Uma
nuvem de poeira subia aos céus, o rastro do corcel de ébano podia ser visto a
quilômetros de distância. A imagem daquele espécime era quase sobrenatural,
Valentim só teve coragem de olhar para trás uma vez, mas ao ver aquele cavalo
que mais parecia uma pantera-negra e seu cavaleiro que bem podia ser confundido
com o deus da morte, virou seu rosto o mais rápido que pôde e não mais teve
coragem de fazê-lo novamente.
Era a hora. Valentim já podia ver
sua salvação. Ele sacou seu espadim, olhou para o lado e arremessou-o o mais
longe que pôde, depois fez o mesmo com suas adagas e até mesmo com o seu
rebenque. O cavaleiro negro já estava a poucos metros de distância, o
bandoleiro subiu no cavalo e ficou meio acocorado e meio em pé na sela do animal.
Quando o cavaleiro finalmente o alcançou e tomou a rédea do cavalo para
freá-lo, Valentim deu um salto à frente, a velocidade era tão alta que ele
praticamente voou, até cair na areia, rolando a alguns metros de distância do
cavaleiro. Ele nem chegou a ficar caÃdo no chão, aproveitou-se do giro para
reduzir o impacto, ficar de pé e sair correndo. O cavaleiro teve que apear do
seu cavalo e continuar a perseguir Valentim a pé, pois o deserto começava a
acabar e o outro fugia por um terreno acidentado que dificultaria o galope do
animal. Mesmo trajado de meia-armadura, o cavaleiro mostrava-se veloz, ele
saltava pelas rochas que começavam a aparecer cada vez mais, enquanto Valentim
tropeçou em várias e, possivelmente, já tinha esfolado todos os dedos dos pés.
O bandoleiro estava exausto, enquanto o outro nem parecia arfar, o resultado
dessa fuga era óbvio. Era a hora.
— Espere — gritou Valentim enquanto
se virava para encarar o cavaleiro, este atendeu ao pedido e esperou. Valentim
ofegava fortemente e estava tão extenuado que poderia vomitar a qualquer
momento. — Espere, senhor. Eu me chamo Valentim, sou servo do rei Diógenes,
quem é a Vossa Senhoria? — o cavaleiro ficou calado, encarando o bandoleiro,
olhou para todos os lados e quando finalmente concluiu que realmente estavam a
sós, respondeu:
— Eu sou Roderick, cavaleiro do rei
Diógenes. Eu…
— Um minuto — interrompeu Valentim.
— Não sei se o senhor notou, mas não estamos mais no deserto de Sálvia.
— Sim, eu notei — concluiu Roderick
confuso —, mas o que tem isso?
— Isso, meu senhor, significa que
não estamos mais em Catônia, estamos em Quendor e a sua autoridade como
cavaleiro é nula nesta região. Não estamos mais sobre as terras de Diógenes,
portanto, não pode me prender. Eu estou desarmado e não faltei ao respeito com
Vossa Senhoria. Seria desonroso me ferir, me prender ou mesmo me chamar para um
duelo, já que eu não tenho como me defender — Valentim disse isso de forma
impetuosa, mostrando o máximo de coragem que podia apresentar naquela situação.
Essa manobra não funcionaria contra noventa e nove por cento dos cavaleiros do
rei, a maioria teria arrebentado seus dentes antes mesmo que ele tivesse
terminado de falar qualquer coisa sobre justiça, lei ou honra, mas Roderick era
diferente. Se ele fosse tão correto como dizem que ele é, talvez isso desse
certo. Era um tiro no escuro, mas era o que ele podia fazer no momento.
Valentim não sabia se tinha dado certo, pois Roderick havia ficado calado,
encarando-o. Essa situação constrangedora durou por uns três minutos, até que o
cavaleiro quebrou o silêncio.
— Desculpe-me se não entendi
patavinas do que me disseste, mas do que é que você está falando?
— Como assim? Acho que eu fui bem
claro, se você veio me prender ou ferir, não poderá fazê-lo, pois não estamos
mais no reino de Catônia e aqui Vossa Senhoria não é um cavaleiro.
— Você está errado, um cavaleiro é
um cavaleiro aonde quer que ele esteja, mas você está certo em um ponto, fora
de uma guerra, eu só posso agir em outros reinos com a autorização explÃcita do
rei.
— Então eu vou embora — concluiu
Valentim, ansiando que o outro concordasse.
— Calma, acho que é você que está se
confundindo, eu não vim aqui machucá-lo nem prendê-lo, vim apenas fazer uma
pergunta.
— O quê? — indagou Valentim
incrédulo. — Como assim?
— Eu estou procurando um criminoso
muito peculiar e você, como lÃder dos bandoleiros, talvez possa conhecê-lo.
— Você só quer saber o paradeiro de
um criminoso? É isso que você está me dizendo? — perguntou Valentim enquanto
começava a sair da defensiva.
— Não é tão simples quanto parece,
mas, essencialmente, é isso mesmo.
— E por que diabos você matou mais
de quinze dos meus bandoleiros?
— Eu apenas me defendi.
— Como assim? Meu subordinado me
disse que eles não tentaram te roubar.
— Tem razão, eles tentaram apenas me
assassinar. Creio que para vocês não seja considerado roubo tomar os pertences
de um defunto. Seu subordinado não estava de todo errado.
— Isso não é verdade, meus homens
não atacam cavaleiros sem motivo.
— Isso é verdade porque eu nunca
minto, e, se ousares insinuar isso novamente, arrancarei sua lÃngua com minhas
próprias mãos — ameaçou Roderick, ao que Valentim consentiu com a cabeça. — Eu
também não disse que não tinham motivos, para ser mais claro, a culpa foi toda
deles. Quando eu cheguei à Sálvia, fui ao Refúgio do Bandoleiro, aquele bar
onde vocês se reúnem. Lá eu tentei obter informações sobre o criminoso que
estou à procura, alguns riram de mim e eu avisei que se continuassem com as
pilhérias eles se arrependeriam, um deles tentou quebrar uma caneca na minha
cabeça, por isso eu acabei arrebentando os dentes dele, os outros me atacaram,
eu me defendi, uma coisa levou a outra e alguns deles acabaram morrendo.
— E por que você me perseguiu?
— Porque, depois do pequeno
desentendimento, os bandoleiros começaram a ser mais solÃcitos e eles
aparentavam não ter nenhuma informação sobre quem eu procuro, mas me garantiram
que você poderia me ajudar, aquele seu amigo que você derrubou do cavalo me
disse onde encontrar você.
— O Eduardo? — disse Valentim,
começando a se exaltar.
— Sim, ele mesmo. Ele me disse que
você conhece todos os bandoleiros do mundo e só você poderia encontrar quem eu
procuro. Ele me pediu para ir à frente, para convencer você a ajudar, eu
esperei alguns minutos e depois apareci, conforme o combinado, mas vocês
começaram a galopar e eu tive que ir atrás de vocês. Quando alcancei o Eduardo,
que havia caÃdo ao chão, ele me disse que estava tentando convencer você a
parar e me ajudar, mas que você não queria, por isso você o havia derrubado,
então eu saà em seu encalço.
— Eu estou arruinado — lamentou-se
Valentim e sentou ao chão com as mãos na cabeça. Ele não estava com raiva,
curiosamente ele sentia até um pouco de orgulho da traição do Eduardo, mas ele
estava desolado, ele nunca teria uma vida sossegada, mesmo tendo chegado tão
perto, tudo acabou por causa de um infortúnio.
— Por que o senhor está arruinado? —
indagou Roderick.
— Sabe aquele garoto, o Eduardo. Ele
era meu subordinado, eu ensinei grande parte do que sei para ele e agora ele me
traiu. Talvez ele não quisesse me trair, mas a sorte sorriu para ele, que viu
em você a chance de se tornar o lÃder dos bandoleiros.
— Por que em mim?
— Porque você é um cavaleiro que
chegou matando vários bandoleiros, inclusive os mais perigosos. Eu sempre fiz
diversos acordos com rei, para manter a paz dos meus subordinados e do próprio
reino, roubávamos apenas o necessário e apenas pessoas indicadas pelo rei.
Esses acordos trouxeram paz, mas não é isso que os bandoleiros querem, eles
queriam o perigo, queriam sentir-se como pessoas que transgrediam a lei, mas
com os acordos do rei, eles eram praticamente seus funcionários. Eu sabia que
chegaria o dia em que eu seria traÃdo para que surgisse um lÃder que fizesse
com que eles voltassem ao velho modo de bandidagem. Eu estava juntando dinheiro
para ir embora antes que isso acontecesse, mas acabei perdendo-o e se eu voltar
para Sálvia, provavelmente serei morto.
— Eu ainda não entendi por que você
será morto, fui eu quem atacou os bandoleiros.
— Porque os bandoleiros nunca
confiaram no rei e eu sempre dei a minha palavra que ele nunca mais iria nos
ferir. Você, que, como cavaleiro, é a representação do rei, não só feriu, mas
também matou vários bandoleiros. Eles não mais confiam em mim, nem nos acordos
com o rei. Eduardo, agora, provavelmente, deve estar dizendo que eu fugi com um
cavaleiro e que eu estou do lado do rei. Agora ele será declarado o novo lÃder.
E eu ainda fiz a burrice de entregar todas as minhas economias para ele.
— Tem razão, você está arruinado —
concluiu secamente o cavaleiro, fazendo com que Valentim se enfurecesse.
— Pois é. Agora me faça o favor de
me deixar em paz, tenho que pensar para onde vou.
— Você ainda precisa me ajudar a
encontrar o criminoso.
— Olha aqui, eu acabo de perder
todas as esperanças que eu tinha na vida e você tem uma parcela gigantesca de
culpa nisso. Eu não preciso nem vou te ajudar, se quiser me matar por causa
disso, tudo bem.
— Por favor! — implorou Roderick
ajoelhando-se, para a surpresa de Valentim, que nunca tinha visto um cavaleiro
se ajoelhar para alguém que não fosse o rei. — É imprescindÃvel que eu encontre
o Sombra Negra.
— Levante-se, não precisa se
ajoelhar — Valentim não sabia bem o porquê, mas ele simpatizava com o cavaleiro
e aquele gesto fez com que ele até sentisse um pouco de vontade de ajudar. —
Veja bem, eu realmente não estou com raiva de você e sim com a situação. Isso
aconteceria cedo ou tarde, eu só queria ter conseguido fugir com o meu
dinheiro. Quanto a esse tal de Sombra Negra, eu não o conheço, Eduardo estava
exagerando quando disse que eu conhecia todos os bandoleiros do mundo.
— Ouça a minha história, talvez
depois de ouvi-la você saiba de quem se trata, ou mesmo tenha alguma pista que
me leve ao seu paradeiro.
— Eu até simpatizo com você, de
verdade, mas me diga por que eu ajudaria o pivô da minha derrocada?
— Se você realmente me ajudar a
encontrar esse desgraçado eu posso obrigar os bandoleiros a te aceitarem como
lÃder novamente.
— Isso não daria certo, eles não
confiam mais em mim. Obrigá-los, por um cavaleiro, o representante do rei, que
eles nunca quiseram ter acordo, mas que eu os convenci a ter, a me receber como
lÃder só faria com que eu acordasse com um punhal nas costas.
— Pois eu posso pagá-lo, darei
minhas economias para restituir sua perda monetária. Você disse que já
pretendia ir embora, pois poderia ser traÃdo a qualquer momento. Essa é a sua
oportunidade. Ajude-me a encontrar o Sombra Negra e eu o recompensarei.
— Não me leve a mal, mas acho que
você não tem ideia de quanto dinheiro eu perdi. Eu sei bem quanto um cavaleiro
ganha e nem em duas vidas você teria dinheiro o suficiente para me ressarcir.
— Quanto a isso, não se preocupe,
não tenho a economia de duas vidas, mas sim a de várias centenas. Minha famÃlia
sempre foi muito bem recompensada por nossos feitos, mas depois que usamos
nosso dinheiro com uma boa espada e um bom escudo, não temos mais com o que
gastá-lo, então guardamos. Eu tenho as economias de todos os meus antepassados.
Meu dinheiro guardado poderia fazer até mesmo o rei Diógenes ser comparado a um
pedinte — Dizendo isso, Roderick jogou um saco de moedas nos pés de Valentim. —
Pegue esse dinheiro apenas para ouvir-me, se, depois disso, você aceitar me
ajudar a encontrar o Sombra Negra, pagar-te-ei cem vezes mais.
— Meu senhor, agora temos um acordo
— respondeu Valentim, apanhando o dinheiro. — Fale-me tudo que sabe sobre esse
tal de Sombra Negra e eu usarei todos os meus conhecimentos de bandoleiro para
descobrir quem é.
— Não há dúvidas de que o que eu vou contar é
inverossÃmil, no entanto, peço que acredite em mim...