Roderick, Valentim e Apollion estavam sentados ao redor da mesa, Paulo estava do lado de fora do casebre, limpando-se apĂłs ter evacuado. O cavaleiro relatava o caso do rapto para o pequeno demĂ´nio, enquanto o bandoleiro parecia absorto em seus pensamentos.
— ...Tão misteriosamente como apareceu, aquela sombra negra se esvaiu, juntamente com as mulheres.
— Isso Ă© incrĂvel, Roderick. VocĂŞ conseguiu destruir uma das sombras? — quis saber Apollion.
— Sim, como eu havia dito, a raiva me deu forças. Desferi o golpe usando todas as energias que eu tinha.
— Isso, meu amigo, significa mais do que você pode imaginar. Creio que foi quando você contou isso que Paulo descobriu sua identidade.
— Como assim? Eu não entendo.
— Esse poder de controlar as sombras nĂŁo Ă© de qualquer um, mas sim do mestre Magog. A pessoa que raptou essas mulheres fez um pacto com o mais poderoso dos demĂ´nios, ou seja, Ă© uma pessoa muito perigosa. O mais extraordinário, foi que vocĂŞ conseguiu atingir uma criatura espiritual. Lembra que eu disse que vocĂŞs humanos sĂŁo como se vivessem em cascas? O corpo de vocĂŞs nĂŁo foi feito para tocar um corpo espiritual, já nĂłs, sabemos como tocar vocĂŞs, nĂŁo no corpo, mas nas suas almas. Aprendemos isso com os sĂ©culos. Se vocĂŞ conseguiu atingir e, pior ainda, destruir uma criatura espiritual, significa que vocĂŞ tem uma grande força de vontade. No momento de grande estresse vocĂŞ conseguiu usar seu poder espiritual. Isso Ă© muito incrĂvel, somente um Roderick poderia fazer algo do tipo.
— Por que só um de nós?
— Ora, por quĂŞ? Porque vocĂŞs sĂŁo incrĂveis, espĂ©cimes Ăşnicos no universo. Pode parecer brincadeira da minha parte, mas um antigo demĂ´nio um dia predisse que nĂłs serĂamos libertados e destruĂdos por um homem de famĂlia ancestral. Na Ă©poca que ele proferiu esse vaticĂnio nĂłs ignoramos, pois nĂŁo estávamos presos e nem sabĂamos o que era um homem. Foi sĂł depois que fomos aprisionados pelos anjos que ela começou a fazer sentido. Quando vocĂŞs começaram a ascender como a famĂlia dos mais poderosos cavaleiros, o augĂşrio parecia que se concretizaria a qualquer momento.
— Eu nĂŁo entendo, vocĂŞs estavam aprisionados aqui, como ficaram sabendo da existĂŞncia da minha famĂlia nos confins da Terra?
— Os monges nos contam muitas coisas do mundo humano, falaram sobre vocĂŞs e logo identificamos que vocĂŞs eram a famĂlia da profecia. Há muitos anos esperamos e tememos a sua visita. Uma vez que está predito que vocĂŞ será nosso libertador, tambĂ©m há o prognĂłstico de que vocĂŞ será nosso nĂŞmesis.
— Mas minha famĂlia existe há tantos anos, por que vocĂŞs nunca pediram aos monges que fossem atrás de nossa ajuda?
— Porque Ifnir Ă© muito esperto. Para os monges nĂŁo seria vantajoso nenhum dos dois desfechos da profecia. Se nĂłs formos libertos, nĂŁo precisaremos mais deles para nada; se formos destruĂdos, eles perdem a fonte dos seus poderes mĂsticos. EntĂŁo, por regra, feita por eles mesmos, para se protegerem, eles nunca foram atrás dos Rodericks para a realização da profecia.
— E vocês nunca tentaram fazer com que eles mudassem de ideia?
— Claro que tentamos, muitas vezes, prometemos poderes além da conta, vida de reis, mas a influência de Ifnir é muito forte, uma vez que ele proibiu terminantemente isso, nenhum monge teve coragem de ir contra a vontade dele.
— Só não Paulo.
— Exato. Paulo Ă© muito imprevisĂvel, os monges nĂŁo contavam com isso. Para falar a verdade, creio que eles o achassem tĂŁo inofensivo que nunca tenham sequer imaginado que Paulo poderia fazer algo que os deixasse em risco.
— Talvez ele não seja tão louco como ele se faz parecer — disse Valentim, finalmente saindo de sua taciturnidade.
— Como assim? Ele parece bem louco para mim — disse Roderick.
— Para mim também — anuiu Apollion.
— Vocês não percebem? É exatamente isso que ele quer que nós pensemos. Eu estive raciocinando, creio que estejamos sendo usados por Paulo. Eu não sei quais os planos dele, mas existe muita coisa encoberta nessa história toda.
— Seja mais claro, Valentim.
— Roderick, creio que toda essa loucura do Paulo seja um logro. Ainda hoje não sabemos o porquê dos assassinos mais bem pagos do mundo quererem vê-lo morto. Ele sabia, desde o começo, quem era você, então, desde o começo, ele nos fez acreditar que ele estava ajudando em nossa busca, quando, na verdade, éramos nós quem estávamos ajudando ele na dele. Ele finge ser louco para que não notemos o quanto ele é perigoso. Ele te trouxe aqui, Roderick, não para te ajudar a achar suas protegidas, mas sim para libertar todos os demônios.
— Ele falou algo sobre termos direito a pedidos de Magog — disse Roderick.
— Sim, Ă© o nosso lĂder. Enquanto eu nĂŁo consigo fazer nada mais grandioso do que curar ressaca, com ele Ă© bem diferente. O mestre Magog pode dar poderes incrĂveis, como o controle de exĂ©rcitos de sombras, capacidades fĂsicas avantajadas, conhecimentos obscuros, riquezas e muitas outras coisas.
— Mas Apollion, Ă© possĂvel que ele faça negociações com outro demĂ´nio já tendo um pacto com vocĂŞ? — indagou Valentim.
— Como Magog é mais poderoso do que eu, ele consegue sobrescrever sobre meu pacto.
— Como eu suspeitava, ele nos trouxe aqui para ajudá-lo a cancelar o pacto dele por um mais benéfico.
— Você não acha que está exagerando? Eu não o conheço há muito tempo, mas desde o momento em que o salvamos ele não tem se mostrado tão engenhoso como você está sugerindo.
— Muito pelo contrário, há alguns dias ele tem intensificado um plano que só agora eu consigo compreender. Note que por mais que faça as loucuras dele com você, elas são mais comedidas, pois ele sabe que você pode matá-lo se ele fizer você sentir-se ofendido. Eu, desde o começo, sempre me mostrei cético e desconfiado para com ele, Paulo, sabendo disso, começou a fazer toda sorte de coisas loucas para me ofender e deixar-me irritado, pois, no caso de você ter algum plano secreto, é muito melhor ter um homem com raiva de você do que um desconfiado. Ele tem me levado ao ápice da fúria, para que o meu discernimento a respeito dele fique turvado, mas chega disso, quando ele chegar deixaremos tudo em pratos limpos.
— Eu ouço passos, ele está vindo — disse Roderick.
— Como assim você escutou passos? — disse Valentim espantado. — Ele está do lado de fora e lá o solo é macio.
— Eu tenho uma boa audição.
— Boa é uma coisa, isso aà já é exage…
— Cheguei meus amores, estou limpo e pronto para irmos — falou Paulo entrando bruscamente na sala.
— Tenho minhas dúvidas se você está limpo e tenho certeza que não estamos prontos para irmos para qualquer lugar antes que você nos dê algumas respostas.
— Não, Valentim, de novo não. Já disse que é melhor ficarmos apenas amigos.
— Suas pilhérias não vão livrá-lo de nos dar as respostas que esperamos.
— Não temos tempo para as suas tolices, Valentim. Augusto, a salvação das suas protegidas está bem próxima, devemos nos apressar.
— Não, Paulo, o Valentim tem razão.Você precisa nos esclarecer algumas coisas.
— Me ajuda aqui, Apollion, esses caras estão me acossando.
— Eles querem respostas, Paulo, eu também as quero.
— Et tu, Apollion? Nossa vocês estão um saco mesmo. O que vocês querem saber?
— Nos explique você, quais seus planos para o Roderick?
— Você é meio surdo, heim? Já disse, quero que ele destrua todas as barreiras e liberte todos os demônios.
— E por que você quer libertar todos os demônios?
— Eu já falei, você tem algum retardo? Vamos fazer um acordo com Magog. A libertação de todos os demônios em troca de três pedidos sem restrições. Cada um de nós receberá um.
— E o que, exatamente, poderemos pedir?
— Qualquer coisa. Magog Ă© tĂŁo poderoso quanto uma divindade menor. VocĂŞ pode pedir para ser rico, virar homem de verdade, pedir para trocar seu falo por um orifĂcio. Qualquer coisa, fica a seu critĂ©rio.
— Muito engraçado, você, mas o que você vai pedir?
— Isso é pessoal, também não quero saber o que vocês vão pedir.
— Então você pretende mesmo sobrescrever o nosso pacto? — quis saber Apollion.
— Me desculpe, Apollion, mas é necessário.
— Pensei que nĂłs passarĂamos a eternidade juntos.
— Ia ser um porre, acredite. Não faça essa cara de choro, foi bom enquanto durou. Não precisa se preocupar, uma das cláusulas do meu acordo com Magog será que ele lhe dê alguma promoção. Eu te farei um general.
— Mentiroso.
— Posso até ser um, mas honro meus amigos. Você será um general, Apollion.
— Você jura?
— Pelo Valentim mortinho!
— O que eu precisarei fazer? — quis saber Roderick.
— Não se preocupe, eu direi quando for a hora.
— Eu não gosto de estar nas suas mãos, Paulo. Roderick e Apollion podem até cair no seu logro, mas comigo não será tão fácil. Você fez tudo isso por ambição.
— Eu não usaria essa palavra, mas posso usá-la para convencê-lo. Você sim é um homem ambicioso. Ninguém se une a um Roderick, com todos os perigos que isso traz, sem que tenha uma grande ambição. O que é Valentim? Você quer ser um rei? Busca alguém que ama?
— Não é da sua conta.
— Pode até não ser, mas estou vendo o brilho da esperança nos seus olhos. Há algo que você quer muito. Ele pode realizá-lo, Valentim, você pode ter o seu maior desejo concedido.
— Eu não confio em você — disse o bandoleiro já com dúvida na voz.
— Faça uma aposta, tenho certeza que você já fez muitas apostas na sua vida. Jogue os dados, se o que eu estiver dizendo for verdade, você vence. Seu prêmio tão almejado vira realidade. Apollion e Roderick já estão dentro, podemos ir sem você, mas eu não quero, gosto de você Valentim, quero que você também seja recompensado.
—Tudo bem, eu vou, mas, se estiver nos traindo, eu o matarei e nem mesmo Roderick vai me impedir.
— Fechado — disse Paulo apertando a mão do bandoleiro. — Você pode até fingir que não gosta de mim, mas sinto que você ainda vai salvar minha vida.
— Essa não seria uma aposta inteligente.
— Diferente de você, meu amigo, eu nunca faço apostas inteligentes.
O acordo estava feito, um cavaleiro, um bandoleiro e um monge se uniriam a um pequeno demônio e libertariam as criaturas mais perigosas do universo. Apollion levou todos a seu quintal. Lá havia algumas runas desenhadas no solo parecidas com as que Paulo havia desenhado em seu quarto para levá-los ao reino dos demônios. Apollion se espantou.
— Essas runas não estavam aqui. O que significa isso?
— Fui eu quem fiz — disse o monge. — Vocês não achavam que eu tinha demorado aquele tempo todo me limpando, acharam? São as runas para se comunicar com Magog.
— Eu sei o que são, só não sabia que você sabia fazê-las.
— Ah, isso? Eu decorei da última vez que você as desenhou.
— Eu demorei anos para aprender, isso não são runas simples. Essas não são runas que qualquer monge pudesse fazer, principalmente você.
— O que você está querendo dizer com isso, Apollion? — quis saber Valentim.
— Quero dizer que o Paulo Ă© um monge que sĂł sabe as runas básicas para chegar atĂ© o reino dos demĂ´nios, mas agora fez uma que está no mesmo nĂvel de monges que conseguem chegar atĂ© os generais.
— Eu nunca disse que só sabia runas básicas, eu disse que não gostava de estudar e não gostaria de me aventurar a conhecer outro demônio. Sempre preferi ficar só por aqui mesmo. Agora não percamos tempo, fiz isso para economizarmos tempo. Você demoraria horas fazendo as runas.
— Roderick, temos que desistir — disse Valentim. — Ele está claramente escondendo algo de nós. Até o Apollion está desconfiado dele.
— Eu não estou mentindo, Augusto. Quero barganhar um pedido com Magog. Não só quero, eu preciso. Ele também te dará um pedido, eu prometo. Ainda hoje você estará em posse das suas protegidas.
— Isso pode ser mentira, Roderick.
— Mas também pode ser verdade. Vale a pena. Traga Magog até aqui, se estiver ao meu alcance o libertarei.
— Você ouviu o homem, Apollion, traga o chefão — disse Paulo arremessando o pequeno demônio para dentro das runas.
Apollion ainda pensou em reclamar da rudeza, mas estava muito ansioso para isso. Fazia anos que nĂŁo falava com Magog, ele o assustava. Ele mordeu a palma da prĂłpria mĂŁo atĂ© que seu sangue arroxeado começasse a cair. Ao tocar as runas o sangue ateou fogo, logo todas elas estavam em chamas e Apollion estava no meio delas, incĂłlume. Ele entoava um cântico parecido com o que Paulo cantara para levá-los atĂ© o reino dos demĂ´nios. Uma espĂ©cie de vendaval começou a atingi-los, um grito agudo começou a soar e aos poucos ele tornou-se grave. O monge gargalhava ensandecidamente enquanto gritava repetidamente “sim”. Valentim tentava abrigar-se nas costas de Roderick, que, por sua vez, nĂŁo movia um mĂşsculo. Uma grande silhueta começou a se formar das chamas, elas formavam a figura de uma criatura bĂpede, mas com asas de pelo menos oito metros de envergadura, possuĂa grandes presas e um par de chifres circulares. Era grande, duas vezes mais alto do que Roderick.
— O que significa isto, Apollion? Quem te disse que eu quero perder meu tempo com você? — disse a silhueta em chamas.
— Mestre, eu trouxe algo do seu interesse.
— Nada do que você possa conseguir é do meu interesse, Apollion.
— Que tal me ouvir primeiro, hein, esquentadinho? — disse Paulo.
— Quem é este inseto, Apollion?
— Esse é o Pau…
— Paulo, às suas brasas… Digo, às suas ordens, senhor brasa.
— Paulo, não é? Já ouvi falar nesse nome. Ifnir já me falou sobre você. É o talento perdido, o diamante que virou carvão, o sonho que virou pesadelo.
— Muito gentil da parte dele, ele é sempre tão meigo.
— Ele me disse sobre a sua ousadia, aparentemente ela faz jus ao que ele falou. Não pense que tenho interesse em sua pessoa. O mais talentoso dos monges é tão importante para mim como a mais talentosa formiga. O que você quer, jovem monge?
— Vim negociar.
— Nada do que você tenha pode me interessar.
— Não seja tão prematuro, assim você fica com uma fama ruim entre as garotas. Eu te trouxe aquele homem ali.
— Então há mais insetos por aqui, não havia reparado. Ah, ah, ah! O tolo está empunhando uma espada contra mim. Mesmo que esse pequeno graveto pudesse te proteger contra mim, pequeno inseto, não seria necessário. Este não é meu corpo verdadeiro, estou aprisionado e essa é apenas uma projeção minha feita para que eu possa me comunicar.
— Como você ousa? — disse Roderick furiosamente.
— É exatamente sobre sua prisão que queremos conversar — disse Paulo. — Viemos propor sua liberdade.
— Sabia que era perda de tempo. Apague as runas, Apollion.
— Mas senhor…
— Sem “mas”, eu não quero ouvir as sandices de um reles monge. Daqui a pouco ele vai começar a me propor que trará um Roderick para esse reino.
— Eu nĂŁo proporei algo que já foi feito. Sei que a visĂŁo da projeção nĂŁo Ă© perfeita, mas olhe bem para o inseto com o graveto. — Magog aprumou bem a visĂŁo e genuinamente assustou-se. NĂŁo era um inseto que estava Ă sua frente, mas sim um cavaleiro grave e imponente, em suas mĂŁos nĂŁo estava um graveto, mas sim uma extraordinária espada ancestral, que muito provavelmente poderia machucá-lo. O espanto era nĂtido em sua face e, por muito, ele teve dificuldade em simular uma fleuma que ele nĂŁo tinha.
— Isso Ă© impossĂvel — bradou Magog.
— NĂŁo, nĂŁo Ă© — disse Paulo assumindo uma seriedade que nĂŁo era comum a ele. — É chegada a hora do cumprimento da profecia. Há muitos sĂ©culos atrás Thiresos predisse: “chegará o dia em que um homem de famĂlia nobre será nossa salvação e nossa perdição”. VocĂŞs o julgaram louco, mas nada se mostrou mais certo do que as suas palavras. Mesmo morto na guerra contra os anjos, suas palavras sobreviveram, viajaram pelos anos e hoje vieram te atingir, lĂder dos demĂ´nios. Está na sua frente o seu messias e o seu nĂŞmesis e vocĂŞ trata-o com desdĂ©m?
— Eu não o sabia — disse Magog se justificando. — Não era minha intenção. Baixe a arma cavaleiro, não sou seu inimigo, pelo menos não antes de você me libertar. Retrato-me das ofensas.
— Ele Ă© Augusto Roderick, o ponto fora da curva, a lâmina certeira, o aliado da destruição, a vontade absoluta e outras tantas alcunhas que me fariam perder dias em sua apresentação. AtĂ© mesmo o espĂrito da Morte teria receio de enfrentá-lo, vocĂŞ acha mesmo que esse homem se ofenderia com algo dito por um reles demĂ´nio? Saiba que o mais poderoso dos demĂ´nios Ă© para ele tĂŁo importante quanto o mais insignificante dos mosquitos. Guarde suas retratações para si e vamos ao que interessa.
— Você não está pegando pesado demais? Não acho uma boa ideia irritá-lo — cochichou Valentim ao pé do ouvido de Paulo.
— Deixe comigo, sei negociar com essa laia — sussurrou Paulo de volta.
— Será mesmo que ele é tudo isso? — indagou Magog. — Uma profecia feita por um demônio sandeu e elogios de um monge ignóbil não me parecem provas absolutas de um poder tão incomensurável como o que dizem que ele tem. Poderá mesmo ele partir as barreiras feitas com o poder de todos os anjos?
— Poderá, mas não de graça. Vocês terão que pagar.
— Ah, ah, ah! Ambições, vocês humanos são todos iguais. Diga-me o que quer.
— Você nos dará um desejo, para cada um de nós.
— Em troca de suas almas?
— Você não está negociando com os cães sujos do mosteiro, sua proposta é um escárnio. De onde saiu a presunção de achar que poderia ser dono da alma de um Roderick, seu pedaço de estrume?
— Não exagere, Paulo — disse Valentim baixinho ao seu ouvido.
— Exatamente, meu amigo Valentim, este energúmeno filho de uma cadela sarnenta pensa que pode nos enganar.
— Eu não disse is… — quis retratar-se o bandoleiro.
— Então digam a proposta completa de uma vez por todas, ou irei embora — disse Magog enquanto rangia os dentes.
— Ah, ah, ah! Ir embora para onde? Não nos faça rir, mentecapto. Você vive preso como um rato em um bueiro tão pequeno que tem que ficar de pé. Não, Magog, você não irá embora porque você não tem para onde ir. Você precisa tanto de nós que aceitaria ser nossa vadia por um século só para se ver livre dessa barreira. Então pare de ser dissimulado e ouça nossa proposta. Repita comigo “Qual é a proposta dos senhores?”.
Todos calaram-se. Apollion já perdera a voz a muito tempo, Valentim tremia-se e se protegia atrás de Roderick, este mostrava-se impassĂvel, calmo como se nada pudesse perturbá-lo. Magog estava furioso e nĂŁo escondia isso, se pudesse ele já teria arrancado toda a pele de Paulo e chicoteado ele com ela. Mas nĂŁo podia, esses humanos eram a Ăşltima oportunidade que ele tinha para se libertar. Seu orgulho impedia que ele se submetesse ao jugo daquele reles humano. Paulo nĂŁo se importava, ele queria humilhá-lo, queria espezinhá-lo ao ápice, por isso gritou, como quem grita com uma criança: “REPITA”.
— Qual é a proposta dos senhores? — Disse Magog entre dentes, largando mão de todo seu brio.
— Fale mais alto, não consigo ouvir você com essa voz de vadia.
— QUAL É A PROPOSTA DOS SENHORES? — vociferou Magog com toda a força de seu Ăłdio, jurando, em seu Ăntimo, por todas as entidades possĂveis, que faria esses humanos pagarem.
— Você nos dará um desejo. Não um desejo qualquer, mas um desejo sem restrições, daqueles que só a força de todos os demônios juntos podem dar. Um para mim, um para Roderick e um para Valentim. Vocês também devem respeitar Apollion e tratá-lo como um general. Em troca, Roderick destruirá todas as barreiras angelicais.
— E por que esse tal de Valentim tambĂ©m receberá um pedido? Ele nĂŁo tem nada de importante para o merecer. Eu darei um para vocĂŞ e um para Roderick — disse Magog. Paulo olhou bem para Valentim e deu um sorriso, daqueles ensandecidos que sĂł ele sabia dar. O bandoleiro compreendeu que seria traĂdo, a Ăşltima pilhĂ©ria do monge seria deixá-lo sem desejo algum. Ele nunca acreditou realmente que o desejo de libertar sua famĂlia um dia fosse se tornar realidade, mas ele tinha esperança, das mais pueris possĂveis, mas uma esperança. Com toda essa histĂłria de desejos e demĂ´nios ele realmente chegou a sentir o cheiro de sua terra e lembrou-se do calor do abraço de sua mĂŁe. Agora ele teria sorte se saĂsse vivo de lá.
— Em hipótese nenhuma — disse Paulo, para a surpresa de Valentim. — Esse homem hoje é o meu melhor amigo e é o principal responsável por estarmos aqui, seu rato traiçoeiro. Você não tem direito a concessões, aceite os meus termos ou viva para a toda a eternidade cagando de pé.
— Sim monge, aceitarei seus termos se vocĂŞ aceitar um aditivo ao contrato. VocĂŞ tem me ofendido, me humilhado e mostra um prazer abissal em fazĂŞ-lo. Aceito isso porque, como vocĂŞ disse, Roderick Ă© minha Ăşltima esperança, mas ele Ă© sĂł uma esperança. Assinaremos o contrato e caso ele nĂŁo consiga me libertar eu caçarei todos aqueles que vocĂŞs amam e os matarei da maneira mais torpe possĂvel, nĂŁo antes de seduzi-los a me venderem suas almas. NĂŁo pensem que sĂł porque estou preso isso Ă© impossĂvel, tenho muitos pactos e Ifnir pode me ajudar.
— NĂłs nunca aceitarĂamos tais term… — estava dizendo Valentim quando foi interrompido do Paulo.
— Aceito — disse Paulo.
— É um contrato para três — disse o demônio.
— Aceito — disse Roderick.
— Vocês dois não podem estar falando sério. Nós não fazemos ideia se o Roderick pode mesmo destruir essas barreiras e ele nem faz ideia de como fazê-lo.
— Confie em mim, Valentim, ele pode.
— Confiar em você? Como você tem a audácia de me pedir isso? Você tem se feito de louco há dias, agora nos mostra que é mais importante do que se fazia parecer, foi chamado de gênio por esse demônio e agora age com um totalmente diferente.
— Justo, não confie em mim, mas pare bem para pensar, você está junto de Roderick há vários dias, acha mesmo que tem algo que ele não possa fazer?
— Vendo por esse lado…
— Eu o farei,Valentim, não importa como, apenas confie em mim — disse o cavaleiro.
— Tudo bem. Eu aceito!