As pessoas são passageiras, como tudo no mundo, algumas deixam de existir antes mesmo de nascer, outras vivem até muitos anos após sua morte. A lembrança é a última coisa que deixamos, quando a última pessoa que se lembra de nós se vai, ou nosso último ato desaparece da história, temos nosso derradeiro fim. Podemos deixar lembranças simples, como a de um empecilho que foi sumariamente descartado ainda na sua formação, ou a de um grande feito que perdura por gerações, também há os que incutem um sentimento muito forte. Laerte enraizou no peito de Marcel a semente da amizade e ela era tão profunda que, mesmo após vinte anos de sua morte, ele ainda era o melhor amigo do outro. Saber que o diário era parte de Laerte na Terra, fazia com que Marcel se sentisse alegre.
Passou algum tempo folheando o diário a esmo, imaginando a mão do amigo escrevendo aquelas linhas e pensando em como as coisas são efêmeras. Ambos têm praticamente a mesma idade, um ou dois anos de diferença, mas um estava ali, ainda poderia escrever naquelas páginas, mas outro estava sob a terra, suas mãos já não podiam mais transmitir seus pensamentos. Onde está a justiça no mundo? Um pedaço de papel sem vida pôde durar mais que um homem justo. Marcel apreciava o diário, mas se recusava a começar a lê-lo, adiava o prazer de poder conversar com o amigo. Depois de algum tempo assim, viu que era inevitável começar, então assim o fez.
O amigo não tinha uma letra muito bonita, talvez essa fosse a primeira decepção que Marcel teve a seu respeito, mas uma coisa ele tinha feito bem, a organização. Tudo no diário era bem estruturado e datado. Pelo que estava escrito, provavelmente esse não era o único diário que ele tinha, havia outros anteriores a esse, Leon havia escolhido, especificamente, o diário da vida adulta de seu filho para entregar a Marcel. Era o último diário de Laerte e coincidia com o momento em que ele conheceu Marcel, até o último dia antes da sua morte. O velho era um desgraçado, mas, naquele momento, Marcel lhe estava grato.
Não demorou muito para que ele encontrasse a página que remetia ao primeiro encontro entre eles:
13 de julho de 1540
Estou entediado, sou um cavaleiro em tempos de paz. Adoro Dioniso, mas devo admitir que ele tem tornado nossa vida como cavaleiro bem tediosa.
Já faz mais de três meses que não somos destacados para nenhuma luta, todos os reinos rivais já emitiram notas de servitude ao rei. Mas também, pudera, o tio Aurélio causa medo em todo mundo, saber que vai enfrentar um Roderick torna qualquer luta uma ilusão. Isso e esses templos sexuais, Dioniso sabe o que faz, conquistar as pessoas pela libidinagem é mais fácil que pela espada.
Todos estão se sentindo como eu, somos cavaleiros acessórios. Até mesmo meu pai está tentando encontrar meios de sair do tédio. Hoje chegou para me falar de um louco que quer se tornar cavaleiro. Ele parecia bem entusiasmado ao falar do rapaz, mas pelo que tenho ouvido, não passa de um mandrião.
Será que meu pai não tem mais o que fazer do que perder tempo com esse tipo? Enfim, me mandou ficar alerta em relação ao rapaz, disse que ele poderá se tornar um cavaleiro. O engraçado é que ele me disse isso, mas ao rapaz disso o contrário. O ofendeu de todas as maneiras e o desencorajou do sonho de ser cavaleiro, aparentemente o está testando. Pelo que ouvi falar, acho muito difÃcil que ele passe nesse teste.
***
Aquilo não fazia sentido. Embora fizesse mais de vinte anos, Marcel lembrava-se como se tivesse passado há poucas horas. Dia 26 de junho foi o dia em que ele saiu de casa para completar o sonho do pai de ter seu filho sagrado cavaleiro, que, para isso, tinha feito empréstimos e penhorado tudo o que tinha sem contar a Marcel. Dia 6 de julho foi quando ele havia chegado à cidade e se apresentado a Leon, foi nesse momento que o chefe da cavalaria disse que era impossÃvel ser sagrado cavaleiro sem vir de famÃlia nobre, mas que Marcel poderia se tornar um soldado do rei. Depois disso Marcel lembrava bem de ter passado seis dias gastando as economias, pois já tinha um emprego garantido, mesmo que não fosse de cavaleiro. Foi no dia 12 de julho que Marcel descobriu que seu pai havia sido assassinado por um usurário credor da conta que o velho homem havia adquirido para tornar o filho um cavaleiro. Assim que soube da morte do pai, Marcel se viu impelido a realizar o sonho do camponês, então ele foi até Leon e recusou o emprego de soldado, pois só poderia sair de lá sagrado cavaleiro. Leon foi rude e o expulsou, mas Marcel garantiu que voltaria todos os dias, até virar cavaleiro.
A data do relato de Laerte até batia com a situação, pois foi um dia depois de Marcel ter enfrentado Leon, mas duas coisas estavam fora de ordem. A primeira é a fala de que Leon estava animado com a presença dele lá, muito pelo contrário, até os dias atuais o velho cavaleiro sempre deixou claro que tinha ojeriza de Marcel, aquelas linhas destoavam da realidade. A segunda coisa era o fato de que Marcel só conheceu Laerte 14 dias depois, no dia 26 de julho, e o amigo parecia nunca ter ouvido falar nele. Segundo esse relato, Laerte não só já tinha ouvido falar nele, mas tinha pouca estima pelo rapaz que tentava se tornar cavaleiro. Isso não fazia sentido. Seriam as páginas desse diário falsas? ImpossÃvel. Aquele era um trabalho muito extenso, a letra era diferente da de Leon, pedir para fazer uma falsificação daquelas seria exorbitantemente caro, pois poucas pessoas sabiam ler e escrever, então isso tornava escrever um diário tão longo algo muito oneroso. Por que o chefe da cavalaria gastaria seu tempo e dinheiro para criar uma falsificação para enganá-lo? Marcel não era ninguém, era apenas um cavaleiro insignificante. O diário era legÃtimo.
Marcel se apressou em continuar a leitura. Os quatorze dias seguintes pareciam ter apenas bobagens sobre o cotidiano do amigo, que seriam leitura prazerosa em outra situação, mas que Marcel apenas deixou de lado e foi direto para o dia 26 de julho, quando eles se encontraram.
26 de julho de 1540
É fato concreto, meu pai está louco. O ócio o enlouqueceu. Não fosse eu testemunha direta, diria que é impossÃvel. Inicialmente eu pensei que se tratasse de interesse passageiro, mas de uns dias para cá ele se tornou louco pela história do camponês que quer se tornar cavaleiro. Todos os dias ele faz reuniões com os cavaleiros a respeito dele. Ele manda que os cavaleiros o execrem diariamente e ele mesmo o faz com toda a gana e ferocidade possÃvel, mas o desgraçado não desiste. Ele ficou admirado com a obstinação do jovem, então resolveu investigar. Não acho algo muito adequado.
Os espiões descobriram que o pai do rapaz era um dos mais devotos servos do rei Dioniso, meu pai, que também é um desses, logo se animou com a história. Infelizmente o miserável adquiriu toda sorte de empréstimos para conseguir dinheiro para que o filho, um rapaz chamado Marcel, se tornasse cavaleiro. Esse rapaz veio à cidade, mas meu pai lhe afirmou que apenas jovens de famÃlia nobre podem se tornar cavaleiros, mas que ele poderia se tornar um soldado. O rapaz, que aparentemente não tinha o mesmo sonho do pai, acatou servilmente a imposição e resolveu gastar todo o dinheiro que seu pai adquiriu a custos com bebidas e prostitutas. Nada de novo, essas histórias são comuns por aqui, mas uma tragédia aconteceu. Um usurário, a quem o pai do rapaz devia uma fortuna, foi cobrar o que lhe era devido, o velho camponês não tinha dinheiro, o cobrador, irado, o matou. Agora que o tal de Marcel soube que seu pai morreu por sua causa, está com peso na consciência e teima diariamente em ser sagrado cavaleiro para cumprir a promessa feita ao pai.
Meu pai, ao ouvir essa história ficou furioso e animado. Furioso com o maldito usurário, por isso ordenou que o homem fosse trazido aqui para o reino, onde foi devidamente açoitado até a morte por meu pai. Ele sempre tratou com muita severidade a covardia, principalmente a feita contra homens fiéis ao rei, embora, eu deva admitir, foi a primeira vez que o vi tão furibundo em relação a isso. Animado, ele ficou com a motivação do garoto, ele me disse que esse tipo de motivação, se for legÃtima, pode vir a formar um grande cavaleiro.
É essa a verdade, meu pai quer tornar um camponês em um cavaleiro. Acudi que era loucura, as pessoas não aceitariam, mas ele me lembrou que a regra já foi quebrada outras vezes, mas que ele só faria se o garoto se provasse digno. Para tanto ele pediu minha ajuda, pois, por coincidência, até hoje eu nunca vi o rapaz, nem ele me viu. Ele quer que, hoje à noite, após ele dar a maior surra e prometer matar o rapaz se ele for mais uma vez lá, eu vá encontrá-lo, onde quer que ele se esconda, e ofereça comida. Parece que o garoto está sem comida e não tem onde dormir, por isso está dormindo na rua. Meu pai quer que eu me aproxime dele e finja que eu não sei sobre a situação dele, me pediu para ser agradável. Ele quer saber o que genuinamente está no coração de Marcel, se ele está realmente arrependido e se ele quer realmente se tornar um cavaleiro. Meu pai quer que eu minta porque ele acredita que o rapaz só será sincero se falar com alguém que não saiba da história, pois, na cabeça de meu pai, se eu mostrar que sei que ele quer ser cavaleiro ele poderá mentir. Se o rapaz abrir o coração e se mostrar arrependido, eu devo prometer que ele se tornará um cavaleiro amanhã.
Enfim, tolices de velho, mas fazer o quê? Ele é meu pai e meu superior, devo obedecê-lo e falar com esse cão. No futuro, quando eu tornar essas páginas um livro sobre minhas histórias de cavalaria, provavelmente terei que omitir essa parte para preservar a integridade de meu pai. O futuro provavelmente vai mostrar que o velho está errado e que ajudar esse rapaz será o maior erro de sua tão gloriosa carreira.
***
Marcel não acreditava no que lia. Pior que isso, ele acreditava. Um dos momentos mais importantes da sua vida foi uma farsa. Ele se lembrava de estar naquele beco escuro e apodrecido, o braço quebrado, nenhum tostão no bolso e uma fome de três dias sem se alimentar de algo que preste. Lembrava da figura de Laerte aparecendo majestosa. Inicialmente ele pensou que fosse ser assassinado, para deixar de perturbar Leon, mas logo o cavaleiro o tranquilizou, disse que sempre ia ali naquele beco para jantar. Agora, depois de saber a verdade, ele via como aquilo não fazia o menor sentido. Laerte estava com um embrulho que daria para alimentar três pessoas e por que diabos ele jantaria em um beco escuro? Como ele foi tolo. O cavaleiro foi mandado pelo velhote Leon, agora estava claro. O maldito velho fez uma farsa, a lembrança de conhecer seu melhor amigo fora uma maldita farsa. Laerte foi gentil com ele por obrigação. Aquilo foi devastador.
Por que o maldito velho escondeu tudo por todos esses anos? Até mesmo vingar-se do assassino de seu pai. Por que o desgraçado mostrou esse maldito diário agora? Será que ele se divertia em fazê-lo um joguete? A vontade era de esganar o lazarento. O que aconteceu depois? A curiosidade era grande, passou a página.
26 de julho de 1540
Estou exausto. O dia foi extenuante, tudo por conta da veleidade do meu pai. Como ontem, quando eu dividi a janta com o rapaz, ele se mostrou arrependido, tive que prometer que ele viraria um cavaleiro.
Sim. Meu pai conseguiu o que queria. O rapaz se mostrou digno da honra dele, embora ele tenha chorado enquanto contava sua história, devo admitir que o achei desprezÃvel. Não sei o que meu pai viu nele, além do fato de ser teimoso como uma mula. Enfim, talvez essa qualidade seja comum ao velhote e ele tenha se solidarizado.
O mais chato de toda essa situação é que fui eu quem tive que fazer tudo. Para que uma pessoa sem famÃlia nobre vire um cavaleiro, deve haver alguém que jure solenemente o contrário. Meu pai me mandou fazê-lo, mas advertiu que não seria o suficiente, pois como o caso já estava ficando bem famoso, poderia haver pessoas que contradissessem a minha palavra. Eu teria que lutar pela minha honra e mortes inúteis aconteceriam. Por isso, meu pai mandou que eu fosse atrás do rei Dioniso para que ele jurasse que o garoto era um nobre, afinal, pessoa alguma pode desdizer o rei.
Essa história está cada vez mais complicada. Agora até mesmo o rei foi envolvido nela, apenas por teimosia de meu pai. Espero, do fundo do coração, que isso não se volte contra ele.
O tal de Marcel agora é um cavaleiro, meu pai me obrigou a ajudá-lo no treinamento e me mandou ser seu amigo. Meu pai, meu pai. Às vezes você me põe em cada situação odiosa, a sua sorte é que o respeito profundamente, caso contrário, jamais toleraria isso.
***
Então até mesmo a presença do rei no dia de sua condecoração como cavaleiro foi obra de Leon. Marcel sempre imaginou que aquele favor havia sido pedido por Laerte, mas agora, raciocinando bem, ficou claro para ele que o amigo ainda era um garoto como ele, naquela época ele não teria prestÃgio nenhum para pedir um favor tão grande do rei. Talvez apenas o mestre da cavalaria e Aurélio tivessem tamanho poder. Como ele pudera ser tão tolo? Sempre foi Leon o arquiteto-mor de sua ascensão a cavaleiro. Mas por quê? É verdade que o velho cavaleiro gostava de arquitetar planos e que ele também não mostrava seus sentimentos de maneira comum, mas tudo aquilo apenas por empatia? Quer dizer que o velho e poderoso cavaleiro viu um garoto pobre, de história triste e resolveu arriscar sua reputação para ajudá-lo? Tolice. Havia algo por trás disso. Laerte era muito inteligente, é evidente que em algum momento ele desconfiou disso também. Nesse diário deve haver o motivo, tenho certeza que, em algum momento, Laerte descobriu. Onde quer que estivesse, ele acharia.
Marcel passava as páginas do numeroso diário com uma leitura apenas superficial, procurando as pistas que tanto almejava:
26 de agosto de 1540
Marcel não é tão estúpido quanto eu imaginava, na verdade ele é bem divertido. Os homens, que inicialmente o humilhavam e execravam, agora divertem-se com sua presença. Ele sempre tem um chiste boêmio ou uma anedota promÃscua, o que é sempre bem-vindo entre homens de guerra. Devo admitir que também rio bastante de suas tolices.
O que mais me espanta é meu pai também gostar disso. Ele não demonstra, pelo menos não para os outros, mas eu, que o conheço mais que ninguém, sei quando ele ri com os olhos. Dia desses Marcel contou uma história de, quando bêbado, ele acordou em uma cama com uma meretriz, quis sair enquanto ela ainda dormia, com medo de ainda não ter pago o serviço, mas, na hora que tentou pegar sua espada, acabou pegando a dela, o pior, segundo ele, é que a espada era de couro. Os homens riram até se mijarem, nesse momento eu percebi que meu pai saiu apressadamente para que os outros não vissem que ele queria rir.
Não é comum meu pai gostar assim de alguém, há algo estranho nessa história.
12 de outubro de 1540
Estou surpreso com o quanto mandrião do Marcel é talentoso. Hoje ele se destacou nos treinamentos contra cavaleiros experientes. Seria disso que meu pai falava quando disse que uma grande motivação pode criar um grande cavaleiro? Se for ou não, o estranho é que meu pai está bem curioso em relação a isso. Ele tem assistido aos treinos nos quais Marcel participa, o que normalmente ele não faz mais, pois é sempre muito ocupado.
Nem mesmo nos meus ele foi tão atento, isso me dá um pouco de raiva.
23 de dezembro de 1540
Hoje fiz algo que não me orgulho. Dei uma surra no Marcel, acho que o pobre desgraçado nem vai conseguir treinar amanhã. A culpa foi dos homens, eles ficaram me incitando, diziam que ele está ficando tão bom que poderia bater até em mim, então eu o chamei para um duelo para provar o contrário.
Pensando bem, até esse momento, nós todos estávamos levando na brincadeira, mas, por algum motivo, meu pai foi assistir à luta. Há quanto tempo meu pai não assistia a um duelo meu? Nem sei mais dizer. O que importa é que ele foi. Ele estava muito atento.
Eu ainda comecei brincando com Marcel, mas o desgraçado estava realmente muito bom, quase conseguiu me acertar. Nesse momento eu tive a impressão que meu pai vibrou. Deve ter sido impressão minha, mas aquilo me incomodou. Passei a levar o duelo a sério, fui muito forte, mesmo com uma espada de madeira, pode-se ferir muito um homem. Os homens tiveram que me segurar. Marcel cuspia sangue, mas, por sorte, ele levou na esportiva, riu bastante, os outros homens riram da surra que ele levou e o clima voltou a ficar leve.
Olhei para os lados procurando, mas meu pai já não estava lá, ninguém o viu sair.
27 de fevereiro de 1541
Tivemos uma luta hoje. O reino de Gesus nos atacou, aparentemente um ataque suicida. Ele é um reino muito pequeno, mas, aparentemente, muito puritano e conservador. O Deus deles parece que não gosta que as pessoas façam festas e celebrem. Não entendo bem por que o seguem, mas eles o seguem. Aparentemente a polÃtica de devassidão do rei Dioniso é uma afronta à cultura deles, por isso, os homens de lá resolveram lutar em nome do seu Deus. Foram massacrados.
Nossos homens estão muito felizes com Marcel. Ele conseguiu uma coisa que eles precisavam muito. Acontece que o rei Dioniso proÃbe rigorosamente qualquer tipo de estupro, para ele, o ato sexual é sagrado e não deve ser feito contra a vontade de ninguém. Depois da batalha contra os homens de Gesus, nossos cavaleiros e soldados queriam extravasar suas tensões sexuais, mas era proibido abusar das mulheres de nossos detratores. Marcel deu um jeito nisso. Aparentemente homens puritanos e conservadores criam mulheres insatisfeitas e frustradas, segundo ele, não foi difÃcil convencê-las a se divertir com os homens.
Até mesmo o rei Dioniso, que é um profundo adorador da libidinagem, lhe parabenizou depois disso. Os homens festejaram em seu nome e muitas mulheres encontraram um novo lar.
Devo admitir que não fiquei muito animado. Devo estar entediado. Meu pai quer falar comigo amanhã sobre meu relatório de guerra.
27 de fevereiro de 1541
Não tenho nem palavras para definir a injustiça da vida. Meu pai, o homem que me colocou no mundo, aquele que me criou e treinou, não me deu nenhuma palavra de incentivo pela vitória contra Gesus. Eu fui o comandante principal da investida, por minhas habilidades tivemos pouquÃssimas baixas e quase nenhum gasto com material, mas, mesmo assim, nada. Nenhuma palavra. Todo o meu relatório foi jogado no lixo e a única coisa que ele disse foi: “Marcel agiu bemâ€, Isso, para o meu pai, é um elogio que ele só daria ao mais merecedor dos heróis.
Aliás, não foi assim. O que meu pai disse foi: “Leonel agiu bemâ€. Como ele viu que eu fiquei confuso, ele se corrigiu: “Digo, Marcel agiu bem!â€. Isso foi muito estranho. Leonel é o nome do meu falecido irmão, morto no parto junto com minha mãe. O velho está com a cabeça confusa.
Será que ele vê em Marcel o filho perdido? Ou foi apenas um ato falho? Não me lembro de, em qualquer outro momento da vida, ter visto ele se confundir.
25 de abril de 1541
Aconteceu de novo, meu pai chamou Marcel de Leonel. Isso foi hoje pela manhã depois de uma discussão comigo. Ele acredita que Marcel já está pronto para ser um comandante, coisa que eu fui terminantemente contra. Não faz nem um ano que ele se tornou cavaleiro, nenhum de nossos comandantes virou um tão rápido, muito menos eu. Adverti que os comandantes veriam como uma ofensa. Eu via isso como uma ofensa. No entanto, o velho senil persistiu e me disse: “Leonel será comandante de um batalhão, isso não é uma reunião para conselhos, mas sim para avisos. Avise aos homens e aos comandantes, aqui está a lista do seu destacamento. Agora saia daqui, eu estou ocupadoâ€.
Ele já tinha uma maldita lista escrita. Provavelmente estava pensando nisso há dias. O que me deixou com mais raiva foi o fato de que o batalhão de Marcel foi construÃdo com o nome de muitos dos meus homens e, quando fui lhes avisar, eles não ficaram tristes, pelo contrário, animaram-se desmedidamente.
Já é a segunda vez que meu pai confunde o nome de Marcel, isso não é apenas coincidência. Ele quer tornar Marcel a figura de Leonel. Marcel é dois anos mais novo que eu, a idade dele é condizente com a de meu irmão. Algum tipo de peso na consciência está fazendo com que meu pai aja como um imbecil. Preciso advertir ao rei.
26 de abril de 1541
Algo está errado. O rei Dioniso, sempre solicito e complacente para comigo, não quis ouvir meus alertas. Inicialmente eu pensei que fosse em respeito ao meu pai. Que o rei estivesse protegendo seu mais leal cavaleiro e visse na minha atitude uma espécie de traição. Mas, pensando bem, ele estava esquisito, não mostrava estar com raiva, mas sim constrangido. Me mandou esquecer essa história e aceitar a ascensão de meu irmão.
Ele usou especificamente o termo, meu irmão. Não é possÃvel que dois homens tão sóbrios tenham errado a mesma coisa. Devo investigar.
30 de abril de 1541
Tentei achar a parteira, mas, por azar ela já não está mais no reino. Aparentemente, depois da morte de minha mãe no parto, ela se exilou em respeito à dor de meu pai. Estou investigando para onde ela foi, mas é difÃcil encontrar pistas de algo que aconteceu há quase duas décadas.
Hoje eu tive que recorrer ao homem que nunca pode mentir, meu padrinho, Aurélio Roderick. Infelizmente, debalde. Quer dizer, não totalmente. Ele não me disse nada sobre minha mãe, meu finado irmão ou sobre a parteira, não porque não soubesse, mas sim porque disse ter prometido nunca me contar nada a esse respeito. Ou seja, há algo escondido nessa história.
1 de setembro de 1541
Descobri, finalmente descobri para onde a parteira foi. Não foi barato e nem fácil, mas creio que dessa vez é legÃtimo. Depois de cinco pistas falsas, acredito que dessa vez não seja um logro, deixei bem claro qual seria minha retaliação se aquele meliante estivesse me enganando. Ele não seria tolo.
Já pedi dispensa do serviço por algumas semanas, vou viajar em busca dela. Aparentemente a velha foi morar no interior.
7 de setembro de 1541
Não sei o que fazer depois de tudo que descobri. Realmente não sei. Toda a minha estrutura está abalada.
O vilarejo da velha senhora era muito simples e humilde, havia poucas pessoas lá e não me foi difÃcil achar o endereço da velha mulher. Aparentemente ela morava em uma pequena fazenda, mas, para minha tristeza, descobri, pelo vizinho chamado Teodoro, que ela já estava morta há muitos anos e que, infelizmente, o marido dela também tinha morrido há um ano. A casa estava vazia, não tinha ninguém para interrogar. Minha frustração foi tão evidente que o homem quis ajudar. Disse que eles tinham um filho, mas que esse tinha ido para a capital. Eu fiquei imediatamente feliz e pedi a ajuda do homem para encontrá-lo. O choque que tive ao ouvir o nome do rapaz foi tão evidente que o homem pensou que eu passava mal, tentou me acudir. Eu o afastei gentilmente e pedi para ele repetir o nome do rapaz, ele não titubeou: Marcel.
Devo admitir que fui um pouco rÃspido com o homem depois disso. Perguntei se esse rapaz era mesmo filho daquela mulher. O homem achou a pergunta esquisita, eu insisti e fui mais claro. O senhor viu a parteira grávida? O homem admitiu que não, pois quando essa famÃlia veio para ali, o garoto já era recém nascido. Agradeci como pude e voltei para a capital com a cabeça estourando de preocupação.
13 de setembro de 1541
Acabo de cometer um sacrilégio em busca das respostas dessa história. O único que poderia me contar tudo era meu pai, mas eu não tive coragem de confrontá-lo. Se ele me escondeu isso por todos esses anos, o que ele faria comigo se fosse acossado?
Minha única solução foi ler o seu diário. Todo cavaleiro tem um, devemos anotar nossas aventuras para, quando terminarmos nossas lutas, criarmos um livro para a memória de Catônia.
Sim, foi uma atitude covarde, mas eu precisava saber a verdade. O que descobri foi tão aterrador e confirmava tão claramente as minhas suspeitas que devo admitir que valeu a pena.
Meu pai cometeu uma atitude vergonhosa por amor. Acontece que meu pai amava minha mãe acima de tudo, talvez até mais que o reino. Quando ela morreu no parto, ele culpou o bebê, Leonel. O rei e Aurélio tiveram que segurá-lo para que ele não matasse a criança. A parteira, que não podia ter filhos, implorou para ficar com a criança. Meu pai permitiu, não sem antes amaldiçoar o bebê de todas as formas possÃveis. O rei deu uma quantia considerável para a mulher poder comprar uma casa longe de Catônia. Aurélio e o rei prometeram nunca falar sobre isso com ninguém.
Meu pai é um homem bom, é evidente que ele se arrependeu da tolice que fez, mas, por sua honra, ele não podia voltar atrás e nem sabia como. A mulher desapareceu com a criança. Quando, dezessete anos depois, Marcel apareceu diante dele e meu pai descobriu que era na verdade Leonel, ele sentiu que eram os deuses fazendo algo para que ele se redimisse. Isso explica toda a situação estranha em relação a meu pai e o porquê dele ter matado o usurário que matou o pai de Marcel.
A sorte foi que eu não fui confrontar meu pai. Se essas verdades fossem expostas, era capaz do homem se matar para redimir-se de seus pecados. A partir de hoje esconderei isso com maior afinco que eles três. Honrarei meu pai e a lembrança de minha mãe. Marcel será não só meu melhor amigo, mas compartilharei tudo com ele, como é certo entre irmãos.
***
Marcel fechou o diário. Suas costas doÃam, seus machucados latejavam. Ele arrastou-se de volta para a cama, deixou o diário na cabeceira e ficou olhando para o vazio. Todas aquelas revelações tornavam a sua vida uma grande mentira. Será que seu pai sabia? É bem provável, por isso, ele fez de tudo para que Marcel fosse se tornar um cavaleiro.
Laerte realmente nunca disse nada, toda a amizade deles foi genuÃna e orgânica. Pelo menos era assim que Marcel pensava que fosse. Leon nunca demonstrou afeto, pelo menos não de uma maneira tradicional, mas Marcel admitia que o respeitava, mesmo com todo o rigor. Ele era intransigente, mas sempre mostrou poder e altivez, e isso, para Marcel, era sinal de um grande homem.
Isso, claro, antes da morte do rei. Esse homem, desse diário, não era o mesmo que deixou o filho ser assassinado sem ir atrás de vingança. Não é o mesmo que falhou em proteger o rei e não buscou a desforra. Toda essa história de paternidade confundia ainda mais a mente de Marcel e ainda havia muitas perguntas. Como ele deixou Laerte morrer sem ajudar? Por que ele continuou servindo Diógenes? Por quê? O diário, ele poderia esclarecer esses e outros pontos ainda obscuros. O velhote falou de um plano. Será que era verdade? O diário diria.
15 de março de 1544
Dioniso está morto. A grande ordem da cavalaria catoniana falhou. Nosso rei está morto e, não só isso, todos os herdeiros foram assassinados também. Até agora não se sabe como as pessoas mais bem protegidas do reino foram mortas ao mesmo tempo, mas o certo é que foram. Quase todas. Diógenes está vivo.
É evidente que o maldito bastardo foi o mandante do crime e estamos em um impasse. Matamos o canalha e vingamos o rei, mas aà Catônia ficará sem rei e sem herdeiros legÃtimos, o que vai desencadear uma revolta civil. O maior reino do mundo sem um rei vai criar inumeráveis falsos reis tentando assumir o poder e isso acarretará em uma guerra sem precedentes e sem vitoriosos, todos perdem com isso.
Marcel estava em dúvida sobre o que fazer, devo admitir que eu também. Matar Diógenes e aceitá-lo como rei parecem igualmente boas decisões no momento, mas, conhecendo meu pai, sei que ele nunca perdoará quem machucou seu melhor amigo, o rei Dioniso. Disse para Marcel que vamos matar Diógenes, é o que meu pai vai querer.
16 de março de 1544
A catástrofe é maior do que eu imaginava. Meu pai está irredutÃvel, ele pretende matar Diógenes para vingar Dioniso. O que seria ótimo, não fosse a posição de Aurélio Roderick. O cavaleiro disse que não pode permitir que Catônia fique sem rei; seu código de cavalaria o impede de permitir que o reino entre em caos. Os três eram melhores amigos, mas agora um foi assassinado e meu pai quer vingá-lo enquanto Aurélio quer a paz no reino.
Meu pai insistiu que faria isso e Roderick insistiu que iria impedi-lo. Algo terrÃvel aconteceu dessa discórdia, meu pai chamou Roderick para um duelo. Ele sabe que o único resultado é a morte, mas prefere morrer a viver em um mundo no qual a sua honra esteja na lama.
Não posso permitir que isso aconteça, mas também sei que não tem como eu convencer nenhum dos dois. A minha única opção é ser eu no lugar de meu pai. Essa provavelmente é a última vez que escreverei nesse diário. Espero que minhas contribuições para Catônia tenham sido adequadas e que esse diário sirva de testemunho.
Meu pai, sei que o senhor vai ler meus relatos. Não posso deixar que você lute até a morte contra seu melhor amigo. Estou enviando um local falso do duelo para você, nesse meio tempo morrerei em seu lugar. Por favor, não faça com que minha morte seja em vão. O pobre Aurélio terá que matar o próprio afilhado, mas é melhor do que matar o melhor amigo. Além do mais, só o senhor pode encontrar um meio de se vingar de Diógenes. O senhor não está raciocinando direito, mas tenho certeza que o tempo vai eliminar a neblina da sua mente e você encontrará um jeito de vingar a mim e ao rei.
Peço desculpas por ter descoberto o segredo de Marcel, creio que o senhor também lerá essa parte. Por favor, cuide bem dele, hoje sei que ele é meu adorado irmão e eu faria tudo por ele. Saiba meu pai, ele ainda será ponto crucial na vingança, confie nele. Infelizmente também terei que mentir para ele, mas vai chegar o dia em que ele saberá de toda a verdade.
***
A primeira lição que Leon ensinou como chefe da cavalaria a Marcel foi que um cavaleiro nunca deveria se mostrar chorando. Marcel agradeceu por estar só naquele quarto, terminou a leitura e não conseguiu guardar as lágrimas que há tantos anos ele trazia no peito. Era o sofrimento da tragédia. Por muitos anos ele acreditara que tinha perdido o melhor amigo, mas agora ele estava em luto pela perda do irmão.
Quanto a Leon, tudo diferia de como ele tinha interpretado vinte anos atrás, quando foi mandado por Laerte para falar com o chefe da cavalaria e disse que eles dois iriam enfrentar Diógenes, Marcel viu o medo nos olhos do cavaleiro. Ele pensava que aquele medo era o de perder o cargo, ou mesmo o de morrer, mas, na verdade, era o medo de perder os dois filhos. Ele pretendia se sacrificar, mas não queria que seus filhos também morressem. Por isso ele desesperou-se e prendeu o Marcel. Infelizmente ele acabou indo para o local errado de confronto, enquanto Laerte teve que enfrentar o próprio padrinho para salvar o pai. As últimas palavras de Laerte explicavam o porquê do silêncio de Leon. A única coisa que não estava explicada no diário era qual era o plano que Leon afirmou que planejou durante esses vinte anos.
Marcel odiava admitir, mas o velho estava certo. Agora que ele tinha lido o diário ele não podia mais fugir do seu destino, tinha que ir até Quendor para descobrir qual era o plano de Leon.