Diógenes
estava atento e buscava ser o mais silencioso possÃvel, ele aguardava quieto há
alguns minutos. Sua besta estava pronta para disparar, ele só precisava esperar
pelo momento certo. Por entre as árvores, em um amontoado de arbustos, surgiu
um farfalhar, o rei aprumou a mira, mas, quando ia lançar a flecha,
surpreendeu-se com um chamado.
— Meu rei, trago notÃcias terrÃveis
— disse Leon, o chefe da cavalaria. Ele chegou de maneira tão impetuosa que
assustou Diógenes, fazendo-o lançar a flecha por impulso. Ela foi parar nos
arbustos e um grito de dor foi emitido.
— Olha o que você me fez fazer —
esbravejou o rei. — O que é tão importante que não podia ter me esperado voltar
da caça?
— Perdão, meu senhor, mas o que
tenho a tratar é de extrema urgência.
— Leon, você é o único cachorro
velho que ainda conservei dos antigos servidores do meu pai, isso porque você é
extremamente bom no que faz e sabe calar a boca quando é preciso. Eu espero,
realmente, que você continue no seu cargo, mas você sabe que eu tenho estado de
mau humor nos últimos dias, minhas caçadas são meu templo, meu bálsamo
restaurador, aqui eu posso realmente me acalmar. Como ousa trazer problemas
para cá?
— Eu conheço a importância de vossas
caçadas, por isso eu nunca havia me intrometido nelas antes, mas a situação é
excepcional.
— Pois desembuche de uma vez. Do que
se trata?
— Senhor, está havendo uma onda de
assaltos em massa, há bandoleiros à solta por todo o vosso reino. Eles estão
roubando tudo, cavalos, suprimentos, ouro, mulheres; atacam plebeus e até mesmo
membros da realeza. Dizem que os desertos de Sálvia estão vazios e que todos os
bandoleiros estão à solta, agindo por todo o reino. Alguns foram vistos aqui
nas imediações da floresta, não é seguro caçar enquanto a área não estiver
fortemente guarnecida. Ninguém sabe ao certo o porquê disso estar acontecendo.
— Eu sei — disse o rei desoladamente
—, é tudo culpa do Roderick, sempre é. Ele é o meu maior pesadelo encarnado.
Não sei como ele fez isso, mas sei que a culpa é dele. Eu só pensei que
demoraria mais para que os estragos começassem a aparecer. Onde estão os homens
que mandei disfarçados para ajudá-lo?
— Eles acabaram sendo abordados
pelos bandoleiros quando entraram em Sálvia, eles queriam roubá-los. Nossos
homens informaram que eram cavaleiros disfarçados, esperando que essa
informação os livrasse de serem molestados, mas parece que isso só fez com que
os bandoleiros se enfurecessem. Todos foram assassinados, com exceção de um,
que foi castrado e expulso de Sálvia. Foi ele quem trouxe toda essa informação.
— Que imbecil inútil. Mande
esquartejá-lo.
— Mas majestade, ele fez tudo o que
foi mandado, inclusive voltou para nos alertar.
— Já te expliquei o que acho de quem
me responde com “masâ€. Não quero discussão, mande esquartejá-lo. Por causa
desses inúteis, agora não temos mais o paradeiro de Roderick.
— Sim, senhor — consentiu
contrariado o cavaleiro. Os dois ficaram em silêncio por algum tempo, o rei
olhava para as árvores e Leon para o horizonte, até que ele novamente
lembrou-se da urgência da situação e disse: — Majestade, temos que ir, aqui não
é seguro.
— Não é seguro para esses
bandoleiros atrevidos. É hora de retaliação, chame os homens, vamos começar uma
caça aos bandidos, eles vão se lembrar o porquê deles morarem em um deserto
fétido. Quero homens enforcados em todas as ruas, se não houver bandidos o
suficiente, mande enforcar inocentes, eu não me importo, só quero que eles
voltem a lembrar o porquê me devem obediência.
— Como desejar, majestade — falou o
cavaleiro mecanicamente —, mas agora precisamos voltar para o castelo.
— Certo, estou só esperando pelo
garoto.
— Que garoto, majestade?
— Moleque! — gritou o rei. — Pode
parar de se esconder, a caçada acabou.
O farfalhar entre as árvores
aumentou, por entre os arbustos saiu Adrian, o novo aprendiz de bobo. Ele vestia
uma roupa esquisita, até mesmo para um bobo, usava um chapéu com chifres de
cervo, sua blusa e calça eram de pele de animal e em suas nádegas estava
pregado um papel com vários cÃrculos, formando um alvo. O garoto vinha mancando
e chorando, pois uma flecha estava cravada em sua perna.
— Vossa Majestade estava brincando
de caça com o garoto como alvo? — perguntou Leon surpreso.
— Sim. Hilário, não é? Para ser
sincero, eu queria ter acertado o traseiro dele, mas você me assustou e eu
acabei errando.
— Isso é muito perigoso, Vossa Majestade poderia tê-lo matado.
— Bobagem, eu tenho uma boa mira,
você que me atrapalhou.
— Senhor, ele é apenas um moleque,
sei que ele tem a boca grande, mas Vossa Majestade não acha que está indo longe
demais com essas brincadeiras?
— Tem razão, está começando a perder
a graça espezinhá-lo, melhor matá-lo de uma vez.
— Não... — disse desesperadamente o
cavaleiro.
— Como assim “não� — interrompeu o
rei furiosamente. — Quem você pensa que é para dizer não para mim.
— Vossa Majestade não me deixou
terminar. Matá-lo não é a melhor opção, eu tive uma ideia. Podemos mandá-lo
atrás de Roderick, não consigo pensar em punição pior. Tudo faz sentido,
majestade. O cavaleiro que voltou disse que Roderick sumiu nos desertos de
Sálvia, para além dele fica o reino de Quendor, onde o garoto já foi um
prÃncipe, se ele voltar para lá, poderá ajudar Roderick com a influência que
ele tem.
— Nada garante que Roderick tenha
ido para além dos desertos, ele pode ter voltado, ou mesmo ainda estar lá.
— Isso não importa muito, podemos
mandar que o garoto o procure até os confins do inferno. Veja bem, majestade,
podemos punir duas pessoas ao mesmo tempo, se mandarmos o garoto e o cavaleiro
que foi castrado irem atrás de Roderick para ajudá-lo, provavelmente eles vão
sofrer mais do que se simplesmente fossem mortos.
— Ah, ah, ah! — gargalhou o rei. —
Não pense que sou um imbecil, Leon, eu nunca seria rei se eu o fosse. Sei que
pensa que está ajudando esses dois, mas acaba de condená-los a algo pior do que
a morte, eles e a você também. Você comandará os homens que irão atrás de
Roderick, leve o garoto e o infeliz sem as bolas, você verá que teria sido
muito mais gentil tê-los deixado morrer. Roderick é maldito, tudo que está
perto dele sofre, vocês irão sofrer procurando-o e sofrerão mais ainda quando o
acharem. Você se arrependerá amargamente de ter tentado ajudar esse garoto.
O rei montou em seu cavalo e galopou
sozinho em direção ao castelo. Leon esperou que ele se distanciasse, então
apeou de seu cavalo e correu para ajudar Adrian, que havia caÃdo desfalecido. O
cavaleiro tirou a flecha da perna do garoto e amarrou um lenço no ferimento o
mais forte que conseguiu. O rapaz gritava de dor.
— Por favor, senhor Leon. Faça
aquilo que eu mesmo não tenho coragem de fazer, me mate e me livre do jugo
desse monstro.
— Não será mais preciso, creio que
encontrei uma maneira de fazer você sobreviver e ainda ver a sua famÃlia
novamente.
— Não brinque comigo, eu não tenho
mais esperanças.
— Pois é verdade, existe uma chance,
mas ela é bem remota. Eu convenci o rei a nos mandar ir atrás de Roderick, a
chance de sobrevivermos a isso é quase nula, mas é melhor do que zero.
— Qualquer coisa é melhor do que
continuar a servir de brinquedo para aquele louco. Não me parece muito perigoso
ir atrás desse homem.
— Você tem que aprender a deixar de
falar antes de pensar, sei que você ainda não entende o que é um Roderick, mas
já está na hora de começar a aprender. Eu servi junto a Aurélio Roderick, o pai
de Augusto, ele era um bom homem, honrado até a raiz do cabelo, mas era um
desgraçado amaldiçoado, tudo que ele fazia de bom gerava uma onda de coisas
ruins. Apenas respirar o mesmo ar que um Roderick pode ser perigoso, quanto
mais ir ajudá-lo em uma busca por vingança. Eu estou me borrando de medo, mas
esse é o único jeito de te ajudar. A culpa é minha de você estar nessa
situação.
— Não, mestre, a culpa é daquele
animal que se chama Diógenes.
— Nunca mais diga esse tipo de
baboseira de novo, não só você, mas outras pessoas podem sofrer se esse tipo de
afronta chegar aos ouvidos do rei. A culpa é minha sim, eu te treinei como meu
escudeiro, mas nunca deveria tê-lo levado para a corte, eu sempre soube que
você tem essa boca do inferno, por isso eu nunca mais havia pisado meus pés na corte
do rei. Eu não deveria ter atendido ao chamado para aquela reunião geral, não
com você, eu deveria ter dito que você estava doente, algo do tipo.
— Por favor, mestre, pare de se
culpar. O senhor sempre foi um bom amigo, me criou e me educou como a um filho,
toda essa situação é culpa minha. Você me alertou inúmeras vezes para que eu
permanecesse em silêncio, mas fui tolo demais e acabei desobedecendo. Eu queria
que ele me notasse, queria que ele me permitisse voltar para casa, por isso
tentei agradá-lo. Ele pedia conselhos a qualquer um, naquele
momento eu pensei: “que outra oportunidade eu terei para que ele me veja?â€.
Ouvi que ele era um homem sem sentimentos e tentei falar algo que, ao meu ver, agradaria um homem assim, mas falei um monte de bobagens.
Eu só queria voltar a ver minha mãe.
— Isso não importa mais, o que importa é que
vamos entrar em uma jornada sem volta. Quando mais novo eu pude ver com meus
próprios olhos os efeitos das ações de um Roderick, agora eu estou indo por
livre e espontânea vontade atrás de um, só posso estar maluco. Vamos passar por
infernos sem tamanho, mas se sobrevivermos, finalmente você estará livre e poderá ver sua mãe.