Uma sombra, negra como a noite sem estrelas mais escura poderia ser, começou a adquirir uma forma humana, grotesca, mas humana. Ela era grande, tinha três vezes o tamanho de Roderick e duas vezes a sua compleição. O leitor mais atento notará que economizei palavras e me aproveitei da descrição usada pelo cavaleiro sobre seu primeiro encontro com aquilo que ele denominou como o Sombra Negra, mas não pense que o resultado será o mesmo. Desta vez o cavaleiro sabia exatamente do que se tratava. O oponente que há semanas ele perseguia finalmente estava ao seu alcance. Sua vingança seria completa.
Valentim, que, mesmo com toda a experiência no reino dos demônios, ainda não estava acostumado com todas essas coisas sobrenaturais, ficou estarrecido e embasbacado. Logo ele, sempre tão pronto para todas as situações, estava inerte diante daquela abominação. Apollion guardou Polli em suas vestes e foi se esconder atrás de Valentim. Paulo não perdeu tempo, falou algumas palavras mágicas e desenhou com os pés ao redor do grupo, no chão, um círculo. O Sombra Negra deu um grito gutural e nefasto, como se dentro dele houvesse a voz de inúmeras almas sofredoras. Roderick e Paulo permaneceram impassíveis diante daquele horror, mas os outros dois estavam petrificados. A criatura avançou velozmente na direção do grupo, mas estabacou-se diante de uma parede invisível. O círculo criado por Paulo impedia que ele se aproximasse.
— Não se preocupem, ele não pode entrar nesse círculo — falou Paulo enquanto fazia um gesto obsceno para o monstro, que respondeu com outro grito. Ele não tinha um rosto discernível, mas era evidente que estava furioso, todo o seu corpo vibrava e emanava uma fumaça sombria, tudo ao redor ficou nublado, menos o círculo. A criatura parecia crescer em ódio e tamanho. Ele dava socos e mordidas na parede invisível, fazendo com que ecoasse sons parecidos com os de catapultas.
— Muito bem, Paulo — disse o cavaleiro. — Fiquem os três aqui dentro, eu vou sair para enfrentá-lo.
— Sempre pensei que o louco fosse eu — disse Paulo com um sorriso estampado no rosto.
— Não faça isso, Augusto — implorou Valentim reunindo forças para falar e segurar o cavaleiro pelo braço.
— Não se preocupem — disse Roderick, com serenidade.
— Esse poder foi tomado de Magog — disse Paulo. — É muito poderoso, você sabe, não é?
— Sei sim.
— Augusto, não estamos mais com o exército de seus antepassados — disse o bandoleiro.
— Isso não será necessário. Confiem em mim — falou o cavaleiro enquanto se livrava gentilmente da pegada do outro.
— Por favor, deixe-o ir — implorou Apollion saindo de seu silêncio atemorizado.
— Sei que está com medo da criatura, mas não podemos aceitar isso — disse o bandoleiro. — É muito arriscado, devemos pensar em outra opção.
— Você não entende — disse Apollion. — Devemos deixá-lo ir.
Roderick virou-se e encaminhou-se para sair do círculo.
— O que eu não entendo, Apollion?
— Não é da sombra negra que estou com medo, mas sim dele. Você não consegue ver?
O cavaleiro saiu do círculo e adentrou na neblina.
— Não. Do quê você está falando?
— Uma gigantesca aura de poder e ódio emanava de Roderick. Eu nunca vi nada parecido, era muito poder e muito ódio.
— Não precisa se preocupar, Valentim — disse Paulo, ainda mais confiante do que antes. — Ele aprendeu a usar.
— O quê?
— Você lembra da história do rapto das mulheres?
— Claro que lembro, ele repetiu aquilo inúmeras vezes.
Fora do círculo, a criatura gargalhava com sua voz aterradora.
— Pois você deve lembrar, quando ele encontrou essa criatura pela primeira vez, ele não conseguia atingi-la. Foi só no final que ele conseguiu destruir um pedaço desse enorme bicho.
— E o que tem isso?
— Tem que ele aprendeu a usar o poder espiritual dele, eu tenho certeza. A barreira que eu fiz também não podia ser ultrapassada de dentro para fora. Ele saiu daqui como se ela não existisse de verdade. Consegue entender a diferença de poder entre eles dois?
A criatura emitiu um grito, mas dessa vez não era um rugido ameaçador, mas sim um enorme grito de dor. Uma grande luz afastou boa parte da neblina e eles puderam ver a criatura no chão, sem uma das pernas, enquanto Roderick segurava sua espada, que brilhava como se ela toda fosse feita de luz.
— Mas que porra é essa? — indagou Valentim surpreso.
— Essa porra, meu querido, é o mais próximo de Deus que vocês vão ver na sua vida — disse Paulo de maneira cínica.
A gigantesca perna do Sombra Negra transformou-se em pequenas sombras humanoides, apenas para serem logo exterminadas por Roderick. Cada golpe fazia cintilar um feixe de luz para todos os lados. As sombras estavam desesperadas, algumas tentavam se esconder, outras tentavam atacar, mas não eram rápidas o suficiente para fugir ou atingir o cavaleiro. Eram alvos fáceis, pareciam lebres em uma caçada. Como já disse, não tinha face, mas era nítido que elas estavam com medo.
O Sombra Negra começou a sofrer uma mutação. Seu corpo inicialmente se tornou um círculo escuro, depois algumas patas começaram a emergir de dentro dele, logo ele tinha a aparência de uma gigantesca sombra de aranha. Valentim se assustou, mas Paulo os acalmou, disse que aquilo não faria diferença.
E não fez.
O aracnídeo lançava um jato negro pelo seu gigantesco abdômen. A velocidade era impressionante, talvez até mais rápida que uma flecha, mas, infelizmente para ela, não tão rápida quanto Roderick. O cavaleiro defletia os jatos com golpes de espada e se aproximava pouco a pouco, um passo de cada vez. O Sombra Negra atacava mais rápido e com mais intensidade para tentar parar o avanço do cavaleiro. Debalde. Roderick era implacável, seu avanço cada vez mais gradual fez a aranha cogitar se continuava a atacar ou tentava se posicionar melhor se afastando. Optou pela segunda opção, mas não em tempo hábil. Ao tentar sair, estatelou-se no chão, três de suas oito pernas foram cortadas sem nem mesmo ela notar, ao tentar usá-las acabou por cair. O cavaleiro não perdeu tempo e tratou de retalhar a criatura o mais rápido que pôde.
Os pedaços do Sombra Negra tornaram-se mais pequenas criaturas humanoides. Roderick não lhes dava tempo de pensar ou agir, destruía-as logo após suas concepções. Valentim já havia visto Roderick lutar algumas vezes, sempre era algo pragmático, como o exercício de uma função de trabalhador. No entanto, ali, contra aquele monstro, o cavaleiro demonstrava um prazer quase absoluto, foi o mesmo que os antepassados de Roderick haviam feito contra os demônios. Era como se ele estivesse tendo sua tão aguardada desforra contra a criatura que o humilhou roubando suas protegidas. Sua vingança era inexorável. A cada golpe o desespero do Sombra Negra crescia mais e ele diminuía de forma diametralmente oposta. Não demorou muito para que o último pedaço de sombra se extinguisse.
— Finalmente, acabou — suspirou o bandoleiro.
— Não se precipite, nem todo mundo é precoce como você, caro amigo — gracejou o monge.
— Do que você está falando? Acabou, o último pedaço da criatura foi destruído — concluiu Valentim.
— De mim você duvida, mas olhe bem para o nosso amigo — falou Paulo apontando para Roderick.
O cavaleiro ainda estava com a espada em riste.
— Mas por que ele ainda está assim?
— Se você fosse mais atento ao redor, entenderia. Olhe para o céu — O bandoleiro obedeceu e viu algo aterrador. Todo o horizonte ainda estava plúmbeo. Trovões ecoaram de todos os lados. O chão começou a tremer e, de todos os lados, passou a surgir pequenas sombras negras. Pelo menos elas eram inicialmente pequenas, mas, para desespero de Valentim, logo tornaram-se grandes. Muito grandes. Algumas tinham o dobro do tamanho do Sombra Negra inicial e eram, pelo menos, duas dezenas desses gigantes. O mais assombroso é que Roderick estava animado, aparentemente ele havia ficado frustrado com o fim da contenda.
Inicialmente Apollion e Valentim acreditaram que tudo estava perdido, mas foi só o cavaleiro iniciar seu ataque que eles passaram a duvidar do veredito. Roderick era rápido e eficiente demais para as sombras. Ele nunca mantinha-se parado e não desperdiçava ataques. O tamanho exagerado dificultava a velocidade das sombras e as tornavam alvos fáceis dos cortes do outro. A cada golpe do cavaleiro as sombras se dividiam em menores para logo serem destruídas por Roderick.
— É impressão minha ou essa luta parece que já está com o final claro? — indagou Valentim se animando.
— Pelo que eu estou vendo, não vai demorar muito. Muitas mulheres já devem ter dito isso para você, né? — Disse Paulo antes de levar um tapa na nuca.
— Vocês estão enganados — disse muito baixo Apollion, com a voz esganiçada. — Isso está longe de acabar.
— Por que você diz isso, Apollion? — quis saber o bandoleiro.
— Eu consigo ver, existem muitas mais sombras no chão. Centenas, talvez milhares.
— Você consegue ver essas sombras no chão? — indagou Valentim surpreso.
— Não totalmente, mas eu posso sentir as mesmas auras se aproximando. São muitas.
— Então estamos perdidos? — quis saber o bandoleiro.
— Acho bem difícil — falou o pequeno demônio. — A aura de Roderick me parece muito maior e mais poderosa que a de todas essas sombras. É só uma questão de tempo, creio que ainda vá demorar horas.
— Horas? Tem certeza? — perguntou o bandoleiro.
— Creio que sim, mas existem algumas auras mais fracas à frente, acho que são de mulheres humanas. Umas quarenta delas.
— Devem ser as protegidas de Roderick. Onde elas estão?
— Naquela direção, acho que estão atrás daquela queda de água.
— Mas que droga, se essa luta demorar horas, pode ser que o maldito Sombra Negra queira se livrar delas pela desforra — o bandoleiro ainda pensou em correr para avisar Roderick, mas seria impossível passar incólume por aquele mar de sombras, apenas o cavaleiro poderia sobreviver no meio daquele caos. O tempo urgia e as sombras já não estavam mais se importando com eles. Valentim odiava ter que dizer, mas disse: — Vamos ter que sair do círculo.
— Como assim? Sair da proteção? — indagou Apollion assustado.
— Sim, é muito arriscado, mas devemos protegê-las. Essa luta não vai adiantar de nada para o Roderick se elas se ferirem. Paulo, se chegarmos nelas, você consegue fazer um círculo que nos proteja e a todas elas?
— Demora um pouco mais pelo aumento do perímetro, mas consigo sim.
— Então abra logo essa porcaria antes que eu mude de ideia.
— E nem me paga uma bebida? — disse Paulo enquanto ia apagando as proteções.
— É agora, corram — ordenou Valentim.
O caminho para a cachoeira não era muito longo, talvez um quarto de milha. Valentim, que desde muito novo foi treinado para ser a elite do banditismo, era ágil e rápido, foram poucos os segundos que separaram ele do círculo para a entrada da cachoeira. Seu plano era entrar rapidamente e juntar as mulheres o mais próximo possível para depois Paulo ter um círculo menor a ser feito. No entanto, uma preocupação súbita o acometeu, olhou para trás. Paulo vinha, a meio caminho, seu estilo de vida junto ao seu desvio etílico o faziam um péssimo corredor, sua língua estava para fora e seus passos eram trôpegos. O pior não era isso, Apollion estava parado, acocorado no chão, como se procurasse algo debaixo de uma pedra. Paulo era o essencial para o plano funcionar, aparentemente ele conseguiria, ficaria exaurido, mas conseguiria, porém, Apollion, estava muito atrás e Valentim pôde ver que uma das sombras que já estava pequena conseguiu vê-lo e se encaminhava para sua direção. Pelo que Roderick contou, os ataque das sombras não matavam, apenas debilitavam, então o pequeno demônio sobreviveria. O certo a fazer era auxiliar Paulo e focar no resgate das mulheres. O plano mais razoável era esse. Não tinha porquê cogitar outra coisa, Apollion ficaria bem e as mulheres em segurança. Então, por que diabos ele não conseguia se controlar e estava correndo em direção de Apollion? Como, justo ele, estava fazendo uma coisa tão estúpida? O certo é que ele se amaldiçoava, mas, ainda assim, corria ao resgate do pequeno demônio.
— Continue com o plano! — gritou Valentim a Paulo enquanto passava por ele. Não dava para ter certeza se ele tinha entendido, tão grande era a sua exaustão. Aquilo acionou uma camada de preocupação ao bandoleiro, seria inteligente deixar qualquer tarefa nas mãos de Paulo? Com certeza não. No entanto, o resgate das mulheres era mais importante, ele tinha de voltar à cachoeira, mas suas malditas pernas não obedeciam. Ele jurou a si mesmo que daria uma surra em Apollion quando isso tivesse acabado. Chegou até mais rápido na volta do que na ida e agarrou Apollion pelo braço. — O que diabos você está fazendo?
— Foi o Polli, ele se assustou e escondeu-se debaixo desta pedra, mas eu não consigo levantar.
— Eu devo ter ficado louco mesmo — disse Valentim enquanto levantava a pedra e enfiava a mão para pegar Polli. O pequeno esquilo, assustado, mordeu-lhe o dedo. O bandoleiro teve ímpetos de o esmagar, mas, aparentemente, ele não conseguia mover seu corpo em consonância com seu pensamento racional. Tirou um lenço do bolso, cobriu o esquilo e o entregou para Apollion.
— Obrigado, muito obrigado! — disse Apollion beijando o esquilo.
— Não perca tempo, corra, eu vou distrair a sombra — disse o bandoleiro sem entender o porquê daquelas palavras terem saído da sua boca. Deu um chute no traseiro de Apollion para apressá-lo e foi na direção da sombra que já estava bem próxima. O bandoleiro não sabia bem o que fazer e, por instinto, sacou uma adaga, embora soubesse que seria inútil. A sombra era pequena, uma das desgarradas que conseguiu fugir de Roderick, tinha cerca de quatro pés de altura. Pelo relato do cavaleiro, golpes contra ela seriam inúteis e a trespassariam, mas se ela o atingisse, conseguiria ferir sua “alma”. Então, o jeito era incitá-la a atacar e esquivar-se. A pequena sombra dava alguns gritos e aparentava divertir-se. Ela atacou o bandoleiro, que, a muito custo, conseguiu esquivar-se. Ela era rápida, muito rápida, seria uma questão de tempo para ele ser atingido. Ela dava socos e pontapés, às vezes, tentava agarrar o bandoleiro, que sentia como se estivesse brincando de pega-pega, mas com alguém que queria matá-lo. Quando, de repente, sentiu-se como se tivesse sido atingido nos flancos.
Agora ele entendia o que Roderick tinha dito sobre ter a alma atingida, não era particularmente uma dor, mas feria, disso ele tinha certeza. Era um incômodo que machucava de maneira debilitante. Sua agilidade não seria mais a mesma depois disso. O curioso é que ele tinha certeza de ter esquivado de todos os ataques, como foi que aquela criatura o atingiu? Ele tinha de descobrir, ou seria um alvo frágil diante de um inimigo que já é intangível. Embora a criatura tivesse poderes sobrenaturais, esses tinham um limite, afinal, se ela pudesse atingi-lo sem tocá-lo sempre, não estaria tendo esse embate de gato e rato. A vida sempre foi assim, pondo ele em situações injustas, mas que ele sempre achava um meio de sair. Talvez o injusto fosse ele ao ser tão esperto, dessa vez não foi diferente. A criatura havia pisado na sombra de Valentim, por isso ele sentira o golpe. A situação se complicava, agora ele tinha de tomar cuidado com seu corpo e com sua própria sombra. No entanto, um pensamento passava por sua mente: “Não consigo atingi-la com meu corpo, mas seria possível feri-la com minha própria sombra?”.
Para tentar, ele deveria afastar-se um pouco e desferir um golpe no vazio, mas tomando cuidado para que sua própria sombra cruzasse com a da criatura que estava atacando. Foi o que ele fez. Saltou para o lado e deu uma punhalada no ar. Sua sombra, amiga fiel que desde o nascimento o acompanhava, finalmente lhe fez algo útil, atingiu seu inimigo, que gritou de dor. Da criatura, começou a verter um líquido preto, que tinha a mesma cor dela. Valentim concluiu se tratar de uma espécie de sangue. Ele não perdeu tempo e desferiu vários outros golpes, o monstro ainda tentou correr, mas Valentim jogou sua adaga no sentido oposto, fazendo com que a sombra da arma se cravasse nas costas da criatura, derrotando-a. A adaga seguiu seu caminho, mas sua sombra parou no meio do trajeto e é bem provável que nunca mais tenham se encontrado. Embora triste, esse não é o foco da nossa narrativa, voltemos ao Valentim.
O bandoleiro voltou sua atenção para os dois companheiros, Paulo não estava mais à vista, provavelmente tinha entrado na cachoeira, já Apollion estava na metade do caminho e se movimentava muito devagar. Pelo menos uma dúzia de sombras já o tinham visto e corriam na sua direção. Embora soubesse que não poderia enfrentar tantas, Valentim também correu na direção do pequeno demônio. Ele não tinha mais a mesma velocidade de antes, o golpe da sombra o havia debilitado, mas sua vontade estava redobrada diante do risco iminente para o outro. Ele estava mais próximo que as sombras, por isso chegou mais rápido perto de Apollion.
— Não perca tempo, suba! — gritou Valentim enquanto pegava Apollion pela cintura e o colocava sobre seus ombros. O pequenino nem entendeu direito o que estava acontecendo até perceber que estava na cacunda do bandoleiro, que corria como se o próprio diabo estivesse em seu encalço. E talvez estivesse mesmo.
Enquanto o bandoleiro estava desesperado e lutava para que seu corpo o obedecesse, mesmo diante de uma atividade tão extenuante, Apollion divertia-se com o passeio e adorava estar sendo carregado. As sombras se aproximavam cada vez mais, por todos os lados, ficava cada vez mais evidente que não chegariam a tempo, Valentim precisaria fazer algo. Mas o quê? Ele mal pôde contra uma só. É verdade que ele podia atingi-las usando a estratégia de bater com a própria sombra, mas seria enfrentar uma dúzia com apenas uma, afinal, elas também podiam atacar sua sombra. Isso só seria possível por um grande guerreiro, coisa que Valentim não era. O que ele era é um homem engenhoso, ninguém podia tirar isso dele. Então, o que um homem engenhoso poderia fazer diante de situação tão adversa? Por mais que ele pensasse, nenhuma luz lhe aparecia. Mas, pensando bem, não ver nenhuma luz já era uma luz. Afinal, o que diabos faz uma sombra sumir? Luz! Essa era a resposta. Por isso o céu estava plúmbeo, o cenário era propício para que elas existissem. O que ele precisava era tornar o cenário impróprio para a disseminação de sombras.
— Apollion, você ainda consegue cuspir fogo? — quis saber o bandoleiro.
— Claro.
— Então cuspa na direção de uma dessas sombras — Apollion nem se deu ao trabalho de questionar, apenas obedeceu. Um jato de fogo foi lançado em direção de uma das sombras, antes mesmo que ele atingisse o alvo, a criatura já tinha diminuído e ficado disforme. Valentim gritou para que Apollion continuasse com o jato e deu um giro em torno de si, fazendo com que um círculo de fogo fosse feito, diminuindo assim todas as sombras que os cercavam. As criaturas assustaram-se e arrefeceram as suas investidas. Valentim aproveitou para dar uma arremetida final até a cachoeira. Seus músculos queimavam de dor e sua visão ficava turva. O suor, pelo esforço e pelo calor, ensopava o seu traje. As sombras já se estabeleciam novamente e voltaram ao seu encalço. O bandoleiro não pensou duas vezes antes de se jogar para dentro da cachoeira, onde, provavelmente, estaria livre da perseguição das criaturas. Afinal, concluiu ele, sombras não podiam atravessar água.
Valentim esperava muitas coisas para o que estava além da queda d'água, mas uma queda livre não era nenhuma delas. O bandoleiro caiu em uma espécie de túnel de toupeira, mas um gigantesco. Ele e o pequeno Apollion gritavam enquanto caíam sem controle, tudo ao redor era escorregadio e eles deslizavam para um local desconhecido. Depois de quase um minuto percorrido foram arremessados para fora do túnel. Voaram quase três metros de altura e teriam se machucado muito na queda, não fosse por um amontoado de arbustos que amorteceu, relativamente, a queda. Ainda estavam desnorteados quando ouviram a voz de Paulo.
— Agora a brincadeira vai começar — Apollion e Valentim levantaram apenas o rosto para poder ver o monge completamente amordaçado do pescoço até os pés. — Eu até curto uma brincadeira com cordas, mas ela me pareceu muito literal quando disse que ia acabar comigo.
— Mas que diabos? — praguejou Valentim enquanto se levantava. — O que aconteceu aqui?
Tudo ao redor estava escuro, um breu particularmente sinistro e antinatural, mas algo os iluminava. Tratava-se de uma pequena névoa que os circulava. Dela saía um pequeno brilho. Apenas Apollion, Valentim e Paulo estavam à vista. O mais negro possível, do qual nenhuma luz parece existir, pairava ao redor deles e até mesmo o som do ambiente parecia ter fugido diante de tão grande aberração.
— Onde diabos nós estamos? E por que cargas d'água só tem nós três por aqui?
— Va… Va… Valentim — disse Apollion com a voz sussurrada e temerosa. — Não tem apenas nós três por aqui.
— E quem mais, não estou vendo.
— Se eu fosse você, não olharia para cima — disse Paulo entre sorrisos.
— Por todos os diabos do inferno! — Gritou Valentim ao olhar para o céu e ver uma figura tão macabra quanto o pior pesadelo que já teve na vida. Uma figura humanoide, encapuzada, planava ao redor de suas cabeças. Por dentro do capuz tudo era negro e disforme, alguns tentáculos de escuridão saíam por onde deveria haver um rosto e mãos. O bandoleiro entrou em estado de choque, um medo tão genuíno se apoderou dele que o dom da fala lhe foi imediatamente removido. Nem mesmo os demônios haviam lhe causado tão grande impacto.
— Falei para você não olhar — disse Paulo de forma cínica. — A bruxa velha parece não gostar muito.
Um guinchado inumano foi emitido pela criatura. Até mesmo Paulo assustou-se diante dele e fez silêncio.
— Homens! Sempre homens! — a voz da criatura era gutural, mas clara, muito bem articulada. — Homens imundos e traiçoeiros! Vocês não têm o direito de estar aqui!
Valentim sentiu algo subindo por suas pernas e, por puro reflexo, saltou para o lado, saindo do transe de medo causado pelo monstro. Apollion não teve a mesma sorte, tão logo sentiu algo se aproximar, logo estava amarrado como Paulo.
— Eu falei moça, ele não é tão liberal quanto eu — disse Paulo para a criatura. — Tenha cuidado, Valentim, bruxas se aproveitam do medo para atacar. Infelizmente vai ficar sob sua responsabilidade cuidar dela.
— Homens imundos! Criaturas sujas!
— E como diabos eu vou dar cabo de uma criatura dessas?
— Se eu soubesse não estaria amarrado — concluiu o monge.
Mais uma vez as cordas enegrecidas atacaram o bandoleiro. Embora estivesse tudo na penumbra, Valentim ainda conseguia agir com agilidade. Sacou seu espadim e conseguiu resvalar o ataque das cordas. Elas passaram a vir de todos os lados, fazendo com que o bandoleiro tivesse que dar cambalhotas e giros no chão para evitá-las. Ele não estava em uma distância na qual era possível entrar em um embate corpo a corpo, então teria que arremessar adagas na bruxa. A primeira que ele jogou passou perto da bruxa, mas ela era rápida no ar.
— Não dá, é questão de tempo para ela me pegar.
— Então você deveria cuspir um pouco no seu rabo — sugeriu Paulo. — Tenho a impressão que ela está com raiva e quando te pegar vai enfiar um tentáculo bem no meio do seu traseiro.
— Nós não deveríamos chamar o Roderick para nos ajudar? — indagou Apollion.
— Seria ótimo, mas nenhum de nós fala por telepatia, seu asno! — gritou Valentim enquanto perdia seu espadim para um dos tentáculos.
— Como assim, eu tenho sim. Vocês não têm? — indagou o pequeno demônio com surpresa.
— Claro que não, seu energúmeno! — disse Valentim enquanto dava mais um salto para o lado, dessa vez a corda negra se agarrou ao seu manto, rasgando-o ao meio. — Que droga, ela está se aproximando cada vez mais. Se você conseguir falar com o desgraçado do Roderick, chame ele para cá, imediatamente, fale que as mulheres estão aqui.
— Vocês são imundos. São cães sarnentos e imundos, não merecem nem mesmo ver as mulheres — dizendo isso a bruxa lançou o dobro de cordas na direção de Valentim. O bandoleiro tinha sorte que, ao redor, não havia obstáculos, pois ele não enxergava um palmo à frente do seu rosto. Por pura veleidade do destino, ele, até agora, não havia tropeçado em nada e nem acertado a cabeça em nenhuma pedra com seus giros no chão.
— Tá, eu vou chamá-lo — disse Apollion enquanto fazia suas pupilas subirem a ponto de seus olhos ficarem completamente brancos. Ele entrou em uma espécie de transe e balbuciava coisas sem sentido.
— Eu vou tentar distraí-la pelo maior tempo possível — disse Valentim contando suas adagas. Só tinha mais três. Ele tinha um plano, talvez com ele fosse possível atingi-la com uma delas. Ele arremessou a primeira e viu a bruxa mais uma vez esquivar-se para a esquerda. As cordas estavam vindo e não tinha mais como escapar, então ele parou, ajustou a mira e lançou a segunda adaga. Imediatamente ele lançou a terceira para a esquerda da bruxa, tentando antecipar sua esquiva. A bruxa, realmente, foi mais uma vez para o lado esquerdo, apenas para ser atingida no ombro pela última adaga jogada por Valentim. As cordas negras alcançaram-no e o imobilizaram.
A criatura gritou, mas, dessa vez, foi um grito bem humano. Parecia o berro de dor de uma garota. Tudo ao redor piscou por uns instantes, como se a luz lutasse para tentar tomar seu lugar de volta na escuridão, mas não tinha força o suficiente. A criatura se restabeleceu, a escuridão voltou a imperar absoluta e o seu guinchado foi o mais inumano possível.
— Você pagará por isso, homem imundo — sibilou a criatura enquanto se aproximava de Valentim. Ela aproximou-se do bandoleiro pelas costas e sussurrou ao seu ouvido — Você pagará por sua ousadia, cão.
— Agora eu fiquei chateado — disse Paulo —, quando você falou homem imundo, tinha certeza que estava falando de mim.
— Cale a boca, Paulo, ou ela vai me matar.
— Eu acho muito difícil as duas coisas.
— Sim, acredito que você seja o mais imundo — disse a bruxa voltando sua atenção para o monge. — Seu amigo iria receber a punição primeiro, mas você se mostrou mais merecedor.
— Já fiquei excitado — disse Paulo sorrindo —, mas, para ser sincero, acho que você não tem coragem.
— Pare de enfurecê-la, Paulo. Não se trata de mim ou de qualquer reles humano.
— Sinceramente, Valentim, acho mais fácil você me machucar do que essa bruxa de araque.
— Como você ousa? — disse a bruxa enquanto faziam com que trovoadas ecoassem por todos os lados. Mais cordas enegrecidas passaram a circular Paulo, como se fossem cobras prontas para dar o bote.
— Moça, não se dá para mentir para um mentiroso — disse Paulo sem demonstrar qualquer tipo de preocupação.
— Mais que droga, Paulo, só cala a maldita boca — implorou Valentim cada vez mais aflito.
— Valentim, não seja tolo, algumas pessoas podem me julgar louco, mas idiota eu não sou. Essa tal de bruxa não irá nos machucar porque ela é uma covarde.
— O que te faz pensar isso, homem imundo?
— O que me faz pensar? Bem, que tal o fato de você ter me prendido há vários minutos e eu ainda não ter nenhuma escoriação sequer.
— Eu estou aguardando para me divertir com sua agonia…
— Tsc! Ah, moça, deixa de besteira. Por trás desse capuz e dessas sombras tem alguém que não gosta de machucar, eu sei disso. Já vivi muito tempo perto de pessoas que gostavam de infligir dor. Monges e demônios eram iguais, seres desprezíveis que gostavam de fazer os outros se sentirem menores por meio do sofrimento. Você não! Faz tempo que nos dá ameaças vazias e, se quisesse mesmo, eu já estaria sem as pálpebras. A minha impressão é que você só quer nos assustar para irmos embora.
— Eu farei você mudar esse pensamento — disse a bruxa explodindo de fúria.
— Palavras e mais palavras.
— Que tal se eu chicoteasse você e o seu amiguinho imundo?
— Porra, eu falei para você calar a boca.
— Chicotear? Moça, isso aqui não é um clube de diversão sado. Se você quiser se mostrar malvada vai ter que melhorar.
— Caralho, Paulo, uma vez na vida, cala a boca — implorou Valentim já com a voz rouca.
— Não! Ele tem razão. Vocês têm que sofrer — concluiu a bruxa. Suas cordas negras assumiram a forma de lanças e passaram a planar na frente dos dois. — Homens não devem ter o direito de viver.
— Pronto, agora você está sendo uma megera de verdade — falou Paulo, animado. — Quero ver se você tem coragem de deixar algumas marcas permanentes.
— Não haverá marcas, pois será o fim de vocês dois.
— Muito bom, seu imbecil, agora ela vai nos matar.
— Ele chegou — disse Apollion finalmente saindo do transe.
Do mais absoluto nada surgiu uma luz, ela saiu do túnel e voou alguns metros no ar antes de dar duas piruetas e cair próximo a eles. Roderick sorria de êxtase ao encontrar o responsável por toda a sua busca. A bruxa, por impulso, lançou as lanças negras, mas não houve tempo para atingir Valentim ou Paulo, Roderick as destruiu a tempo, com apenas dois golpes de espada.
— Mais um homem imundo — disse a bruxa enquanto lançava mais cordas negras na direção do cavaleiro, mas foi inútil, ele facilmente as destruiu. A cada golpe de Roderick, a luz parecia tomar conta do recinto, cada espadada fazia com que as trevas se atenuassem. O cavaleiro seguia na direção da bruxa, de maneira implacável. A bruxa evadia-se e tentava atacá-lo, mas nada o parava, cada vez mais o cenário ganhava contornos, a escuridão sumia e, em seu lugar, surgia um grande descampado. A bruxa juntou suas forças e criou um gigantesco tentáculo negro, ela desferiu um ataque que julgava ser impossível para qualquer ser vivo resistir, no entanto, aquele diante dela não era qualquer ser vivo. O golpe foi ascendente, o tentáculo partiu-se em milhares de pedaços e o impacto de sua destruição foi atingir a bruxa em cheio, fazendo-a cair de bruços sem mais tentáculos saindo por suas vestes. Toda a escuridão se esvaiu, Valentim, Apollion e Paulo estavam libertos das cordas negras. Estavam em uma bela planície sem árvores ou rochas. Roderick aproximou-se da bruxa e levantou sua espada para dar o golpe final, mas algo inusitado o impediu.
— Não!!! — gritou uma voz feminina bem distante. — Roderick, não!
— O que é isso? — indagou Roderick espantado ao perceber que se tratava da voz de Alzira, uma de suas protegidas.
— Não a mate, por favor — implorou a mulher aos gritos enquanto se aproximava.
— Alzira, eu não entendo, você está bem? — indagou o cavaleiro ainda atônito. — Por que me pede que eu poupe essa criatura?
— Porque… Arf… arf… arf… — disse a mulher se aproximando exausta pela corrida. — Porque, Roderick… Bem… Porque ela é minha irmã.
O cavaleiro ouviu aquilo com descrédito, mas resolveu virar a bruxa de barriga para cima, foi quando recebeu o golpe mais poderoso que já tomou em toda a sua vida. Aquilo não era uma criatura, mas sim uma mulher, e Roderick tinha dúvidas se, alguma vez na vida, já tinha visto uma tão bonita.