Roderick e Valentim estavam embasbacados, o cavaleiro ainda tentava acreditar que o outro estava brincando, mas o bandoleiro tinha certeza que o monge estava falando sério. O pequeno demônio já havia voltado do porão e já tinha perdoado a implicância do monge. Paulo sorria e já falava sobre outro assunto, brincava com Apollion, que gargalhava tanto a ponto de se engasgar e soltar catarro pelas narinas. Foi Valentim quem voltou a tocar no assunto.
— Paulo, eu já vi muitos relatos de suas asneiras, mas essa é de longe a coisa mais estúpida que eu já ouvi.
— Isso é sério, Paulo? — indagou o cavaleiro. — Por favor, me diga que esta é mais uma de suas brincadeiras.
— Vocês também acharam incrível?
— Não, seu asno, nós não achamos incrível, muito pelo contrário.
— Ele tem razão, Paulo. Você cometeu uma tolice.
— Vocês estão falando sério? — indagou o monge mostrando surpresa. — Vocês dois realmente acham que fiz um negócio ruim?
— Não, Paulo, um negócio ruim seria um eufemismo gigantesco ao se comparar com o que você fez. Atirar uma faca para o alto e tentar apará-la com a língua é um negócio ruim. O que você fez excede todas as concepções de negócio ruim.
— O Valentim tem razão, Paulo, isso não me pareceu um negócio justo.
— Pensando bem, agora que vocês falaram me bateu uma dúvida. Pode ser que eu tenha sido injusto com o Apollion, mas eu só tinha uma alma, não poderia ter dado mais.
— Não é isso que nós queremos dizer — falou o cavaleiro. — O que queremos dizer é que sua alma imortal vale mais do que a habilidade de poder beber sem ficar de ressaca.
— O quê? Claro que não, esse foi o melhor acordo que fiz na vida. Vocês falam isso porque não bebem como eu bebo. Era terrível ter que acordar, dia após dia, cada vez pior. Agora eu posso ficar ébrio o tanto que eu quiser e não há problema algum. No outro dia eu estou pronto para mais uma.
— Você poderia simplesmente parar de beber, seu imbecil — atalhou Valentim.
— Claro, do mesmo jeito que o sol pode deixar de nascer e se pôr; da mesma maneira flores podem deixar de desabrochar; assim como os pássaros podem deixar de nos alegrar com seu canto; assim como você pode deixar o vício da felação…
— Vai à merda, Paulo. Nem sei o porquê de eu ter me espantado. Eu espero que você sofra durante toda a eternidade.
— Vocês dois não pararam para pensar tanto assim na negociação. Vejam bem, vocês sabem o que acontece depois da morte? Não, né é verdade? Vocês podem até acreditar em alguma coisa, mas isso não significa que vocês saibam se é real ou não. Eu não sei o que acontece, para falar a verdade, ninguém sabe ao certo. Demônios e anjos também morrem e, podem acreditar, nem mesmo eles sabem o que acontece. Claro que existem várias religiões e tudo mais, mas eu não acredito em nenhuma, e, mesmo que eu acreditasse, é bem claro que pelo preceito de todas eu vou para o inferno, ou algo que o valha, pela vida que tive. Agora me aparece um demônio, amável, me oferecendo o poder mais precioso para uma vida boêmia, e que em troca disso vai ficar com minha alma depois da minha morte. Ou seja, eu troquei possíveis infernos (caso eles existam) para virar propriedade do Apollion. Agora me diga, Apollion, o que você fará quando estiver em posse de minha alma?
— Eu não sei bem o que fazer, você é a primeira alma que eu consigo em toda a minha existência. Podemos jogar baralho, destilar bebidas, sei lá, tantas coisas legais. O importante é que eu vou deixar de me sentir tão só — o pequeno demônio disse aquilo com tanta inocência que fez com que os dois se emocionassem. Talvez não tenha sido uma ideia tão ruim, pensaram ambos. Esse pensamento durou pouco, logo eles viram Paulo lamber um pouco de bebida que havia caído ao chão e concluíram que o pobre demônio viveria um inferno tendo aquele homem como companhia.
— Deixando esse idiota de lado, quer dizer que vocês, demônios, podem conceder poderes e desejos em troca de almas, é isso? — indagou Valentim.
— Mais ou menos. Na verdade nós não recebemos apenas almas, o que acontece é que normalmente vocês humanos têm apenas isso para nos dar. Nem sempre nós pegamos almas pela eternidade, como fiz com a de Paulo, às vezes estipulamos algumas centenas de anos, alguns dias, por vezes pedimos apenas algumas tarefas.
— Senhor Apollion — disse Roderick —, por gentileza, fale mais sobre essas negociatas entre demônios e humanos. Quando começou? O que se pode trocar? Quais são os limites? Essas coisas.
— Não é comum que venham humanos a esse reino sem que eles saibam dessas coisas, por isso eu falo como se vocês já entendessem muita coisa. Desculpe. Já que vocês são humanos comuns, que não sabem de nada, tentarei dar uma introdução geral. Vocês humanos nascem em uma casca, que é o que vocês chamam de corpo, ele serve como receptáculo do seu espírito, que é o verdadeiro eu de vocês. Pode-se dizer que a vida que vocês têm com o corpo é como se fosse uma experiência para suas almas. Uma vez que vocês morrem, a alma de vocês vai para algum canto que eu não sei bem explicar onde fica, nem o que acontece por lá. Nós, demônios, somos diferentes, nunca tivemos corpo, desde o início de nossa existência fomos espírito, por isso temos mais familiaridade com esse plano em que estamos. Nós descobrimos como impedir que a alma dos humanos não fosse para o lugar misterioso, mas isso só é possível com o consentimento do humano, por isso precisamos dos contratos. Uma vez que tenhamos uma alma, temos um servo para a eternidade. Alguns demônios usam esses espíritos como armas e mensageiros, outros conseguem criar pequenos mundos dentro de si e botam esses servos nesses pequenos mundos e os torturam de diferentes formas. Só para passar o tempo, entende? Nós viajamos pelos diferentes planos existenciais, seduzindo e adquirindo almas. Até que aconteceu a guerra com os anjos e ficamos presos aqui. Por muitos séculos ficamos apenas presos, sem ter como seduzir nenhuma alma, até que surgiu Ifnir. Ele é um humano que consegue se desprender da forma corpórea, ninguém sabe ao certo como ele aprendeu isso sozinho, mas o que se sabe é que ele ensinou a muitos outros humanos. Ele criou um mosteiro, seus discípulos aprenderam a sair de seus corpos e, com o devido estudo, a chegar até aqui.
— Do mesmo jeito que o Paulo fez para nos trazer? — quis saber o cavaleiro.
— Exato. Embora seja um excêntrico, Paulo é conhecedor dos segredos da transplanação. Ele, assim como seus colegas de mosteiro, aprenderam, com muito estudo, a vir até aqui. Uma vez que chegam aqui, eles, assim como nós, não conseguem transpor as barreiras, mas Ifnir, não se sabe como, conseguia transplanar para dentro dos círculos. Na primeira vez que ele veio, eu fiquei muito feliz, pensei que eu conseguiria a minha primeira alma, ledo engano. Ele é muito poderoso, muito mais do que eu…
— O que não é muito difícil, diga-se de passagem — gracejou o monge.
— Por que você se esforça para me humilhar?
— Não dê ouvidos a ele, Apollion, continue a sua história — pediu o cavaleiro.
— Tudo bem, mas se ele brincar com minha cara de novo eu não falo mais.
— Ele não brincará, não é mesmo, Paulo?
— Mas eu não estava brincando — ironizou o monge.
— Pois me faça o favor de apenas ficar calado enquanto ele termina de nos passar as informações que precisamos, eu não quero ter que fazer isso à força.
— Captei vossa mensagem, senhor da morte. Aqui, agora, será feito o jogo da vaca amarela, em exclusão de Apollion, aquele que falar, comerá a bosta dela. Valendo.
O cavaleiro e o bandoleiro se entreolharam e, com um aceno, concordaram em fazer silêncio, seguindo a regra da brincadeira infantil. O jogo da vaca amarela é uma daquelas interações humanas que ninguém sabe ao certo quem criou, mas todas as pessoas, de todos os cantos do mundo e até mesmo de outros mundos, sabem do que se trata. Para você, que é um alienígena da comunidade humana, ele consiste em um determinado grupo de pessoas fazer um pacto de silêncio. O primeiro a descumpri-lo deve se envergonhar tanto como alguém que teria comido a bosta de uma vaca de cor amarela. Para falar a verdade nunca ficou claro para mim se a vaca é amarela, ou a bosta dela é quem possui essa cor. Devaneios. Voltando à narrativa: a chance era pequena, mas, se o monge realmente ficasse calado, valia a pena seguir com a brincadeira. Apollion ainda estava visivelmente irritado, mas continuou com sua narração sobre o ocorrido naquele dia.
— Eu ofereci meus serviços a ele, em troca de sua alma. Ele riu de mim, o desgraçado, depois ainda me jogou no rio. Eu fiquei com medo, era a primeira criatura senciente que eu via em séculos e era agressiva. Não mais tentei falar com ele, mas ele me chamou, não tive coragem de negar o atendimento. Ele me disse que, a partir daquela data, muitos outros apareceriam e que ele atravessaria os círculos de proteção para falar com Magog. Eu atalhei que era impossível, ele me bateu, disse que não queria saber minha opinião. Falou também que conseguiria fazer com que nós demônios nos comunicássemos uns com os outros, mesmo com a barreira. Eu tentei dizer que era impossível, mas ele me bateu antes que eu terminasse de falar. Embora fosse uma pessoa detestável, ele era um homem extremamente proficiente, cumpriu com sua palavra. De alguma maneira ele podia se transportar para dentro dos portais. Ele adentrou em todos os círculos e fez um acordo com Magog. Eu não sei bem os termos, mas depois disso, nós passamos a poder nos comunicar telepaticamente uns com os outros. Depois de milhares de anos, nós, demônios, podíamos nos falar, mas ainda estávamos presos. Vários discípulos de Ifnir começaram a aparecer. Quanto mais talentoso era o aluno, mais círculos de proteção eles conseguiam adentrar, pois mais poderoso é o seu espírito. Então nós começamos a fazer acordos com eles, os mais poderosos demônios começaram a fazer contratos com os mais poderosos monges. Estamos presos para toda a eternidade, nesse meio tempo, nós matamos o tempo fazendo esses acordos. Os monges ganham poderes com nossas barganhas, mas suas vidas são humanas e curtas, logo eles morrerão e muitos deles virarão escravos.
— Quer dizer que Paulo é tão incompetente que nunca conseguiu entrar em um dos círculos? — indagou Valentim, mas não obteve a resposta que esperava. Logo após terminar a sua pergunta, um punhado de fezes foi arremessado na sua cara, na altura da boca. Paulo, que aguardava pacientemente pela oportunidade, tinha tirado das calças o projétil asqueroso. Roderick e Valentim haviam achado que era pilhéria, mas o monge realmente havia se cagado de rir há alguns minutos. O cavaleiro foi ágil, pegou um lenço e limpou a boca do bandoleiro enquanto impedia o homicídio certo que ocorreria se não fosse por ele. Apollion só conseguia rir da situação.
— Por favor, Augusto. Me solte, me deixe matá-lo — implorava Valentim.
— Não, Valentim. Ele é louco, não é culpa dele.
— Realmente não é minha culpa se você descumpriu o acordo e comeu a merda da vaca amarela.
— Vaca amarela é a meretriz da sua mãe, seu lazarento amaldiçoado. Eu te farei engolir suas bolas. Por favor, Roderick, me solte.
— Roderick? — indagou Apollion, parando de rir imediatamente.
— Ah, eu não te disse, Apollion? Esse cavaleiro é Augusto Roderick, o mais poderoso cavaleiro de todo o mundo. Ele e seu amigo bandoleiro pensam que eu não sabia da sua identidade, por isso eles estão com essa cara — os dois realmente aparentavam surpresa, ficaram calados por alguns instantes, até que Valentim quebrou o silêncio.
— Então você sabia desde o começo, seu desgraçado?
— Claro, um cavaleiro que derrota uma dezena de assassinos treinados sem sofrer um único arranhão, é inocente como uma criança e fiel como uma esposa que vive com seu homem em uma ilha deserta, só poderia ser um Roderick. Além do mais, embora não se ouça falar deles há muito tempo, sabe-se que o nome do filho de Aurélio é Augusto.
— Mas, você é…
— Louco? Sim, mas burro? Não. Agora que estamos aqui, sejamos sinceros uns com os outros.
— Não foi minha intenção omitir nada de você, Paulo — disse Roderick, corando. — Foi Valentim quem me aconselhou a não lhe contar, estou envergonhado.
— Não fique, ele estava certo, eu não sou de confiança. Você é um camarada muito legal, isso um dia ainda vai ser sua morte.
— O que você quer dizer com não é de confiança, seu desgraçado?
— Quer dizer que, meu caro amigo Valentim, no momento em que eu soube que esse camarada era um Roderick, eu planejei trazê-lo para cá. Por sorte, vocês já queriam a mesma coisa.
— Eu sabia que você não era de confiança.
— Sabia, mas confiou, conforme-se com isso. Agora que já estamos aqui, chega de mentiras de ambos lados.
— Qual é o seu plano, Paulo? Por que precisava que eu viesse até aqui?
— O porquê, meu caro, é o mesmo do nosso amigo Apollion estar com os olhos arregalados e a boca aberta — Augusto e Valentim, que estavam distraídos com a revelação do Monge, finalmente olharam para o demônio e viram que ele estava espantado. Seus olhos estavam estufados e ele tinha as duas mãos na boca, como se tentasse segurar um grito.
— Eu ainda não estou entendendo, pare de falar em enigmas.
— Serei mais claro que um albino nu. Você, meu caro, possui o espírito mais poderoso de todos os humanos, todos os demônios almejam por sua alma e você é capaz de fazer coisas extraordinárias. Se eu estiver certo, você é o único ser capaz de destruir as barreiras de luz.
— E por que eu faria isso?
— Por que, meu caro, com isso nós três teremos direito a um pedido de Magog, o mais poderoso dos demônios, aquele que cedeu o poder das sombras para a pessoa que raptou suas protegidas. Ele sabe quem é que está em posse dessas mulheres e somente ele poderá nos ajudar a achá-las. Agora, embora eu saiba que é difícil, deixe de ser fazer de idiota, Apollion, e entre em contato com Magog, queremos negociar.