Valentim estava um pouco desconcertado, a presença do outro era constrangedora, para dizer o mÃnimo. Apollion ficava sentado, com um sorriso embasbacado, olhando fixamente para o bandoleiro sem falar e sem fazer nada. A floresta ao redor deles era úmida e vicejante, o que dificultava o trabalho do Valentim em acender a fogueira com duas pederneiras. Ele já havia montado todo o acampamento sozinho enquanto o outro permanecia feito um imbecil lhe olhando. Aquilo já o estava enfurecendo, além do constrangimento óbvio que é ter uma pessoa lhe encarando. Maldita hora em que decidiu ficar com Apollion. Quando Roderick saiu para caçar e disse que levaria um dos dois, Valentim não pensou duas vezes antes de escolher o pequeno demônio em vez de Paulo, o louco. Agora se arrependia, o outro iria perturbá-lo, é verdade, mas pelo menos seria útil.
— Você quer dizer alguma coisa? — inquiriu o bandoleiro.
— Quem, eu? — perguntou o pequeno demônio olhando para os lados.
— Não, estou falando com o rei dos mares — respondeu Valentim com brusquidão.
— Mas só tem eu e você aqui. Por acaso ele está escondido por aqui?
— Claro que não, seu energúmeno. Eu estava sendo sarcástico. É claro que eu estava falando com você, só tem nós dois aqui.
— Ah, me desculpe. Ah, ah, ah! — disse Apollion com uma gargalhada tão detestável para Valentim quanto uma agulha entre as unhas. — Eu não tinha entendido bem. Não, não tenho. Por que a pergunta?
— Porque você está me olhando há quase uma hora com esse olhar de palerma.
— Ah, me desculpe. É que o Paulo pediu para eu olhar e aprender com você.
— Olhar e aprender não significa que você tem que ficar parado, você pode olhar e aprender enquanto se movimenta.
— É mesmo, você tem razão. Eu posso olhar e me movimentar — dizendo isso, ele saiu de cima de uma grande pedra, onde estava sentado, e ficou se movimentando enquanto olhava com o mesmo olhar e sorriso estúpido para o outro.
— Seu animal! — gritou Valentim, fazendo o outro se assustar e parar. — Se movimentar me ajudando. Faça alguma coisa.
— Me desculpe — disse Apollion um pouco constrangido. — É que eu… Bem… Não sei como fazer isso.
— Isso o quê?
— Ajudar.
— É só me imitar — disse Valentim se contendo para não espancá-lo. O pequeno demônio assentiu com a cabeça. O bandoleiro então pegou duas pedras e começou a bater uma na outra, perto de alguns galhos que ele havia juntado, para, com as faÃscas, acender a fogueira.
— Isso é fácil — disse Apollion também apanhando duas pedras no chão e acertando uma na outra, mas fazia-o no ar, longe dos gravetos. O bandoleiro olhava estarrecido o pequeno demônio feliz em fazer faÃsca no ar.
— O que diabos você está fazendo? — indagou, quase explodindo de ódio.
— Ajudando — disse Apollion inocentemente.
— E como você pretende fazer isso?
— Imitando você — Valentim lutou contra seus maiores instintos para não arremessar uma pedra na cabeça dele.
— Você tem que fazer isso aqui, seu animal! Perto dos gravetos. Quero acender um fogo.
— Ah, me desculpe — disse Apollion correndo para sentar-se ao lado de Valentim. Os dois ficaram juntos tentando atiçar o fogo, mas era debalde. Os galhos estavam muito verdes e a umidade atrapalhava demais. Passaram muito tempo nessa toada.
— Isso é muito difÃcil — reclamou Apollion.
— Não deveria ser, mas o clima está dificultando — disse Valentim, já se acalmando mais.
— Eu não entendo uma coisa — disse Apollion ainda batendo as pedrinhas.
— O quê? — indagou Valentim mecanicamente.
— Por que estamos fazendo esse ritual?
— Não é um ritual, bobão. Estamos apenas tentando acender o fogo.
— E por que fazemos dessa maneira tão difÃcil?
— Por quê? Porque eu ainda não sei soltar fogo — disse Valentim com deboche.
— Ah, então eu solto por você — disse Apollion enquanto largava as pedras e cuspia uma pequena labareda de fogo que logo acendeu a fogueira.
— O quê? Mas o quê? Seu lazarento. Quer dizer que você podia acender isso a qualquer momento?
— Sim — respondeu Apollion com simplicidade.
— E por que não fez antes?
— Porque você não pediu.
— Claro que eu pedi, falei para você me ajudar — falava Valentim, já no pico da ira.
— Mas você me disse que era para te imitar — falou o pequeno demônio com simplicidade. Ao que Valentim respondeu com as duas mãos em seu pescoço para esganá-lo. Ele deu quatro ou cinco sacudidas nele antes de largá-lo. O pequeno demônio tossia muito e Valentim se afastava para evitar fazer uma besteira maior.
— Me desculpe, mestre Valentim. Eu não aguentei por muito tempo, mas se precisar de ajuda com o esganamento, eu ainda aguento mais um pouco, se o senhor permitir que eu descanse por mais alguns segundos.
— Chega, Apollion! — falou Valentim, furioso. — Não precisa mais ajudar, estou bem. Não precisa ficar agindo com um idiota.
— Me desculpe, é que…
— E pare de se desculpar, isso irrita muito.
— Me descul… — ia dizer Apollion, mas ao ver a cara de Valentim concluiu: — Tudo bem.
— Isso, afinal, não deve ser muito difÃcil agir como uma criatura com cérebro.
— Na verdade, eu sinto um pouco de dificuldade em entender as interações de vocês. É tudo muito novo para mim.
— Como assim?
— Sabe, quando você me estrangulou, eu me senti em casa. Eu sempre apanhei muito, meus irmãos sempre me batiam, então eu entendi melhor quando você fez isso. É esquisito ver vocês conversando e interagindo. Vocês me passam um ar de… Eu não sei bem como dizer… Me dá uma sensação boa de estar com vocês.
— Eu não sabia — disse Valentim se compadecendo do outro e se arrependendo de tê-lo tratado com tanta rispidez. — Sabe, eu não sou sempre assim. Me desculpe.
— Não seja irritante.
— O quê? — indagou Valentim com espanto.
— Não se desculpe, é irritante — Valentim ouviu aquilo e voltou a ficar com raiva da falta de noção do outro, mas logo notou o quanto aquilo era tosco e passou a rir. Estava realmente arrependido de ter tratado o outro tão mal, então tentou ser mais claro.
— Apollion, se desculpar não é irritante sempre — falou Valentim com um ar instrucional. — O que irrita as pessoas é alguém que se desculpa a todo momento por todas as coisas. Não aja como se tivesse medo das pessoas, nem como se elas pudessem mandar em você. Pessoas subservientes incomodam.
— Sério? Na minha vida eu sempre tive que ser subserviente.
— Pois não precisa mais. Aja com mais autonomia, não precisa obedecer às ordens de ninguém se você não quiser.
— Tudo bem.
— Desculpe se eu fui rude, mas é que a sua falta de noção de coisas simples do mundo me irritaram, mas percebi que não é culpa sua. Esse é um mundo inteiramente novo para você, não é?
— Sim, quero aprender o máximo que eu puder com as outras pessoas.
— Infelizmente você não poderá aparecer na frente das outras pessoas.
— Por quê? — quis saber o demônio com a voz chorosa.
— Porque você é um demônio. As pessoas se assustariam ao ver você. É bem capaz de perseguirem você com forcados e tochas. Sua aparência deve ser escondida com um capuz.
— Como seria se eu tivesse a aparência de um humano?
— Seria ótimo. Você poderia passar despercebido de maneira fácil.
O pequeno demônio se alegrou com aquilo, fez uns gestos com as mãos e uma onda de fumaça cobriu seu corpo. Valentim se assustou e tossiu muito, ficou dispersando a fumaça com as mãos. Quando ela desapareceu por completo, surgiu um garoto com as vestes de Apollion, mas sem a armadura de general.
— Então você pode se transformar?
— Claro que sim, você não?
— Claro que não. O que mais você pode fazer?
— Eu sei respirar, cuspir, nadar, pular, falar…
— Me refiro a coisas que eu não possa fazer.
— Aà eu já não sei, já que você não me disse o que pode fazer.
— Quer saber, esquece! Só me diz uma coisa, você que escolhe a aparência?
— Isso já é muito difÃcil, nunca aprendi a moldar bem a aparência.
— Isso explica muita coisa — concluiu Valentim ao ver que aquele era provavelmente o garoto mais feio que já vira na vida. Baixo, vesgo, calvo, lânguido e um pouco corcunda. O bandoleiro tinha dúvidas se as pessoas atirariam menos pedras nele agora.
Enquanto conversavam, Roderick apareceu carregando um cervo abatido, Paulo vinha logo atrás, segurando o rabo do animal, como se ajudasse de alguma forma. Pela primeira vez o cavaleiro parecia distraÃdo, não deu atenção para Valentim e Apollion, apenas jogou o cervo no chão e passou a tratá-lo. Foi Paulo quem se surpreendeu com o garoto.
— Que curioso, quando eu evacuei mais cedo, não imaginei que fosse virar uma criança.
— Não comece, Paulo — disse Apollion. — Isso é uma das suas piadas, não é?
— Não lembrava que já havÃamos sido apresentados. Deixe ver se lembro seu nome. Verruga?
— Não tem graça, Paulo — disse Valentim, tentando esconder uma risada. — É o Apollion, ele consegue se transformar em humano.
— Consegue? E quando ele vai fazer isso?
— Você é mau, Paulo — disse Apollion choroso.
— Nem sempre, meu amigo. Veja, trouxe um presente para você — disse o monge, tirando um esquilo que estava dentro de sua túnica. Apollion inicialmente quis recusar, mas depois de ter achado o bicho bonito pegou ele e foi brincar. — Valentim, venha cá. Tenho algo em particular para falar com você.
— Vá à merda, não estou com paciência para suas pilhérias.
— Não é pilhéria, é sério — o tom de voz e fisionomia de Paulo indicavam que realmente era um assunto importante. O bandoleiro foi até ele. — Ouça, tem algo de errado com o Roderick.
— Como assim?
— Ele está mal e, você sabe, eu não tenho trato social para falar sobre sentimentos. Precisamos conversar com ele e você tem que puxar o assunto.
— Por que eu?
— Porque, meu caro Valentim, caso não tenha percebido ainda, você é a voz da razão neste grupo. Eu sou doido, Apollion está praticamente sendo alfabetizado e Roderick é intransigentemente sério. Você é o mais funcional de nós quatro; ele precisa de ajuda, vamos lá.
Valentim quis relutar, mas a atitude do cavaleiro realmente o preocupava, então ele resolveu ajudar. Roderick já estava próximo de retirar toda a pele de cervo, o bandoleiro foi se aproximando dele e tentou tocar seu ombro, mas ele não chegou a concretizar sua ação. Se alguém lhe perguntasse como foi, ele não saberia responder, a única coisa que viu foi o céu, sentiu o corpo girando e, de repente, estava no chão, de bruços, um joelho incomodava em suas costelas e uma adaga estava ameaçando seu pescoço.
— Calma, calma, calma. Sou eu, Roderick — implorou Valentim.
— Desculpe! — falou o cavaleiro enquanto gentilmente levantava o outro. Em seguida, ele tirou algo dos ouvidos e disse: — Você não deveria se aproximar tão sorrateiramente das pessoas.
— Ai, ai, ai! Minhas costas. Fazer o quê, é força do hábito — disse o bandoleiro. — O que é isso que você tirou dos ouvidos?
— Isso? — falou Roderick mostrando dois tampões de cera. — Eu estava usando para não ter que ouvir o Paulo.
Valentim olhou para trás e viu o monge rindo antes de se esconder na mata. O desgraçado sabia que o cavaleiro não estava ouvindo. O bandoleiro concluiu que tudo aquilo não passava de outra zombaria do monge e iria atrás dele para a desforra, mas desistiu ao perceber que o olhar do cavaleiro realmente estava taciturno e diferente do habitual. Sentou-se ao seu lado.
— Como você está, Augusto? — perguntou de maneira despretensiosa.
— Eu? Sinto-me bem, e você?
— Eu? Tenho dor nas costas, mas quanto a você, pensei que não pudesse mentir.
— Por que me tomas? — disse o cavaleiro demonstrando descontentamento.
— Por quê? Porque é nÃtido, Roderick. Desde o que aconteceu com seu pai, você tem agido de maneira estranha. O antigo Roderick nunca iria abrir mão de um dos seus sentidos, nem que fosse para deixar de ouvir as sandices de Paulo. Você é o homem sempre alerta, aquele que está sempre um passo à frente. Sua boca me diz uma coisa, mas seus olhos me dizem outra.
— Eu não minto, estou bem. Não tenho nenhum ferimento.
— O corpo pode estar são, mas é na alma que as feridas se mostram mais perigosas. Você já me chamou de amigo, agora venho fazer o trabalho de um, diga-me, Augusto, o que o aflige?
— Isso é novo para mim, devo admitir que não estou acostumado a ter amigos — o cavaleiro olhou para o céu, pensativo. Ficaram em silêncio por alguns segundos, até que ele disse: — Estou preocupado, Valentim.
— Com o quê?
— Com minhas protegidas.
— Elas estão aqui nessa floresta, logo as encontraremos. Você já provou que não há obstáculo que você não consiga superar. Agora, penso que você não está sendo completamente sincero. Diante do término de sua busca, me aparenta que há outra coisa que o atormente.
— Você é realmente muito perspicaz, meu amigo. Sim, eu temo por elas, mas também temo que eu não seja capaz de cumprir o augúrio de meu pai.
— Me sinto compelido a perguntar qual seria.
— Meu pai vaticinou que eu serei o último Roderick e que Catônia encontrará paz e harmonia por intermédio de meus atos.
— Se há alguém que pode fazer isso, esse alguém é você.
— Não é tão simples. Você conhece o rei, não há como existir paz e harmonia com aquele homem no poder, ao mesmo tempo ele é um mau necessário.
— Eu não tenho a resposta para isso ainda, Roderick. Todavia, prometo que vou voltar à Catônia com você e o auxiliarei.
— Isso não foi o acordado entre nós. Você deveria apenas me ajudar a encontrar minhas protegidas e, após isso, eu o recompensaria com a fortuna de um rei. O seu papel já foi feito, amigo.
— Isso foi antes. Quando negociamos, eu era apenas um bandoleiro e você o mais famoso dos cavaleiros. Depois de tudo o que passamos, isso não vale de mais nada. Somos amigos, Roderick. E ser seu amigo, meu caro, vale mais do que a fortuna de um rei. Como recebi mais do que você me prometeu, devo mais. Então, vou ajudá-lo até o fim.
— Isso é muito nobre de sua parte. Serei para toda a eternidade grato a você. Não pense que me esqueci, sua famÃlia estará ao seu lado quando tudo isso terminar. Moverei céus e terras para trazê-los até você.
— Isso me deixa muito satisfeito.
— Vocês dois vão me fazer chorar — disse Paulo saindo dos arbustos.
— Saia daqui, desgraçado — disse Valentim. — Não vê que está atrapalhando?
— Perfeito, então consegui o que eu queria. Deixe-me sentar aqui do seu lado.
— Claro — disse Roderick afastando-se.
— Eu realmente não entendo o que ainda está fazendo conosco — disse Valentim com desdém.
— Eu poderia enumerar milhares de fatores, mas vou ao mais prático. Não tenho para onde ir. Todos do mosteiro foram mortos, meus amigos também. Eu já libertei suas almas e já os vinguei. Os demônios também foram destruÃdos. Oficialmente eu sou um mendigo.
— Então deveria mendigar em alguma cidade, não ficar nos seguindo feito um carrapato.
— Não precisa ser tão rude, Valentim — atalhou Roderick.
— Meu caro Augusto, com este estafermo, todo tipo de grosseria é indispensável.
— Louvo em saber que seu amor é proporcionalmente parelho com seu ódio. É, meus caros, depois de tudo o que passamos, sinto que ainda devo acompanhá-los até o fim de suas jornadas.
— Sim, embora não tenha sido totalmente sincero conosco, sua ajuda foi crucial. Você é bem-vindo para nos acompanhar.
— Não, Roderick. Pelo amor de Deus, não.
— Você fala essas coisas, mas tenho certeza que sentiria minha falta. O outro motivo é que vocês me ajudaram e eu sinto que ainda não paguei minha dÃvida. Sinto que ainda devo estar do seu lado, Augusto Roderick. Antes do fim, creio que ainda serei de grande valia. Afinal, vocês três são o mais próximo que eu tenho de amigos e eu faço de tudo para ver meus amigos bem.
— Eu pude ver — disse Roderick. Sua atenção foi tomada por uma criança que se aproximava aos berros.
— Vejam! Vejam! Eu consegui — disse Apollion escondendo algo entre as mãos.
— Quem é esse garoto? — indagou Roderick.
— Ah, é! Você não o viu ainda — disse Valentim. — Esse é o Apollion. Aparentemente ele consegue mudar sua aparência.
— Mas isso é incrÃvel — surpreendeu-se o cavaleiro.
— Vejam — disse Apollion mais uma vez e abrindo as mãos para revelar o esquilo. O animal começou a dar piruetas no ar, para júbilo do pequeno demônio.
— Meu Deus, já é mais prendado que o Valentim — brincou Paulo.
— Seu rabo, desgraçado. Apollion, por acaso esse é o esquilo que o Paulo lhe deu há pouco.
— Sim, eu o batizei de Blasfêmia.
— Esse não é um nome muito amigável — sugeriu o bandoleiro.
— Sério? Achei tão fofo. Deixem-me ver, o que vocês acham de Malfegor?
— Não posso dizer que é agradável aos ouvidos — concluiu Roderick.
— Poxa, esse, lá onde eu morava, era o que os demônios davam para os filhotes mais tenros. Tem Valgofor, Samael, Azazel, Mammon… Não, nenhum desses?
— Que tal Polli? Em homenagem a você? — sugeriu Paulo para a surpresa de todos.
— Infelizmente, eu achei um bom nome — disse Valentim.
— Realmente, ele é assaz aprazÃvel — concordou Roderick.
— Deixe eu ver se ele gosta — disse Apollion falando no ouvido do pequeno roedor. A pequena criatura deu grandes sinais de felicidade e passou a correr por entre os ombros de Apollion. — Sim, ele concordou.
— Como assim ele concordou? — indagou Valentim.
— O Polli preferiu esse, foi o que ele me disse.
— E você fala com animais? — perguntou o bandoleiro incrédulo.
— Claro, por que eu não falaria? Não tenho nada contra eles.
— Porque essa não é uma habilidade que nós humanos temos — concluiu Valentim.
— Fale por você, eu tenho — disse Paulo.
— Você pode falar com animais? — indagou Roderick espantado com as habilidades dos dois.
— Sim, mas só com um. Nosso amigo Valentim.
— A minha vontade é de esmagar sua cabeça com uma pedra, mas sei que Roderick vai me impedir, então vou apenas ignorá-lo. Por favor, Roderick, pare de tratá-lo como se fosse uma pessoa digna de se ter um diálogo, vamos voltar a falar com Apollion que é o mais importante. Apollion, você consegue realmente falar com o esquilo? Como isso funciona?
— Claro que falo. Assim como falo com vocês. Sério que vocês não falam com os animais.
— Muito sério — disse Roderick.
— E como vocês fazem para conviverem? Não fazem amizades?
— Fazemos sim — disse o cavaleiro. — Nós os treinamos com gestos e hábitos. Inclusive tenho um grande amigo que devo buscar após resgatar minhas protegidas, que é o meu cavalo, QuÃron. Ele acabou ficando no mosteiro, quando saÃmos. Preciso que ele vá a alguma cidade, mas creio que ele vá ficar me esperando.
— Por que você não pede ajuda a algum pássaro? Eles são bons em achar outros animais.
— Porque, meu caro amigo, como Valentim disse, eu não sei falar com pássaros.
— E não tem como você se comunicar com gestos e hábitos?
— A isso chamamos adestrar e demora muito tempo, além do que, nem todos os animais podem ser adestrados.
— Então eu posso fazer isso por você — disse Apollion indo ao topo de uma rocha e começando a chamar os pássaros com gritos. Alguns desceram, mas iam logo embora, até que uma grande ave de rapina desceu. Apollion conversou com ela por um tempo, escondeu rapidamente Polli no bolso e foi buscar um pouco de carne de cervo. Pediu detalhes do cavalo de Roderick e os repassou para o pássaro, deu-lhe o pedaço de carne e a ave foi embora.
— Serei-lhe eternamente grato — agradeceu Roderick.
— Apollion — chamou Valentim. — Estou muito curioso para saber o que houve. Por que desceram tantos pássaros? O que você disse àquele pássaro grande?
— Desceram muitos porque os animais daqui são muito grosseiros, logo que eu dizia que precisava de um favor, eles iam embora com raiva por terem sido incomodados. O único que quis dialogar foi aquele gavião. Ele disse que faria, mas não de graça. Se eu desse o Polli para ele comer, ele me faria o favor. Pássaros mercenários e egoÃstas. Enfim, ofereci um pedaço de carne no lugar do Polli e ele aceitou.
— E ele conversa perfeitamente assim?
— Mais ou menos. Não é como conversar com humanos, o pensamento dos animais é muito simples, mas, do mesmo modo que eles entendem uns aos outros, eles podem nos entender. Normalmente quando dialogamos com animais, eles ficam mais inteligentes. Do mesmo jeito que se um humano não aprendee a falar, ele fica com problemas de desenvolvimento. Acho que vocês são tão desenvolvidos assim porque aprenderam a falar, acho que se comunicar faz bem para a mente.
— Apollion, isso é incrÃvel mesmo, você é extraordinário — disse o bandoleiro, mas a reação do pequeno demônio foi curiosa, ele caiu em prantos. — O que houve, te ofendi de alguma maneira?
— Não é isso. Você não me ofendeu — disse Apollion com a voz embargada e os olhos vermelhos e lacrimosos. — Ninguém nunca me tratou tão bem quanto vocês me tratam. Eu sempre fui considerado uma aberração entre os meus irmãos. Todos os demônios gostam de ferir e enganar, mas eu não, isso sempre me deixou mal. Meus irmãos gostavam de torturar criaturas na minha frente, pois sabiam que me incomodava e isso os dava mais prazer. Eu gosto muito de conversar, com todos, sem exceção. Meus irmãos achavam inútil conversar com seres pouco desenvolvidos, por isso não falam com animais, mas eu sempre gostei e, por isso, sempre fui alvo de zombarias. Como vocês estão achando legal essa minha habilidade, fiquei muito feliz, por isso estou chorando.
— Pois não precisa chorar — disse Valentim afagando sua cabeça de maneira desconcertada, ao que Apollion respondeu com um abraço que pegou o bandoleiro desprevenido. Ele não estava mais acostumado a esse tipo de interação e retribuiu o abraço de maneira embaraçada. — Tudo bem, agora me solte. Somos amigos agora, isso é o que amigos fazem. Agora vamos todos comer, pois estamos próximos do local onde o mapa de Magog indica.
Os quatro — ou os cinco se levarmos em conta o Polli — sentaram-se ao redor de uma fogueira, conversaram e aprenderam muito mais uns com os outros, uma verdadeira cena idÃlica. Não lembravam de ter tido um momento tão agradável há muitos anos. Comeram e beberam até se fartar, riram e brincaram como amigos de muitos anos e saÃram dessa noite mais próximos do que estavam pela manhã. Alguns momentos ficam marcados de forma indelével em nosso espÃrito. Pode-se dizer que esse foi um desses para todos os quatro (ou cinco). No entanto, tudo sob o sol tem seu desfecho, nada é infinito, nenhum amor, nenhuma dor, e a reunião deles também teve seu termo. Pela manhã, seguiram, sabendo que na vida teriam poucos momentos tão bons quanto o que passou.
O caminho por onde o mapa levava era tortuoso e sem trilhas. Roderick e Valentim indagaram que o mapa poderia ser falso, mas Paulo e Apollion garantiram que era impossÃvel um demônio mentir em um acordo. Poderiam enganar, mas não deliberadamente mentir. Aquele talvez não fosse o caminho mais fácil para chegar onde as mulheres estavam, mas, com certeza, era verdadeiro. Depois de muito esforço, galhos, urtigas, tropeções e escoriações das mais variadas, chegaram a uma cachoeira. Realmente havia pelo menos quatro trilhas que levavam até ela, mas Magog não indicara nenhuma delas. Evidentemente uma última afronta para poder se satisfazer.
Roderick ficou desesperado, chegaram ao local previsto no mapa e não havia ninguém lá, nem um local onde pudesse ter alguém. Estariam elas mortas no fundo do rio onde desaguava a cachoeira? Valentim lembrou que Magog informara que elas estavam vivas e sob a proteção de uma bruxa, como ele não podia mentir, provavelmente elas estavam escondidas em algum lugar por ali. Apollion informou que sentia uma grande emanação de poder mágico vindo de dentro da cachoeira, revelando assim mais um poder que os outros não sabiam que ele tinha. Haveria então uma passagem secreta por debaixo da cascata? Roderick animou-se e preparou-se para entrar na água, mas algo aconteceu.
Como que por efeito de magia, o céu começou a encarnar, de uma hora para a outra, de avermelhado, ficou plúmbeo, parecendo que traria uma tempestade. Alguns animais que estavam nos arredores começaram a enlouquecer, inclusive Polli. Uma rajada de vento, quente como o inferno há de ser, começou a vir de todos os lados e adentrava em todos os espaços das vestes dos três, que ainda usavam as túnicas de monge que vestiram para se infiltrar no mosteiro, atingindo diretamente suas peles. Roderick empunhou sua espada, pois já sabia o que surgiria diante daquela anomalia.