembre-se que ele arquitetou para encerrar o contrato com você e ainda te enganou fazendo de você um general dos demônios, para logo depois fazer a loucura toda que levou seus amigos à extinção.
— Eu não estou feliz como as coisas aconteceram, Valentim — disse Apollion. — Mas não me sentiria melhor se você o agredisse.
— Você quer me agredir, Valentim? Cuidado eu gosto um pouco, depois fica difícil se livrar de mim.
— Sempre com suas pilhérias, não é? É isso que nós somos para você? Uma piada? — esbravejou Valentim.
— Sim, devo admitir que me é difícil falar sem o artifício da troça, mas que fique claro que isso não quer dizer nada em relação aos sentimentos que tenho por vocês.
— Que sentimentos? — quis saber Apollion já sendo seduzido pelo monge.
— De verdadeira amizade.
— Tolice. Não se iluda, Apollion, ele falaria qualquer coisa para nos enganar.
— De maneira nenhuma. Eu nunca falei tão sério na minha vida. Vocês três, são meus amigos.
— Obrigado, Paulo — disse Apollion alegremente.
— Muito me espanta a sua inocência, Apollion. Esse cara fez tudo isso por veleidade, nos enganou e agora vem com essa história de amizade.
— Você estava aqui, Valentim, sabe muito bem que não fiz isso por veleidade. Meus amigos foram mortos pelas ambições de Ifnir. As almas deles estavam condenadas à torturas infindas nas mãos dos demônios. Escondi muitas coisas, mas a verdade é que não menti para vocês, fiz de tudo para que vocês também tivessem direito aos desejos.
— Mas, no fim, meu desejo serviu apenas para tirar-nos dessa enrascada. Creio que desde o início você havia planejado isso.
— Não, não, não! Não me atribua tanta inteligência assim. Meu plano era me vingar dos monges e salvar meus amigos. Eu já estava preparado para receber a vingança dos demônios, nunca imaginei que você gastaria seu pedido para nos salvar, e é exatamente por isso que sei que você é um amigo.
— Não fiz isso por você.
— Você é um bandoleiro, deveria ser ambicioso e egoísta, mas gastou um desejo ilimitado só para nos salvar. Sei que você se juntou ao Roderick por conveniência, não eram amigos, mas, diante de uma provação, você mostrou seu caráter. Você é um grande homem, Valentim, eu te considero um amigo, mesmo que a recíproca não seja verdadeira.
— Guarde sua fala mansa para quem acredita nela — disse Valentim para manter a pose, mas já pendendo a perdoar o monge.
— Eu não tenho mais nada, Valentim. Todos os monges foram mortos, meus amigos também. Agora eu só tenho vocês três. Saibam que são meus amigos e que eu faço tudo para proteger meus amigos.
— Isso ninguém pode negar — disse Apollion abraçando o monge.
— Não é hora para essas pieguices — disse Valentim — Precisamos ir embora daqui, esse reino me dá nojo. Vejam, os Rodericks estão voltando para dentro de Augusto.
Os espíritos dos Rodericks não foram para o além vida, pois estavam presos à promessa de proteção à Catônia, mesmo após a morte permaneciam vivos dentro do último Roderick. Augusto estava parado, de cabeça baixa, em sua frente estava Aurélio, seu pai. Os outros Rodericks mesclavam-se ao corpo de Augusto, logo só restou eles dois.
— Venham, vamos esperar perto do portal aberto por Magog — sugeriu Paulo.
— Espere — disse Valentim com curiosidade. — É impressão minha ou o Augusto está chorando?
— É impressão sua — disse o monge catando o bandoleiro pelo braço e o pequeno demônio também. — Vamos, ele nos alcançará.
— Mas, mas.. — disse Valentim querendo voltar-se. — Se ele precisar de ajuda?
— Os demônios estão mortos e, mesmo que estivessem vivos, duvido muito que nós três pudéssemos ajudar. Deixe-o conversar com o pai a sós. Falar com o pai morto é uma oportunidade única e nós só atrapalharíamos — Valentim concordou com a cabeça, mas estava surpreso em ver tanta empatia e razoabilidade vinda do monge.
Todo o cenário que antes era de guerra, estava agora em paz, um silêncio sepulcral reinava ao redor dos dois cavaleiros. Augusto não tinha coragem de levantar seu rosto e Aurélio permanecia calado.
— Estou muito feliz em ter a oportunidade de te ver mais uma vez, meu filho. É um orgulho ver o homem que você se tornou.
— Não diga isso, meu pai — sua voz estava embargada. — Eu falhei em minha missão, minhas protegidas foram tomadas.
— Você só terá falhado quando desistir delas. Elas estão próximas, você vai resgatá-las.
— Mas e depois, meu pai? O que eu farei? Voltarei para Catônia e serei um servo de Diógenes, aquele porco que causou sua morte.
— Eu causei minha morte, meu filho, ninguém mais.
— Aquele homem é mau e asqueroso. Nas mãos dele, toda nossa força vira lixo, meu pai. Proteger Catônia e servir ao rei é servir ao mal. Isso é um fardo grande demais.
— Foi grande demais para mim, mas não para você. Você é o melhor de todos nós, Augusto.
— Não brinque com isso, meu pai. É até leviano ofender meus antepassados com tal pilhéria.
— Não, Augusto, eu vivo com eles dentro de você. Acredite, você é o maior e mais poderoso Roderick que já existiu e jamais vai existir outro igual. Nenhum de nós teve um fardo tão grande quanto o seu. Diógenes é asqueroso e deplorável. É culpa minha que ele esteja vivo e tenha se tornado rei, não adianta negar com a cabeça, isso não mudará. Eu deveria tê-lo matado quando tive a oportunidade, mesmo à revelia de Dioniso. Minha piedade tornou-se um monstro que veio atormentar você, meu filho.
— Meu pai, o que eu devo fazer?
— Augusto, eu sou um homem morto. Morri porque não soube a resposta para a pergunta que está me fazendo. Somos fiéis à promessa de Eli Roderick, enquanto o rei puder manter a paz em Catônia, nós o serviremos. Somente você poderá encontrar a resposta para essa maldição, meu filho. Todos nós confiamos em você e estaremos sempre lutando ao seu lado.
— Eu não sou digno disso — disse Augusto caindo de joelhos e se entregando aos prantos. A figura de Aurélio começava a ser puxada para dentro de Augusto, como se ele fosse feito de luz e seus feixes fossem sendo tragados para dentro do filho.
— Meu tempo está se esgotando. É um esforço desmesurado permanecer fora depois que o seu pedido foi realizado. Estou voltando, mas saiba que a minha palavra é lei, como a de todo Roderick. Meu filho, enxugue suas lágrimas, as primeiras dadas por você, desde que nasceu, mas que estavam guardadas em seu coração. Saiba, Augusto, que hoje eu anuncio, você será o último Roderick e sua força e sabedoria trarão paz e harmonia à Catônia como nunca houve antes.
— Obrigado, meu pai — disse Augusto enquanto limpava os olhos e se levantava. Aurélio deu-lhe um abraço, forte e caloroso. Logo ele foi sendo absorvido pelo filho e Augusto ficou abraçando a si mesmo. O cavaleiro ainda permaneceu parado por uns instantes, mas logo deixou de ser um menino pedindo ajuda ao pai e voltou a ser um homem adulto que precisava concluir sua missão. Ele virou-se e foi na direção do portal aberto por Magog. Ele era um grande círculo de fogo, era como se ele fosse um buraco que levava direto para o reino dos homens, dentro dele podia-se ver nitidamente uma floresta. Paulo, Valentim e Apollion esperavam o cavaleiro.
— Finalmente, grande homem — disse Paulo aos berros. — Já estávamos ficando entediados.
— Obrigado por tudo, Paulo — disse Roderick olhando diretamente para o monge.
— Não há de quê, grandão — respondeu o monge. — Você sabe que me ajudou muito mais do que o contrário.
— Não, isso não é verdade. Sempre vou me lembrar do que fez por mim. Assim como sempre lembrarei de você, Valentim. Hoje você agiu como um legítimo amigo.
— Nós precisávamos sobreviver — disse o bandoleiro desconcertado.
— Vai chegar o dia em que poderei retribuir a vocês dois. Apollion, meu caro, você também foi de grande ajuda, sinto que agora que seja um general, não tenha mais um exército.
— Deixa isso para lá, eu nunca conseguiria ser como os outros demônios.
— E o que será de você agora? — quis saber o cavaleiro.
— Eu não sei — disse o pequeno demônio com pesar.
— Mas eu sei, Roderick — disse Paulo. — Ele virá conosco, salvar suas protegidas.
Apollion alegrou-se.
— Vocês me levariam?
— Claro — disse o monge com decisão.
— Vocês ainda virão comigo? — quis saber o cavaleiro surpreso. — Vocês já cumpriram suas missões, não precisam mais me ajudar.
— Claro que precisamos. Primeiramente porque somos amigos; em segundo lugar, porque não temos mais para onde ir.
— A verdade é que o segundo argumento é o único que importa — sugeriu Valentim com ironia.
— Sendo isso ou não, sou grato — concluiu Roderick. — Vamos, estou ansioso para rever minhas protegidas.