Era praticamente como Valentim
imaginara: uma criatura de cheiro nauseabundo. Sua pele era viscosa e
enegrecida, como a de um peixe sem escamas; seus olhos eram esbranquiçados e
sem pupilas; seus dedos eram finos a ponto de se parecerem com garras; dois
chifres adornavam sua testa; tinha orelhas grandes e pontudas; até mesmo
possuÃa cauda, parecida com a de um jacaré, mas, mesmo com tudo isso, não era
nem de longe o que o bandoleiro esperava dele. Enfim, acreditava que seria uma
criatura assustadora, um monstro imponente e assustador, mas a realidade era
bem diferente.
— O que é isso? — indagou Valentim
enquanto entrava no quarto.
— Eu também estou surpreso — disse
Roderick. — Então este é o poderoso demônio sobre o qual você havia nos
comentado?
— Sim, senhores, apresento-lhes
Apollion, a besta — disse Paulo enquanto apontava para o dono do casebre.
— Eu não estava esperando por
visitas — disse o demônio enquanto saÃa do quarto e acendia algumas velas na
entrada do casebre.
— Ele é fanho? — perguntou Valentim.
— Ele também me pareceu fanho! —
disse o cavaleiro.
— Eu não havia reparado — disse
Paulo, afetando surpresa.
— Vocês gostam de biscoitos? —
perguntou o demônio, voltando com uma tigela cheia deles. Roderick e Valentim
recusaram, mas Paulo aceitou efusivamente.
— Você sabe mesmo como ser um bom
anfitrião, seu diabinho. Sabe que eu não resisto a esses biscoitos, mas seria
melhor se eles viessem acompanhados de uma boa bebida.
— Que sorte a sua, eu tenho uma
ótima bebida no porão — disse a criatura enquanto gargalhava animadamente.
— Mentira sua, seu ardiloso — disse
Paulo de maneira extremamente expansiva.
— Eu juro que é verdade, vou buscar
e já trago para vocês provarem — disse e saiu correndo alegremente ao porão.
Valentim e Roderick olhavam estupefatos para o monge, que fingia não estar
atento, até que ele resolveu quebrar o silêncio.
— Ele é um ótimo camarada, bem
prestativo.
— Como assim? Não era para ele ser
um demônio, uma criatura sem coração e torpe? — quis saber Valentim.
— Por que você achou isso?
— Ora bolas! Primeiro porque eu
nunca ouvi falar bem de demônio nenhum. Segundo que você mesmo nos estava
dizendo que ele era perigoso e coisas do tipo.
— Foi mesmo? É, talvez eu possa ter
exagerado um pouco.
— Um pouco? Ele tem menos de sete
palmos de altura, é fanho, tem um sorriso estúpido e nos ofereceu biscoitos.
Essa história está muito mal contada. De que espécie de demônio é esse? Isso me
cheira a mais uma das suas armações.
— Não tem armação nenhuma, Valentim,
eu disse que traria vocês ao reino dos demônios e aqui estão vocês. Eu também
disse que apresentaria vocês a demônios e estamos na casa de um.
— Mas no que ele poderá nos ajudar,
Paulo? — indagou Roderick. — Ele não me parece muito útil.
— Olha aqui vocês dois, ele pode
parecer um anão, ser magrelo, feioso, fedorento, asqueroso, fanho e ser tão
esquisito que dá vontade de lhe dar uma surra, mas ele é um demônio, então deve
servir para nos ajudar. Por que vocês estão fazendo essa cara? Ele está atrás
de mim, não está?
— Estou — disse o demônio com uma
voz mais fanha que o normal e chorosa. Ele deixou um odre com bebida cair ao
chão e saiu correndo para o porão aos prantos. Paulo apanhou a bebida e tomou
um trago.
— Nossa, essa é boa mesmo. Provem
aqui.
— O tal de Apollion estava chorando
— disse Roderick. — Não seria melhor ir lá falar com ele? Parece que você o
ofendeu.
— Ah, não se preocupe, já eu vou
falar com ele. É sempre assim, ele é muito emotivo. Bebam! Esperem aqui que eu
vou buscá-lo.
O cavaleiro e o bandoleiro recusaram
a oferta, Paulo então tomou o odre inteiro e desceu ao porão. Depois de alguns
minutos ele subiu acompanhado de Apollion, fazendo-lhe cócegas e contando
gracejos. O demônio gargalhava e parecia não ter mais nenhum traço de rancor
pelas ofensas. O quarto tinha uma pequena mesa com meia dúzia de bancos. Paulo
convidou todos a se sentarem.
— Bom, cavalheiros, agora que
estamos todos sentados, vamos falar de negócios. Apollion, trouxe-lhe esses
dois homens para que possam negociar com você, mas creio que apenas o cavaleiro
o queira.
— Em que posso ajudar vocês? Espero
que saibam que os amigos de Paulo são meus amigos também.
— Obrigado — disse Roderick. —
Preciso urgentemente de informações.
— O que nós precisaremos pagar para
receber informações? — indagou Valentim, sempre desconfiado.
— Se eu puder ajudar com essas
informações, o farei sem paga. Se pensam que vou lhes roubar a alma apenas por
conversarem comigo, estão enganados.
— Então quer dizer que pode roubar
nossas almas, não com conversa, mas com outro artifÃcio?
— Não se preocupe com isso. Senhor?
— Valentim, me chamo Valentim.
— Não se preocupe com isso, senhor
Valentim. Nós demônios não conseguimos tirar a alma de ninguém sem um contrato.
— Como assim?
— Significa que nós fazemos uma
proposta, que esteja ao alcance dos nossos poderes, se a pessoa aceita, aà sim
podemos ser donos da alma da pessoa.
— Conta a história toda, Apollion —
disse Paulo enquanto tentava roer as unhas dos pés. — Esses dois não sabem de
quase nada, sobre a guerra nem sobre vocês.
— Então, meus amigos, muita atenção,
pois vocês vão ouvir a história de alguém que esteve lá e presenciou tudo.
— Que história é essa? — indagou
Roderick confuso.
— A história do porquê existe esse
reino dos demônios e como as pessoas fazem para vir aqui para receberem poderes
deles.
— E por que precisamos saber disso?
— perguntou Valentim com desdém.
— Para que depois, quando estivermos
falando sobre quem raptou as mulheres do Augusto, não fiquem perguntando
asneiras como a que você perguntou agora — disse Paulo enquanto finalmente
conseguia arrancar um pedaço de unha que estava encravado em seu dedão.
— Que mulheres, Valentim? —
perguntou Apollion.
— O Augusto vai falar com você sobre
isso depois da sua história — enquanto falava, Paulo acabou cuspindo o pedaço
de unha, que foi cair na boca de Valentim, este, por sua vez, irritou-se e, só
com muito esforço de Roderick, foi tirado de cima do monge.
— Vocês são engraçados — disse
Apollion enquanto dava uma risada tão ridÃcula que até Valentim esqueceu a
raiva que teve para ficar constrangido por ele. — Não é normal que alguém
chegue aqui sem saber de nada. Aqui, no reino dos demônios, normalmente só
aparecem monges. Aqui não é um bom lugar para pessoas desavisadas. Tiveram
sorte de ter parado no meu território, antes das barreiras.
— Eles não tiveram sorte, tiveram a
mim como guia, que, além de não querer me arriscar com outro demônio que não
seja você, também não sei como fazer. Meus parcos estudos só me permitem chegar
até você
— Barreiras? Do que vocês estão
falando? — quis saber Valentim.
— Nossa! Quer dizer que vocês não
sabem nem sobre as barreiras?
— Nada mesmo, eles são puros e
virgens no assunto.
— Bem, então deixe-me começar. Há
muito tempo atrás, numa época em que vocês humanos ainda nem existiam, uma
guerra foi deflagrada. Nós, os demônios, querÃamos ser os donos do universo,
então nós nos unimos para que esse objetivo se tornasse realidade. Viajamos
pelos mundos e pelos planos, nos apropriando das almas de seres como vocês. O
problema é que alguns dos nossos irmãos, os anjos, não queriam deixar que essa
nossa ambição se concretizasse. Eles formaram um exército para nos enfrentar.
Nossa batalha foi na lua desse planeta aqui, é por isso que vocês podem vê-la
despedaçada do jeito que está. Os anjos não eram tão poderosos, mas estavam em
maior número, fomos derrotados e feitos prisioneiros nesse planeta, que acabou
virando o reino dos demônios.
— Então aqui já foi um lugar normal?
— quis saber Roderick.
— Sim, esse já foi um planeta como o
que vocês moram. Os anjos preferiam ter nos matado, mas não lhes foi permitido
tomar nossas vidas, então eles criaram as barreiras de luz.
— Você se refere àquela gigantesca
parede de luz?
— Sim, exatamente. Embora ocupe toda
a nossa visão, não dá para se ter a real dimensão dela apenas olhando. As
barreiras de luz são paredes circulares, elas vão do chão até os confins do
firmamento e são praticamente intransponÃveis. Dentro desse cÃrculo de luz,
está aprisionado um demônio. Dentro dele há uma outra parede circular de luz,
dentro dessa também há um demónio e também tem outra parede. Ou seja, são
diversos cÃrculos luminosos, de vários tamanhos, os menores ficam dentro dos
maiores, até o último, que fica no centro de todos os cÃrculos. Quanto mais
forte é o demônio, mais próximo do centro das paredes circulares ele está. No
último cÃrculo está nosso mestre, o poderoso Magog. Seu cÃrculo de luz é tão
pequeno que ele tem de ficar em pé.
— Então vocês ficam presos entre um
cÃrculo grande e outro pequeno?
— Exato. CÃrculos, dentro de
cÃrculos e dentro de cada um deles há um demônio.
— O que essas barreiras têm de tão
especial para fazer com que vocês não consigam passar? — indagou o cavaleiro.
— Essas barreiras foram feitas com a
junção do poder espiritual dos anjos. As barreiras dividem os demônios por
força, o mais poderoso demônio, que é o mestre Magog, foi preso pela barreira
mais poderosa. Ela é pequena, mas possui uma grande condensação de poder
espiritual. Logo após, vem a barreira do grande general Hazeroth, que também é
muito forte, mas não tão forte quanto a de Magog. O grande mestre seria capaz
de romper as outras barreiras, mas não a sua, o general também pode romper
muitas barreiras, mas não a sua nem a de Magog. Assim, quanto mais fraco for o
demônio, mais fraca é a sua barreira.
— Quer dizer que nós também estamos
dentro de uma barreira? — quis saber Valentim.
— Não, nós não — disse Apollion a
contragosto.
— Como assim? Você não é um demônio
como os outros? Por que não está preso como eles?
— Ah... Bem... É que os anjos...
Sabe... Como eu posso dizer... Eles decidiram por não me prender.
— Mas por quê? Você por um acaso
traiu os outros demônios?
— Claro que não. Eu nunca teria
coragem de trair o poderoso Magog.
— Então por quê?
— É difÃcil explicar.
— É porque os anjos o acham
inofensivo — disse Paulo antes de cair na gargalhada.
— Ah, Paulo, para com isso, você
disse que não ia mais brincar com a minha cara — disse Apollion com a voz
chorosa.
— Espera um pouco, isso é verdade,
Apollion? — indagou Valentim.
— Não, claro que não. Bem, não é
exatamente como esse bobão está dizendo. Os anjos fizeram as barreiras, mas, no
final, eles estavam muito exaustos para fazer outra, então eu acabei sem. Mas
antes de irem embora, eles disseram que eu não deveria sair desse planeta e que
futuramente eles viriam fazer uma barreira para mim.
— Isso faz quanto tempo? — perguntou
Paulo fazendo graça.
— Bem... Faz um tempo…
— Quanto tempo? — o sorriso em sua
boca estava cada vez maior.
— Passaram-se anos, tudo bem para
você? Passaram-se anos, agora deixe-me terminar a história.
— Vamos lá, seja mais exato. Eu sei
que você consegue.
— Por que você está fazendo isso? —
indagou Apollion visivelmente irritado.
— Eu quero chegar a um ponto. Quantos
anos?
— Dezoito mil duzentos e setenta e
três anos e duzentos e cinquenta dias. Por um acaso você quer saber as horas e
os minutos também?
— Não precisa, munido dessa
informação eu consigo concluir o quanto eles te consideram perigoso — mal
terminou de falar, Paulo começou a gargalhar tão expansivamente que Valentim e
Roderick tiveram que se esforçar para não acompanhá-lo.
— Você vira um imbecil quando está
bêbado. Maldita hora na qual eu te ofereci bebida. Aliás, maldita a hora foi a
que eu comprei sua alma. Se eu pudesse voltar atrás, eu o faria — após dizer
isso, Apollion se entregou aos prantos e correu para o porão da casa.
— Que diabos foi isso? — perguntou
Valentim.
— Quem poderia imaginar uma história
como essa? — disse Roderick reflexivo.
— Ai meu Deus, eu vou me mijar de
rir. Ah, que droga, mijei. Já eu volto. Vou logo antes que eu faça um serviço
mais barroso.
— Calma aà — disse Valentim. — Você
tem muito o que nos explicar. Nos disse que traria até um demônio perigoso, mas
na verdade nos trouxe a um que é anão, fanho e tão inofensivo que os anjos que
prenderam ele nem se deram ao trabalho de fechar sua cela. Não fosse só isso,
agora ficamos sabendo que ele comprou sua alma, isso é verdade? A troco de quê,
Paulo? O que você está planejando?
— Bom, eu planejava ir lá fora antes
de me cagar, mas agora já é tarde para isso. Quanto ao Apollion, vocês não
deviam subestimá-lo.
— Então é verdade? — perguntou
Roderick. — Apollion comprou sua alma?
— Sim, ele comprou. Quando eu morrer
ele vai ter direito sobre ela.
— E o que ele te deu em troca?
— A coisa mais preciosa que eu
tenho.
— Desembucha logo de uma vez — disse
Valentim.
— Meu caro e apressado amigo, o que
ele me deu foi uma habilidade, algo tão extraordinário que faz inveja ao mais
rico dos reis.
— O quê, desgraçado? Fala logo.
— Ele me deu…